
'Tem que f*der valendo a vida (...)' . Esses s�o os versos da m�sica “Enquanto Recome�a”, do rapper Don L, a quinta faixa do disco Roteiro para A�nouz - volume 2, lan�ado no �ltimo dia 26, parte da trilogia em refer�ncia ao cineasta cearense Karim A�nouz (diretor de filmes como O C�u de Suely, Viajo porque preciso volto porque te amo e Praia do Futuro) projetada na autofic��o e contada anti cronologicamente que me incitaram desde que os ouvi pela primeira vez.
Com dire��o art�stica de Andr� Maleronka (R�!, RPA3 e Veterano) e produ��o executiva de Marina Deeh, tem produ��o musical de Nave e do pr�prio Don L, al�m de mixagem de Luiz Caf�. Nomes como Mahmundi, Daniel Ganjaman, Deryck Cabrera, 808 Luke e Willsbife, al�m das vozes e coros de Djonga, Alt Niss, Tasha & Tracie, Rael, Giovanni Cidreira, Terra Preta, Eddu Ferreira e Luiza de Alexandre comp�em a obra. Hipnotizante e deliciosa.
Ou�o desde o lan�amento. N�o consigo mais parar. O disco est� no meu repeat em looping - pra n�o dizer que estou obcecada - e tem me causado uma bagun�a imensa num conflito polarizado entre minhas puls�es de vida e morte. Quantas mortes simb�licas ainda ser�o necess�rias para que eu possa viver?
O disco foi me dando um fogo - e f�lego - pra fazer v�rias paradas que estavam de lado em raz�o da rotina louca.Uma delas est� aqui: voltar a escrever sobre rap.
Me peguei pensando, completamente atravessada: o que eu faria se n�o sentisse medo? Arrebatada pelo conceito do disco e pelos versos de P�nico de Nada, listei, como quem vai ao supermercado e n�o quer esquecer nenhum ingrediente de uma receita especial: tudo que eu faria se n�o tivesse medo, did�tica:
fogo nos opressores
fogo nos abusadores
fogo nas igrejas
fogo nas academias (todas elas)
est�tuas implodidas
sexo valendo a vida
road trip
um guia impresso combinando os melhores filmes e discos sobre hip-hop e poesia
justi�a (vai ser como quiser Xang�)
Despeda�ada entre mil compromissos e meus pr�prios desejos, quero, ao mesmo tempo, me manter offline e distante das redes, percorrer o mundo, incendiando todo s�mbolo que possa, minimamente, oprimir qualquer tipo de corpo, fazendo-os sentirem-se estrangeiros em qualquer lugar.
Com uma arma apontada na cabe�a um alvo marcando as costas dos nossos corpos inadequados, � urgente f*der como se nossa vida dependesse disso. Como se tudo que tivermos seja essa explos�o corporal. Sempre pode ser a �nica, sempre pode ser a �nica. Podemos morrer ao virar a esquina: pela viol�ncia contra nossas exist�ncias, nossos corpos, nossas pequenas alegrias. Me provoca saber que qualquer foda pode ser a �ltima. E por isso - justamente por isso. Por isso mesmo, tem que ser incr�vel, tem que ser intensa, tem que valer a vida. O tes�o � arma quente. “Uma rebeli�o em transe/ Libido mais, mais (no m�ximo)”
Por aqui, sempre falo dos imagin�rios onde os corpos n�o tem vez. E Don L usa n�o s� o tes�o, mas tamb�m a imagina��o como estrat�gia ancestral de luta. Imaginar outros mundos � urgente, afinal, tratamos aqui de processos para constru��o de amanh�s. E essa constru��o s� � feita a partir do momento que podemos imaginar os corpos marginalizados como corpos humanizados - vivos e sentindo prazer.
Queremos corpos como o meu em lugares diferentes dos j� marcados. Queremos falar sobre foder sob o quadro de L�nin como �nica testemunha e usar joias. Queremos que estes corpos carimbados pela racialidade, g�nero e coloniza��o em destaque e celebra��o.
Como chegar l� cruzando a trincheira da l�gica neoliberal em que nos conformamos com a vida morna e sem prazer? O caminho at� l� � marcado pela revolta, que se n�o acontecer agora, quando? Se o desejo de foder pela vida n�o estiver pulsante e incandescente agora, estar� quando?
Crua e �ntima, como feita de suor e sangue, a guerra aqui � a �nica op��o - mesmo que eu queira descansar e s� existir - e tamb�m a �ltima tentativa de pertencimento. O efeito da m�sica escaldante me prova que s� existe um caminho poss�vel - e � o do meme: � poss�vel juntar tes�o e luta de classes! E aqui nem � uma pergunta. D� vontade de amar e incendiar o mundo ouvindo o disco. � poss�vel rebolar, gozar, festejar e ainda lutar pelos nossos direitos. Um mergulho profundo no prazer que � estar aqui agora, escrevendo esse texto.
Est� posto: “a guerra que nos reaproximou de n�s/ � a mesma que p�s a repensar meus sonhos/ o quanto neles era s� publicidade?”, canta em “Primavera” com participa��o de Rael e Giovani Cidreira, num mergulho l�rico estonteante. Esperamos a nossa esta��o para florir, enquanto isso, Cuba volta em imagens: %u200Bhay que endurecer sem nunca sem nunca perder a ternura.
A vibe incendi�ria e decolonial do disco - que tamb�m passeia pela hist�ria pessoal do artista - me faz quase entrar em combust�o: “Se for pra n�s viver por isso/ eu prefiro morrer pelo que eu acredito”.
Exalando sensualidade, pertinente num ano como 2021, em que a proximidade com a morte pode ser a chave para a vida, as letras de Gabriel Linhares da Rocha (o Don L) transpiram como um ver�o surrado, como corpos encardidos que fogem em dire��o � golden hour numa imagem que pode ser s� sonho, pode ser uma frase dos meninos pretos em “N�o digam que estamos mortos” de Danez Smith e pode ser eu e voc�, s� tentando sobreviver, entre quinquilharias de cacos, tentando achar algum sentido que torne nossa luta pela exist�ncia um pouco maior.
� preciso lutar, mas tamb�m � preciso tirar uma onda, transar gostoso, beber um drink bom, viver cada segundo como se fosse o �ltimo, realizar cada desejo como se estiv�ssemos com os dias contados - e talvez estejamos. � preciso viver no limite, como estamos: um (v�rios) genoc�dio em curso: do povo preto, dos povos origin�rios, na neglig�ncia estatal, na invisibilidade destinada aos nossos corpos, na falta de afeto imposta. Exaltar nosso prazer, felicidade, ainda que em meio �s armas - nossas e as de quem lutamos contra - � uma das formas mais interessantes de resistir.
J� que estamos aqui, vamos viver, vamos rebolar, vamos gozar, vamos beber e, enquanto fazemos isso, sem esvaziarmos a luta - � importante que tenhamos prazer enquanto travamos batalhas - vamos celebrar quem lutou antes da gente, para que pud�ssemos estar aqui. N�o h� o que impe�a a den�ncia das muitas mazelas brasileiras, quase todas capitaneadas por elites colonizadoras, atualmente tamb�m chamada de extrema direita, bolsonarismo e, por que n�o, a famigerada terceira via?!
A cada dia, o disco me parece maior e mais sedutor, tal qual nossos corpos dissidentes - e tamb�m origin�rios, vivos, fazendo nossa pr�pria microrevolu��o: em busca de uma exist�ncia que n�o se desculpa, foda-se quem ela estiver enlouquecendo.
Constru�do de forma �pica, chega com "Vila Rica" (em alus�o a atual Ouro Preto, MG), a can��o que abre o �lbum com versos como “N�s tivemos baixas incont�veis/ na real j� foi uma revolu��o, foi uma comunidade/ por cima de sangue derramado/ j� fomos quilombos e cidades/ Canudos e Palmares/ originais e origin�rios” - sem se furtar de relatar a triste e tr�gica hist�ria brasileira. O disco � sem massagem, como o rap deve ser - � importante lembrar. E nos faz perceber a urg�ncia que � estarmos aqui, vivos, agora, embora carreguemos no corpo o perigo da morte.
O ultimato quase rom�ntico da faixa que lembra a est�tica vaporwave “trilha pra uma nova trilha” prop�e uma esperan�a, caso consegu�ssemos viver, de fato, pelo que acreditamos e fazer valer o risco, a vida e mudar o atual cen�rio pol�tico do pa�s - que passa n�o s� por um presidente fascista e genocida, mas por tudo que nos cerca na mesa do almo�o de domingo, no cafezinho da firma, no levantamento do supino na academia, no ch� de revela��o do beb� de algu�m pr�ximo, no podcast que escutamos enquanto lavamos a lou�a acumulada na pia: o conservadorismo e a moral crist�.
Poderia ser um roteiro para A�nouz - e tem muito do diretor nas imagens que aparecem nos versos - mas � tamb�m um roteiro para quem est� aqui lendo, para quem acorda e d� o play, para quem acredita que � poss�vel viver, mas n�o sem antes, quebrar as correntes todas que nos prendem - e toda rebeli�o � urgente nesse sentido. Poderia ser um roteiro tamb�m para Melina Matsoukas, diretora de “Queen & Slim”, que aparece num flerte de admira��o na letra de P�nico de Nada, que volta a nos lembrar que a aus�ncia do medo � o �nico caminho pro road movie que sempre sonhamos: a revolu��o a partir dos nossos corpos - amea�ados, amedrontados e violados - numa est�tica arrebatadora, ao som do rap, sempre:
“Amor e luta/ Queen & Slim em Cuba/ Assata Shakur em New Jersey/ Tupac Amaru II e Micaela/ Se a gente morrer valeu a guerra/ P�nico de nada/ Eles sangram como eu sangro/ P�nico de nada/ Vai ser como quiser Xang�/ P�nico de qu�? Porra nenhuma”
O mesmo ocorre na faixa “contigo pro que for”, com participa��o de Alt Niss e Terra Preta e um visualizer que nos transporta, novamente, pro “Queen & Slim”, mas desta vez, brasileiros. As ruas s�o as nossas, tal quais nossas - e nossos - marginais. Bonnie & Clyde com dire��o de Aisha Mbikila (Lady Bird), que tamb�m dirigiu outros clipes do cantor, numa fuga para o amor.
Num di�logo intenso com l�deres revolucion�rios como brasileiros como Amaro Lu�s de Carvalho, Amaro Felix, Manoel Aleixo, Carlos Marighella em alus�o ao Partido Comunista Revolucion�rio (PCR) e a nossa pr�pria hist�ria, mas cita tamb�m outros guerrilheiros, como Che Guevara, Emiliano Zapata, Thomas Sankara, Vladmir Lenin, Tupac Amaru e Assata Shakur. Rappers como Dina Di e Sabotage tamb�m s�o lembrados, bem como o ge�grafo Milton Santos, a figura de Dandara, Cidinho e Doca, Malcon X, Rojava, Comandanta ramona, vietcongues. As revoltas de Vila Velha, Canudos e quilombos tamb�m aparecem no disco. Estrada pavimentada � importante para o caminho continuar.
O fim do capitalismo � poss�vel? Numa linha do tempo que mistura passado e futuro como s� Don L sabe fazer, a proposta de um novo mundo � evidenciada a partir deste t�rmino. Imaginamos e sonhamos com isso. Sem lucro, nossos corpos s�o s� corpos e nos tornamos pessoas.
O �lbum � um di�logo tanto com o Roteiro Para A�nouz - Volume 3, como com Caro Vapor, a primeira mixtape solo do rapper de 40 anos nascido em Bras�lia, radicado em Fortaleza (CE) aos 4 anos e morador da capital paulista desde 2013 e que n�o me deixa parar de pensar na frase “Uma noite tem que valer um verso, pra em outro dia, o verso valer a noite. A estrada j� tem que valer a viagem porque o destino � sempre incerto”. No mesmo �lbum, cantou tamb�m:“Morra bem, viva r�pido”.
At� aqui, tem valido. A estrada, a viagem, a pena. N�o sem esfor�o. N�o sem dor. N�o sem pegar em armas. N�o sem reunir um arsenal - imagin�rio, imag�tico e real - e os nossos, prontos para o combate. N�o d� para viver de migalhas: de espa�os, de afeto, de corrup��o. O que sobrou � muito pouco pra gente. Queremos a “volta da vit�ria”, com sampler de Xis, em “Us mano/as mina”. Ainda temos um tanto a trilhar. “%u200Bum brinde pra esse dia que n�s prendemos a pol�cia/ v�o dividir celas com os financiadores delas/ %u200Binvestidores da mis�ria/ %u200Blutar do lado errado � j� perder a guerra/ %u200Bdo lado certo a gente vence mesmo quando perde”.
Seguimos, sem racistas, sem fascistas, sem gordof�bicos. Sem medo, afinal: P�NICO DE NADA. Talvez uma vida seja muito pouco para sermos tudo que somos, mas, sejamos. '%u200Be tem sido um voo foda/ %u200Ba todo vapor'.
E pra encerrar, como canta na “Favela Venceu”, em que sampleia o Rap das Armas, da dupla de MCs carioca “Junior e Leonardo”: “A gente n�o ganha/ a gente vence”.
Continuamos…
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