
In�cio de mar�o. Depois de um fim de semana delicioso em Lavras, celebrando novas primaveras de alguns familiares, despertei com a tosse ao lado. Paulo Henrique, meu namorado, tamb�m tinha falta de ar, dor no corpo e febre. A amea�a nos parecia algo t�o distante e, de repente, t�o perto.
A suspeita de COVID suspendeu toda a rotina planejada. Nosso mundo, em segundos, virou de pernas pro ar, e eu ali no meio... Meio... paralisada. Fomos orientados a aguardar em casa, com ox�metro e cora��o na m�o. Pensei em todos com quem hav�amos tido contato: meus pais, irm�os, sobrinhos, amigos. O terror me invadia ao pensar na poss�vel contamina��o de minhas fortes ra�zes. “E eu? Devo estar assintom�tica”, pensei. Que nada! O caos mal havia come�ado e eu j� estava sufocada, imersa no mesmo desamparo e vulnerabilidade de todos os outros.
Ainda tinha (e felizmente tenho) meus pacientes, que foram mais que pacientes com a mudan�a brusca de nosso setting. Era poss�vel sentir suas ang�stias pelas mensagens de WhatsApp: “Raquel, voc� vai atender on-line?”; “T� muito mal... Fui demitida ontem, estou com medo de continuarmos e n�o conseguir te pagar”; “N�o sei se consigo fazer a sess�o por Skype, voc� sabe que tenho muita dificuldade com essa coisa virtual”. Sem contar o grito desesperado de uma adolescente no �udio: “Raquel, eu vou surtaaaaaar dentro dessa casa!”.
N�s, que tanto gost�vamos da circula��o e associa��o livre, fomos lan�ados e confinados para dentro de nossas cavernas, algumas com muitas paredes e poucas janelas. � preciso respirar-a-dor. E, assim como as plantas buscam luz para se desenvolver, dever�amos encontrar caminhos para manter o contato emocional fundamental � nossa sobreviv�ncia. E junto com celulares, tenho sido levada por eles at� varandas, quartos, escrit�rios, assentos do carro, e, principalmente, aos por�es do medo: de adoecer, de falir, de perder, de n�o saber, de morrer...
Ontem, um deles cantou Cazuza na sess�o: “Vi a cara da morte e ela estava viva”. Ao que respondi, parafraseando outros versos da can��o: “Far�amos das tripas cora��o, do medo nossa ora��o... a tiros de vamos pra vida!”.
Nada como cantar juntos, ouvir uma voz que n�o somente o pr�prio eco, pois, entre tantos lugares, � na solid�o que a maioria mais teme fazer morada! Infelizmente, muita gente n�o tem sido boa companhia para si mesma. Aprisionada h� tempos em suas altas exig�ncias, necessidades de controle e idealiza��es... Conhecido v�rus e erva daninha das rela��es, a onipot�ncia perde sua pot�ncia em tempos como estes.
Como quem traz boas-novas e as lan�a como sementes, sonhei com girassol! Lembrei-me de que na aus�ncia do sol, em dias nublados, eles olham uns para os outros para trocar energia. E assim fazemos, ainda que com olhares mediados pelas telas.
S�o eles, os v�nculos, sustentados por muitos de seus troncos e redes (agora com ajuda do wi-fi), transitando e transmitindo in�meros afetos, que t�m mantido nossos sinais vitais. E l� “vamos bem”: eu, Paulo Henrique, meus familiares, pacientes e amigos.
Somos desafiadores brotos em terreno �rido. Como Clarice Lispector, “sinto que viver � inevit�vel”.