
Mariana Novaes
Professora
Admiro aqueles que fazem dessa quarentena uma esp�cie de self hiperprodu��o. S�o inumer�veis os convites para lives, cursos gratuitos e dicas de s�ries que recebo, fora as ideias de atividades para se fazer com uma crian�a em casa. Eu, simplesmente, n�o consigo. Nesses tempos de pandemia, as horas passam muito r�pido para mim. Algumas vezes at� me queixo do cansa�o, mas, na verdade, agrade�o todos os dias pelo meu trabalho e pela minha filha, que me permitem n�o pensar no qu�o absurdo e desprovido de Deus � esse mundo em que a gente vive.
Lembro-me de S�sifo. Ele, um dos mais astutos mortais, conhecido na mitologia por ser um dos maiores ofensores dos deuses. Tamanha foi sua esperteza que conseguiu driblar por duas vezes Hades, deus da morte, e T�nato, deus dos mortos. Quando descoberto, como castigo foi condenado eternamente a rolar uma grande pedra com as m�os at� o topo da montanha. Em seu ensaio filos�fico, o Mito de S�sifo, o escritor Albert Camus utiliza-o como alegoria para o absurdo da condi��o humana.
Entretanto, se estamos vazios de qualquer explica��o coerente para a pandemia e o Brasil, o meu mundo, ainda que me revolte com ele, est� cheio de gente, essa repleta de amor, fraternidade, solidariedade. O amor encontro como m�e. E a fraternidade e a solidariedade, na fam�lia, nos amigos, no trabalho.
Amar n�o � f�cil. Exige disposi��o e trabalho. Ser m�e, brinco, tamb�m � quase um trabalho de S�sifo. A gente come�a o dia carregando a pedra, para a noite ela voltar a cair e, no dia seguinte, ter que carreg�-la at� o alto de novo. Por�m, apesar da rotina c�clica e sem fim – cinco refei��es di�rias, lavar e estender roupa, varrer, passar pano – s�o muitos os momentos de alegria, do�ura e leveza que a maternidade me proporciona. Se me levanto mais cedo do que gostaria com a m�xima “mam�e, t� de dia”, tamb�m recebo beijos e uma palavra de amor. S�o eles, mais do que o caf�, a mesa posta, que me colocam de p� para mais um dia.
Na cozinha, experimento sabores novos e conto at� com a ajuda da minha pequena assistente chef. Se a decora��o da minha sala mudou e deu lugar a quase um quarto de brinquedos, s�o nessas brincadeiras de representar a vida que conhe�o mais minha filha. No sof�, al�m do cobertor que aquece, tem o seu abra�o. A hora do sono, que se resumia a uma m�sica de ninar e uma historinha, agora inclui as conversas, dosadas de sonhos – “quando o coronav�rus acabar...” – e questionamentos. De tudo, ficar� uma lembran�a bonita de um tempo de cumplicidade, paci�ncia e afeto entre n�s duas.
S�o mais de 10 horas da noite e ainda � preciso ter �nimo para trabalhar. A coragem para o terceiro turno s� ressurge gra�as � minha indigna��o. Se n�o me conformo, tenho que agir. Responder �s mensagens de trabalho, de alunos, de um afeto querido, preparar uma aula, saber sobre e como ajudar algu�m, mesmo que esse seja um desconhecido.
Camus fala que, apesar da condena��o de S�sifo e de vivermos em um mundo cheio de injusti�as, carente de qualquer explica��o plaus�vel, � preciso imaginar S�sifo feliz. Depois de cumprir sua �rdua tarefa, ele suspira. Nesse suspiro est� a sua felicidade. E, talvez, a nossa. No afeto, numa m�sica, no sabor de uma comida, na poesia, na fraternidade que n�o derroca a esperan�a. Oswald de Andrade disse que a alegria � a prova dos noves. J� � madrugada. Durmo tranquila, afinal, o meu �ltimo respiro ainda � o “sonho dos justos”.