
Quem estendeu a m�o e te levou ao est�dio pela primeira vez para assistir ao jogo do seu time? Existem as m�es, pais, av�s, amigos, irm�os presentes em todas as partidas e, naturalmente, herdeiros dessa miss�o. H� os �rf�os de fanatismo familiar, para os quais a estreia nas arquibancadas depende de fatores mais complexos.
Vim ao mundo poucos meses antes do empate entre Cruzeiro e Bayern de Munique pela final do Mundial de 1976. Tornei-me cruzeirense por conta do meu velho pai, um dos milhares de torcedores presentes � geral do Mineir�o naquela noite.
Fui crescendo, e ele ganhando outros filhos, a inesperada viuvez e um caminh�o de responsabilidades di�rias. Acrescidos da dist�ncia entre a nossa cidade e a capital, esses des�gnios da vida foram lhe transformando num cruzeirense de radinho e TV.
Mas veio 2 de fevereiro de 1987. Um domingo ensolarado. Quase 100 mil pessoas rumaram para o Mineir�o. Cruzeiro e Atl�tico de Lourdes se enfrentariam pelas quartas de final do Brasileir�o do ano anterior. Entre eles, Z� Paulo, meu velho, que resolvera voltar para junto de seu time amado. Era a minha primeira vez no est�dio constru�do para ser a casa da Academia Celeste.
Nunca tinha visto tanta gente junta. Ele segurou minhas m�os e me fez subir as escadarias. A volta do meu pai ao conv�vio com seu Cruzeiro acontecia no mesmo instante em que eu tinha a vis�o indescrit�vel do tapete verde com as 11 camisas azuis, de estrelas brancas, guerreando sobre ele.
A lembran�a da volta de meu pai para seu Cruzeiro, pelo ideal de me fazer ainda mais fan�tico, veio em meio a uma prosa botequiana sobre o retorno do veterano Rafael S�bis. De um lado, os descrentes: “voltou por dinheiro”. No centro, os racionais: “morar em BH � f�cil, por isso, retorno”. J� os de cora��o mole, para os quais qualquer elogio � institui��o Cruzeiro sopra como poesia: “n�o tem condi��es f�sicas, mas ser� um maestro nos bastidores dessa �pica miss�o de recuperar um gigante”. Nessa terceira ala de corneteiros estava esse rabiscador de letras.
Se pelo vil metal, facilidade ou gratid�o, no fundo, a motiva��o para o volver de S�bis n�o importa. Voltar veterano para o Cruzeiro e fazer disso um ideal encontra respaldo em outros personagens da nossa hist�ria.
Em 1955, j� aposentado e �dolo eterno do Palestra/Cruzeiro, Geraldo II, o goleiro-pedreiro, voltou para defender a nossa meta numa partida para a qual n�o t�nhamos arqueiros. Quatro anos depois, foi a vez de Abelardo, “O Flecha”, regressar ao escrete estrelado. Nas d�cadas seguintes, Rossi, Hilton Oliveira, Palhinha, Douglas, Ademir, Ricardinho, Sor�n...
Outros, como Zinho e Tinga, mesmo com uma �nica passagem e sem capacidade f�sica para se tornarem protagonistas em campo, foram fundamentais nos grupos vencedores.
A volta do Tio S�bis vem num momento em que n�o teremos t�tulos. Mas as miss�es n�o se encerram s� nas conquistas. Elas podem nascer e se tornarem exitosas numa m�o estendida, no aceitar o desafio de voltar exatamente nessa situa��o.
Ser cruzeirense � sentimento, n�o � verbo ou adjetivo. O Cruzeiro se sente – e quando isso acontece, sempre voltamos.
Desde o in�cio da pandemia, Marcelinho n�o ia � casa de Dona Luzia, o reduto celeste de nossa turma em Santa Tereza. Mas no dia 30 de outubro, Juliano, Silv�rio, Maur�lio, Stefano e Angel, tomados de saudade, sugeriram a ele o regresso. Era Cruzeiro e Paran�.
Em casa, Kika, a companheira de Marcelinho, percebendo a vontade dele, resolveu guardar um triste segredo para cont�-lo mais tarde. N�o queria preocup�-lo antes da partida. Fez mais. Deu a ele um sorriso, como quem diz, “vai tranquilo, meu amor, volta hoje para o seu Cruzeiro”.
Dias depois, apertando as m�os de Marcelinho, Kika viu seu quadro de leucemia se agravar. Na �ltima sexta-feira, ela virou estrela.
Dedico esta cr�nica a Artur, Tom�s e Marcelinho, os tr�s meninos cruzeirenses da Kika.