
Uma das esp�cies mais fant�sticas do ecossistema do futebol est� entrando em processo de extin��o. Para a trag�dia da narrativa po�tica e popular do jogo de bola, est�o morrendo – sem perspectiva de renascimentos – os torcedores-s�mbolo das arquibancadas.
Indiv�duos capazes de colocar a pr�pria exist�ncia em segundo plano quando o verbo � “torcer”. De encarnarem camisas como segunda pele. De transformarem as linhas da costura dos escudos em art�rias ligadas ao cora��o.
Nesta semana, se foi mais uma rainha popular das arquibancadas. Dona Maria Jos�, torcedora-s�mbolo do Sport Recife. Mulher pobre, negra, interiorana, adepta aos degraus de concreto grosso e �spero dos est�dios brasileiros. Foram 98 anos de total entrega ao seu amor maior.
Quebrou paradigmas. Vestida e pintada de vermelho e preto, do cabelo aos p�s, ela conquistou seu espa�o e o respeito, mesmo em uma �poca retr�grada quando mulheres em meio a multid�o de marmanjos nas arquibancadas era motivo de preconceito.
�rf�, v�tima de viol�ncia f�sica e racismo por toda a vida, a Dona Maria do Sport nunca se deixou abalar. Sobreviveu para lutar pelos direitos de sorrir, de torcer, de gostar de futebol, de ser apaixonada pelo seu Le�o.
"Quando eu morrer, quero sair do Sport, ir em um caminh�o dos Bombeiros, passar pelo Pal�cio do Governo at� chegar no cemit�rio. E quero ser enterrada na frente, n�o � atr�s n�o. Porque quando o negro morre, enterram l� no fundo. E eu tenho muito orgulho da minha cor", disse ela, em uma entrevista para a Rede Globo. Sua profecia se concretizou no �ltimo domingo.
Durante uma prosa sobre Dona Maria Jos�, meu amigo e companheiro de cr�nica esportiva Fernando Rocha me recordou de outros �cones das arquibancadas nordestinas, como o lend�rio Z� do R�dio, tamb�m do Sport.
Cruzeirense de estrelas cravejadas na alma, Fernando Rocha morou e trabalhou por cinco anos no Recife. Tornou-se o torcedor-cronista-s�mbolo da uni�o entre as torcidas do Sport e do Cruzeiro. Durante as coberturas das pelejas do time pernambucano, bastava se aproximar do alambrado para a Torcida Jovem entoar o c�ntico “Sport, Cruzeiro, amizade o ano inteiro”.
O Cruzeiro tamb�m sempre foi um celeiro de torcedores-s�mbolo vindos do pov�o. Assim como o Sport, teve em uma mulher pobre, interiorana e batalhadora a sua express�o m�xima: Maria Salom�, a maior torcedora do mundo. “Se o Cruzeiro cair, eu morro.” Como d�i relembrar dessa sua profecia.
Junto � Salom�, na hist�ria centen�ria do Palestra/Cruzeiro, houve outros e outras tantas. Como a cruzeirense negra e perif�rica que era a nossa torcedora-s�mbolo na d�cada de 1950, ainda no Est�dio Independ�ncia, antes do advento do Mineir�o.
O saudoso V�gner, da Torcida Jovem, precursor da resist�ncia contra as agress�es homof�bicas criminosamente implementadas em Minas Gerais pela Turma do Sapat�nis, ainda ao final da d�cada de 1970. O maestro Aldair Pinto, com sua charanga que inspirou o surgimento das baterias das Organizadas. Citando apenas alguns para simbolizar os in�meros torcedores-s�mbolo do Cruzeiro.
Em 2023, completa-se uma d�cada do boom de campos de futebol transformados em “arenas” no Brasil. Um modelo moderno e confort�vel, por um lado, mas elitista e segregador, de outro. Para os amantes da mercantiliza��o do esporte do povo, pode ser apenas uma mera coincid�ncia. Para n�s, poetas sonhadores, jamais. Afinal, com elas, as arenas, tamb�m vieram as mortes dos setores populares – como as “gerais” – e, consequentemente, dos ingressos com valores acess�veis para o trabalhador comum. Classe socioecon�mica de onde emergiram quase todos esses torcedores-s�mbolo do futebol brasileiro.
N�o s�o apenas os craques e �dolos que est�o em processo de extin��o no futebol brasileiro. A poesia do torcer tamb�m sangra com a partida de nossas Donas Marias.