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Estado de Minas CORPOS DISSIDENTES

Todo mundo tem uma melhor amiga gorda

Farta de ser conveniente e usada como estepe de pessoas magras


17/11/2021 06:00 - atualizado 17/11/2021 09:19

Jéssica Balbino posa para foto em galpão
'Ser melhor, agora, s� se for na exig�ncia do afeto que sei que mere�o' (foto: Arquivo pessoal)


Na balada eu sou sempre aquela amiga divertida, que conversa com todo mundo, ri alto, sai arrumada, mas nem tanto, s� o suficiente para ser diferente da roupa do dia a dia no trabalho e que, ao final, quando as luzes ficam ainda mais foscas, est� sozinha. Sou aquela que, na roda de amigos, ningu�m nunca pergunta se est� saindo com algu�m ou insinua que a pessoa da mesa do lado olhou e paquerou.
 
Na lista de contatos, meu nome � sempre o da emerg�ncia. Precisam chorar por um t�rmino? Me ligam. Precisam sair pra um porre depois de um fora? Me ligam. Precisam de um conselho sobre uma mudan�a profissional? Me ligam. Precisam de companhia s�bado � noite? Ligam para outras pessoas - provavelmente, magras. 

'Sendo gorda, eu j� tenho bem delimitado meu papel na vida social da maior parte das pessoas que praticam, de forma pol�tica e assertiva, a decolonialidade dos afetos'

 
Eu sou o que voc�s provavelmente conhecem como A MELHOR AMIGA GORDA. Fato �: todo mundo tem uma melhor amiga gorda. Ou teve. Sou aquela companhia legal, inteligente, divertida, generosa, boa ouvinte, agrad�vel. Poderia ser namorada? Poderia! Caso eu n�o fosse gorda. Sendo gorda, eu j� tenho bem delimitado meu papel na vida social da maior parte das pessoas que praticam, de forma pol�tica e assertiva, a decolonialidade dos afetos.
 
E este papel �, na melhor das hip�teses, o da melhor amiga. Quase sempre, a que tem tamb�m as fotos apagadas ou ocultadas nas marca��es, afinal, “� queima��o de filme ser viste ao lado de uma mulher gorda”, n�o � mesmo?


Ser a melhor amiga gorda � estar na contram�o do que j� escrevi aqui sobre desejo e fetiche dos corpos gordos. � caminhar de m�os dadas com o desejo da amiga inteligente. Aquela para quem voc� escreve pedindo dicas de filme, de podcast, de livro, etc, mas nunca escreve para convidar para ir ao cinema, jantar, assistir um filme, a piscina.
 

� aquela amiga que, quando voc� combina algo, � em segredo. � aquela com quem voc� tem medo de ser visto ao lado. � aquela de quem voc� deseja a mente, mas n�o o corpo. � aquela pessoa que voc� at� namoraria, “se se cuidasse mais e emagrecesse um pouco”. � aquela pessoa por quem voc� tem desejo de estar perto, mas n�o de ser visto junto. � aquela pessoa que vale a pena, mas s� se for em segredo, porque voc� jamais arruinaria sua reputa��o social para ter ao lado algu�m que n�o � magra suficiente.
 
� aquela que s� cabe do seu lado se for no escuro. Se for em segredo. Se for no “vai na frente que eu vou logo depois”. Se for no “n�o vamos contar para ningu�m, quero te preservar”. Ser a melhor amiga gorda � aquela que tem a mente e tudo que ela representa fetichizados, mas n�o o corpo. 
 

'Melhor que a solid�o devastadora a qual n�s, corpos dissidentes, sobretudo mulheres gordas maiores somos relegadas, melhor que n�o ter amigos'

 
 
� ser jogada no abismo do lugar onde nem corpo, nem mente. Tudo que ela � caminha dissonante do conjunto. Ou desejam s� o corpo, como fetiche. Ou desejam s� a mente, sem toque. � sempre o lugar do afeto pela metade. Das partes que n�o se juntam. O vazio que nunca � preenchido. 

Deixo minha adolescente falar neste texto. Durante muito tempo, aceitei, de bom grado esse papel, afinal, ele era melhor que nada. Melhor que a solid�o devastadora a qual n�s, corpos dissidentes, sobretudo mulheres gordas maiores somos relegadas, melhor que n�o ter amigos - afinal, pensava eu que bastava algu�m dizer que eu era uma melhor amiga, que isso me tornava. Melhor que ser ainda mais rejeitada do que eu j� me sentia. Eu apenas entendia que era melhor. E, nesse entendimento, passei a permitir muitas viol�ncias, afinal, ser a melhor amiga gorda � tamb�m conveniente. 
 

'Ter uma melhor amiga gorda garante o card da diversidade no seu grupo.'

 
 
Talvez a conveni�ncia seja a palavra. A melhor amiga gorda � CONVENIENTE. � conveniente ter uma. Eu sempre me esforcei muito para agradar, me fazer necess�ria, logo, al�m de tudo que eu j� sou, ainda oferecia de brinde o meu medo de ser rejeitada, o meu desespero pelo amor e aceita��o alheias, a minha necessidade de me sentir pertencente, ainda que eu estivesse fazendo um esfor�o imenso pra isso. 

Ter uma melhor amiga gorda garante o card da diversidade no seu grupo. Garante escuta. Garante, por vezes, sexo no melhor esquema ‘amizade colorida, mas n�o conta pra ningu�m n�o’. Ser a melhor amiga gorda, percebo hoje, foi uma das piores viol�ncias ligadas � gordofobia que j� me permiti sofrer. 

E digo me permiti, porque, somada a opress�o estrutural que � pra l� de perversa, tem tamb�m a minha parte devastada, sintom�tica, que aceita qualquer migalha de afeto, inclusive a da conveni�ncia, para ser minimamente amada. Ou ter essa ilus�o de que estaria sendo. 


Agora, escrevo esse texto para dizer que eu n�o aguento mais ser a amiga gorda. Eu n�o suporto mais ser a pessoa do grupo que � tratada, como dir�amos na minha inf�ncia de millenium, como caf� com leite. Eu n�o aguento mais ser a pessoa conveniente das rodas, ser a deixada de lado na balada, ser a solit�ria do grupo, ser a “psic�loga” n�o institucionalizada da turma, que tem sempre um colo, um conselho, uma escuta para oferecer, enquanto desmorona na pr�pria rejei��o.
 
Eu n�o suporto mais ser a melhor amiga ‘colorida’, que mant�m ‘quase relacionamentos’ nunca rotulados para que nunca se tornem p�blicos ou como garantia de que nunca haver� qualquer tipo de cobran�a. Eu estou farta de ser a melhor amiga gorda. De ser a amiga que os amigos populares dizem: voc� � incr�vel, claro que eu te namoraria, mas somos amigos, enquanto se atraca com outra amiga, na ponta extrema do recinto.
 

De ser a amiga que vai embora sozinha e, horas depois, acorda para saber como foi a noitada do grupo, assistindo em flashes contados o que poderia ter vivido. De ser sempre a que est� em standby, para quem ligam quando as possibilidades de divers�o j� se esgotaram. De ser o estepe quando as amigas magras j� se ajeitaram em outros rol�s. Quando o familiar � urgente. E s�. Eu cansei de ser familiar.
 
De desempenhar o papel que a gordofobia me deu e que eu, sem escala��o, me embrenhei na personagem como o sonho adolescente de ser atriz de teatro. Encarnei t�o bem, que sair do figurino, abandonar os cacoetes e deixar na coxia o misto de persona rejeitada e ao memo tempo, confi�vel, � um baita desafio. 

E, rejeitar esse papel exige uma energia que, at� eu perceber que estava atrelada a personagem da amiga compreensiva, caricata e  sempre deixada de lado por um amor, um par de pernas mais fino, um corpo menor que caiba nos espa�os e expectativas me rendia exatamente ao que esperavam de mim: pouco barulho ou exig�ncia e um contentamento excessivo com as migalhas de afeto. 

Mas, eu n�o sou uma exce��o e n�s sabemos disso tamb�m. Ali�s, A MELHOR AMIGA GORDA � algo t�o comum quanto filmes de high school na TV aberta durante a tarde ou no seu streaming favorito. Ali�s, nestes espa�os, existe inclusive um termo pr�prio para se referir a pessoas como a que eu fui a vida toda, praticamente. “The Duffy”, que significa “Designated ugly fat friend” ou, na tradu��o livre, “t�pica amiga feia e gorda”. 

Combinemos que o estere�tipo � pra l� de convencido - e conden�vel. Quase sempre, a MELHOR AMIGA GORDA sou eu mesma. Aquela garota que � inteligente, mas aparece como coadjuvante nas hist�rias, sobretudo de amor da melhor amiga, a protagonista. A Duff praticamente vive em fun��o da amiga magra e padr�o, ouvindo e vendo suas hist�rias quase como uma espectadora, entendendo que nunca poder� viver as mesmas experi�ncias - a menos que emagre�a, � claro - ou que, num passe de m�gica, enxergue o qu�o incr�vel � e pare de se contentar com as migalhas. 

Tor�o incansavelmente pela amiga gorda e invis�vel dos roteiros, desejando que ela, aos 16 anos, se perceba mais rapidamente do que eu me percebi - com 36 e tudo mais, voc�s sabem. 

A melhor amiga gorda � quase o c�rebro da melhor amiga magra. � ela que tra�a planos e ajuda a ‘bonita’ a obter �xito na vida escolar, amorosa, etc, enquanto v� a pr�pria passar, sem se ter na outra ponta para chegar onde deveria estar. 

Por outro lado, acho injusto que o “caminho mais f�cil” para acessar qualquer tipo de afeto seja emagrecer e negar quem sou, de fato, para ser amada. Ora, se � amor, deveria ser da forma como sou, gorda mesmo. Mas n�s - embora voc�s tentem, a todo custo, negar - sabemos que n�o � assim que funciona. 
 

'Isso faz de mim uma mulher incoveniente, a quem nem todes querem mais chamar de MELHOR AMIGA GORDA e que del�cia que tem sido n�o carregar mais esse fardo'

 
 
Sendo honesta, eu n�o sei como funciona. Pra mim, nunca funcionou. Cansada das migalhas, deixei muitas mesas onde o amor n�o era servido (obrigada pelo conceito, Nina Simone) e passei a me sentar sozinha. Na solitude - j� sem tanto medo da solid�o - consigo ser inteira e conectada comigo mesma.
 
Isso faz de mim uma mulher incoveniente, a quem nem todes querem mais chamar de MELHOR AMIGA GORDA e que del�cia que tem sido n�o carregar mais esse fardo. Ser melhor, agora, s� se for na exig�ncia do afeto que sei que mere�o, sem servir de trampolim ou escada para quem quer seja, tampouco pessoas magras. E na balada, que contei l� no come�o, continuo sendo alegre, dan�ante e divertida, assim como na vida, mas agora, s� para quem realmente est� comigo, no escuro ou quando as luzes se acendem. Eu sigo acesa, queimando. 

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