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Estado de Minas DIREITO DE SER

Como eu me tornei uma feminista fracassada

Como gabaritar os erros das cartilhas propostas pelos movimentos fizeram de mim uma pessoa melhor


15/12/2021 06:00 - atualizado 15/12/2021 09:24

Jéssica Balbino com um jornal em chamas
(foto: Jo�o Paulo Ferreira/EM/DA Press)

Eu sou uma feminista fracassada. Sim. � isso mesmo que voc� leu. No checklist da cassa��o da carteirinha, j� gabaritei todos os comportamentos considerados inadmiss�veis pelas fiscais de feminismo. Vejam voc�s, n�o faz tanto tempo assim, organizei um sarau pro Dia da Mulher (a data, por si, j� precisa ser questionada e elaborada, convenhamos) e, ora ora se meu line-up n�o era inteiramente composto por homens?! Convidei um poeta, um m�sico e mais algu�m que nem lembro quem. S� de pensar no flyer, todo bonito e colorido, convidando pra essa ‘homenagem’, me arrepia a espinha. 

Enganam-se voc�s que pensam que esta foi a �nica vez. Entre as muitas vergonhas que passei est�o as vezes que eu convidei mais homens do que mulheres para os eventos que organizei/participei e n�o entendi que isso era uma quest�o estrutural. Foram muitas.

'Mas, voc�s sabem, uso essa coluna tamb�m para me constranger e n�o os pouparia de dividir esses - e outros momentos que eu fracassei enquanto feminista'

 
Est�o tamb�m anos de consumo de livros, discos e obras feitas exclusivamente por homens. Est� no dia que bati em outra mulher em um evento, por causa de uma treta envolvendo um cara super machista e abusivo. Est� na exposi��o que fiz de outras pessoas sem o consentimento delas, num �mpeto justiceiro que sabe-se l� de onde surge. 

Mas, voc�s sabem, uso essa coluna tamb�m para me constranger e n�o os pouparia de dividir esses - e outros momentos que eu fracassei enquanto feminista. E vejam s�: eu estava tentando ser uma pessoa melhor. A minha inten��o foi a mais genu�na poss�vel e me garantiu alguns questionamentos, uma sa�da pela tangente e um inc�modo que passou a valer como um lembrete de que aquilo n�o poderia se repetir. 

Mas, sendo eu, humana, � claro que fracassei novamente. 

Como disse, j� bati em uma mulher na rua; quando adolescente, persegui outras jovens por ci�me das pessoas com quem eu estava saindo; ainda jovem, relativizei um estupro - e isso me assombra at� os dias atuais, sem a chance de falar sobre com quem sofreu. Julguei, publicamente, nas redes sociais, comportamentos que eu n�o teria - e de forma bastante violenta, usei a minha vis�o e experi�ncia no mundo para tentar exigir que outras mulheres fossem e agissem como eu. 

J� postei fotos sem roupa nas redes sociais, pro desgosto de quem defende que isso alimenta o patriarcado e s�. J� sa� com pessoas comprometidas. J� topei ser ‘a outra da rela��o’. J� contei que fui amante e tentei destruir relacionamentos.
 
J� fui uma engrenagem perfeita do patriarcado. J� rebolei (e ainda rebolo, confesso) a minha raba em festas ouvindo sons escritos por MCs pouco recomendados e com letra que podem ser entendidas como degradantes para os corpos femininos - e, at� ent�o, tenho dan�ado � entendido isso como a liberdade de p�r o corpo pra jogo a favor do prazer - e n�o s� do capitalismo. 

Sou o tipo de mulher que defende que existam mulheres que sim, querem se prostituir - e t� tudo bem em rela��o a isso. E repudio o argumento de degrada��o corporal, afinal, a grande maioria de n�s trabalha degradando o corpo em atividades que odiamos por no m�nimo 8h por dia, em nome da sobreviv�ncia, por que, quando envolve sexo - e talvez prazer - existe uma luta pela proibi��o?! 

O feminismo enquanto moralismo crist�o � uma arma poderos�ssima. Sou tamb�m o tipo de mulher que assiste porn� e gosta de BDSM. E sim, eu sei da degrada��o da ind�stria. Assim como voc�s tamb�m sabem da explora��o do trabalho no plantio e colheita de cana de a��car e seguem consumindo os produtos, certo? 

Me dou o direito de ser contradit�ria. De errar. De tentar e acertar. De mudar meus par�metros de consumo a partir do que consumo. Mas n�o esperem nada de mim. 

Passando um pano pra mim mesma, fiz muita coisa apostando que estava sendo coerente. Que aquele era o melhor jeito de lidar. Que, de acordo com a cartilha do feminismo que eu seguia, agredir e punir mulheres que n�o agiam de acordo com o que eu - e ‘meu grupo’ julg�vamos o certo, era o melhor caminho para ‘educar’. Resumido, fiz muita merda acreditando que aquilo era ser feminista. 

Isso faz de mim uma feminista fracassada. E que bom. 
 

'Fracassei e fracasso in�meras vezes tentando acertar e, talvez o grande acerto seja justamente esse: aceitar que pode existir ambival�ncia, abra�ar a vulnerabilidade e desistir de tentar ser uma feminista perfeita.'

 
Como sou fracassada, ainda posso julgar tamb�m, am�m. Vejo, em nome do feminismo - e do que chamam de sagrado, por a� - vendas de produtos, projetos e materiais car�ssimos e bastante inacess�veis, num blablabl� de tilel� gratid�o me d� nojo, mas que segue cooptando tantas outras mulheres em correntes, mandalas de prosperidade, corridas com lobos, leituras com bruxas e outras f�rmulas de aplicar golpes de forma legalizada atrav�s do Instagram e do funil de vendas. 

Fracassei e fracasso in�meras vezes tentando acertar e, talvez o grande acerto seja justamente esse: aceitar que pode existir ambival�ncia, abra�ar a vulnerabilidade e desistir de tentar ser uma feminista perfeita. 

Por�m, � quase contraproducente vir aqui e escrever um texto de cr�tica ao feminismo - ou aos feminismos, t�o m�ltiplos e plurais, em tempos de genoc�dio, �dio declarado �s mulheres, etc., no entanto, todos estes formatos que a� est�o, rezando suas cartilhas, cancelando pessoas no Twitter diariamente, dizendo o que podemos ou n�o fazer: desde tomar caf� e pagar boletos a depilar ou n�o nossos pelos e vestir ou n�o tal numera��o, nunca fizeram nada por mim. Tampouco por quem est� comigo. 

Inconsist�ncias in�meras que esbarro por a�, mas que seguem arrebanhando e usurpando mulheres e me irritando, m� feminista que sou e que me permito me indignar. 

A cada discuss�o que temos sobre tal artista poder usar ou n�o tal penteado no cabelo, as mulheres pr�ximas a mim seguem morrendo: de aborto provocado em casa, de feminic�dio, de suic�dio por n�o aguentarem mais, de tanto trabalhar pra que outras pessoas possam gastar horas nas redes sociais metendo text�o e milit�ncia vazia. At� queria, mas n�o consigo me identificar ou me sentir pertencente com  as v�rias correntes de um mesmo movimento que acabam desembocando em tudo que � transf�bico, racista e gordof�bico. 

Sobra teoria, leitura, semin�rios, discuss�es, text�es, IGTVs, canais no youtube e falta pr�tica. Falta a gente entender que feminismo � sobre a mulher ser n�o s� quem ela quiser ser, mas, sobretudo, quem ela puder ser. Ali�s, a fal�cia da falsa liberdade do ‘seja quem voc� quiser’, � tamb�m um ponto que precisamos conversar sobre, porque, na maior parte das vezes, as mulheres s�o quem elas conseguem ser, considerando que existe um abismo entre conseguir se manter viva num mundo que � obcecado com nossos corpos, com nosso sil�ncio e com tentativas m�ltiplas do nosso exterm�nio e conseguir gozar de qualquer pseudo liberdade que seja poss�vel. 

Por isso, num mundo em que temos coach e dicas para tudo, sobretudo para o sucesso, assumir o fracasso � ser real - o que mais buscamos aqui que n�o nos sentirmos vivos? Falo sobre isso, inclusive, na coluna da semana passada.  

Quero ser de verdade, ainda que isso signifique ser uma feminista fracassada. Fracassar pode ser, inclusive, uma tecnologia importante de sobreviv�ncia. O que seria da gente sem os fracassos? Sem as reflex�es ap�s os erros? 

Me dou hoje o direito de ser uma feminista fracassada. De n�o me identificar com alguma corrente espec�fica de um movimento que tem tantas regras que opera quase como uma constitui��o do medo. Ser� que serei punida se agir contra as regras das muitas cartilhas existentes por a�? Ser� que serei cancelada a qualquer momento?
 

'Tudo que quem nos governa (ou %u2018controla%u2019) tem como instrumento de regula��o � o nosso medo e, numa tentativa absoluta de fazer meu corpo existir tanto quanto minhas ideias, me liberto diariamente desse medo.'

 
Elimino o medo e funciono na base do nada a perder. Como escrevi na �ltima semana embasada no disco do Don L, por aqui “tem que f&der valendo a vida”, tem que fazer valer o risco. � p�nico de nada, saca? 

Tudo que quem nos governa (ou ‘controla’) tem como instrumento de regula��o � o nosso medo e, numa tentativa absoluta de fazer meu corpo existir tanto quanto minhas ideias, me liberto diariamente desse medo. 

Sem medo, posso dizer que sim, apesar dos meus erros enquanto mulher no mundo, sou uma feminista. Priorizo as mulheres em tudo que fa�o (apesar das contradi��es, claro), contrato mulheres, leio mulheres, crio projetos que pulverizam vozes m�ltiplas de outras mulheres (cis e trans, sempre), ou�o mulheres, tenho grupos de amigas, frequento grupos de leitura e de estudos. Escrevo sobre isso semanalmente. Luto contra a cultura do estupro. Contra o nosso silenciamento. Contra toda e qualquer tentativa de anula��o dos nossos corpos e exist�ncias. 
 

'Sou desagrad�vel. Sou a pessoa que causa clim�o na mesa, n�o s� do almo�o de domingo, com os tioz�es do pav� e aduladores do atual presidente do Brasil, mas no almo�o entre amigas que s� podem estar ali porque mulheres pretas est�o cuidando de suas crian�as, fazendo sua comida e mantendo sua casa limpa'

 
Me agarro a qualquer fa�sca de prazer existencial para contrapor toda tentativa de controle sobre nossas vidas e fa�o isso com todo meu corpo. Visto camisetas que lembram como � importante “lutar como uma garota”, ainda que muitas vezes eu seja contradit�ria e s� queria descansar e n�o lutar. Apesar disso - e do esfor�o que fa�o, di�rio - sou uma m� feminista, como diria a escritora Roxane Gay em livro hom�nimo. 

Sou desagrad�vel. Sou a pessoa que causa clim�o na mesa, n�o s� do almo�o de domingo, com os tioz�es do pav� e aduladores do atual presidente do Brasil, mas no almo�o entre amigas que s� podem estar ali porque mulheres pretas est�o cuidando de suas crian�as, fazendo sua comida e mantendo sua casa limpa. Sou indigesta entre meus amigues - todes, porque digo sobre coisas que n�o podem - ou n�o querem que sejam - ditas, como a forma como pessoas gordas s�o tratadas, como a inexist�ncia de espa�os, convites e afeto a este grupo. Sou intrag�vel porque aponto o uso de pessoas trans como joystick de divers�o em grupo atrav�s do riso provocado onde h� in�meras camadas de dor sobrepostas na exclus�o e anula��o subjetivas. 

N�o sou exatamente o tipo mais agrad�vel de pessoa. Nem a que sempre convidam. Digo o que sinto que deve ser dito - e tento deixar o ju�zo de valor do lado de fora, mas fa�o perguntas que renderiam boas sess�es de an�lise como: por que voc� acha gra�a do que voc� ri? - sobretudo se isso envolve pessoas - alarmantemente, mulheres. 

Penso que o feminismo real �, assim como eu, cheio de problemas. Passei da fase de querer cancelar as pessoas. Mas, n�o fa�o mais vista grossa. E nem me furto de dizer o que penso e acredito com o medo do ‘e se’. E se a pessoa n�o gostar mais de mim? E se ela n�o me amar mais? 

E se eu me calar em nome da continuidade das nossas agress�es e viola��es? � libertador - pra al�m do medo, que falei logo ali - saber que n�o quero seguir um ideal de feminismo. N�o quero ser cobrada pelo que consumo, n�o quero cobrar ningu�m mais pelo que essa pessoa faz. N�o quero me martirizar para ser sempre coerente. 

Por isso, sigo aqui, sincerona, acreditando que ainda temos essa ferramenta como forma de conquista de direitos para as mulheres - todas elas. Sem os clubismos regrados que tentam nos encaixar, pintando proibi��es - seja do lado de quem odeia as feministas, seja do lado de quem tenta burocratizar o pr�prio feminismo. 

Quero que o feminismo possa ser, de fato, uma rede de fortalecimento, para longe das experi�ncias e aprendizados nada sutis que tive. Todos esses ressentimentos fazem de mim, talvez, uma m� feminista. 

Entre os atravessamentos que tive, aprendi que o feminismo n�o me pouparia de ver minhas ‘amigas’ posarem em fotos ao lado da pessoa que havia sido abusiva comigo. Que o feminismo n�o me livraria do constrangimento que � fazer um boletim de ocorr�ncia e pedir uma medida protetiva. Aprendi, na pr�tica, que nenhuma teoria d� conta do que � se dar conta de que, naquele momento, voc� entrou para uma estat�stica - apesar de todo seu arcabou�o te�rico e de viv�ncia. O feminismo dos livros n�o me impediu de terminar no tribunal. E foi s� a soridade - o olho no olho - de amigas que v�o em shows de outros homens, que s�o h�tero, que n�o leem s� mulheres, que n�o me deixou cair. 

A gente segue morrendo e qualquer coisa que v� na dire��o de exigir perfei��o de acordo com o que temos como b�ssola � desumanizar e tirar alteridade � algo pelo qual eu luto contra. Tanto quanto nossa perda de direitos. Com o feminismo, na pr�tica, aprendi que um amigo - homem, h�tero, branco, cis, de classe m�dia - poderia ser mais acolhedor do que uma mulher, por mais contradit�rio que isso pare�a. 

E escrever isso, me digam voc�s, faz ou n�o faz de mim uma feminista fracassada? Aprendi, a duras penas, que n�o existe linearidade em “movimentos” que seguem em movimento, que abrigam pessoas, pessoas estas que t�m hist�rias e trajet�rias diferentes. E que bom. Isso permite escuta. Contradi��o. Ambival�ncia. Como � a vida. 

Contudo, de tudo que aprendi, o que mais me doeu foi que o feminismo n�o � um lugar para pessoas gordas. N�o h�, em nenhum mil�metro da ampla pauta que abriga v�rias correntes e interseccionalidades, um espa�o para que possamos discutir nossos corpos gordos sem que se lance m�o do card “mas e a sa�de?” e coisa e tal. Exaustivo pra caramba, como j� falei aqui tamb�m. 

Ser feminista n�o impediu uma escritora - e ‘amiga’ de botar o dedo na minha cara e me acusar de pl�gio da obra dela quando, claramente, eu me equivoquei na hora de escrever a legenda e uma rede social. 

Ser feminista n�o me impediu de sofrer uma s�rie de abusos ao longo da vida. F�sicos e morais. Haja div�, compromisso e disposi��o pra dar conta de tudo - al�m da palavra, da escrita, de colunas e voc�s, aqui, me lendo. Obrigada. 

Por essas e outras, n�o espere mais que eu v� apontar dedos, cobrar ou dizer como voc�s devem viver suas vidas. De cobran�as j� bastam os boletos. Se for pra seguir algo, que sejam os nossos sonhos. 

Escrevendo sobre, percebo, n�o h� um lugar confort�vel para se estar, dentro ou fora do feminismo. Ainda sim - e n�o sem ressalvas - sigo me dizendo feminista, porque � atrav�s deste enunciado que encontro a minha voz e ela faz coro com tantas outras. 

Como diria Roxane Gay no livro M� Feminista, “Espero o dia em que viveremos em uma cultura que n�o nos obrigar� a nos afastar do r�tulo de feministaa, uma cultura que n�o nos trar� medo de ficarmos sozinhas, de sermos muito diferentes, de querermos demais”. 

Eu tamb�m espero. E espero querer sempre mais. Um punho erguido - e tantos quantos forem poss�veis - pelos nossos direitos urgentes. Que permane�amos vivas. 

Se depois de ler isso tudo voc� tamb�m estiver se sentindo fracassada. Se, no �mpeto de ser - e se mostrar - mais feminista que as outras (� a armadilha do patriarcado a�) voc� botou o dedo na cara de outra mulher ou se articulou pelas costas para boicot�-la, t� tudo bem. Querer que seja diferente enquanto a gente tenta equilibrar pratos, lavar o ch�o, criar alguns filhos - nossos e de outras pessoas - gozar, ser feliz e escrever com consist�ncia te�rica, o mundo nos atropela e o que idealizamos acaba nos engolindo. 

Minha experi�ncia de vida me joga num lugar da permiss�o contradit�ria. E que bom.  Quero - j� falei e repito -  rebolar at� o ch�o ouvindo m�sicas sexualizantes. Quero transar como e com quem eu quiser,  mas quero tamb�m, cotidianamente, lutar e resguardar o direito das mulheres sobre seus corpos, incluindo o direito de terem o corpo que quiserem - e estejam consciente disso. Quero, sobretudo, que possamos ser quem somos - e n�o s� o que der pra sermos. E que tenhamos possibilidade de escolha. Sem que ningu�m - homens, mulheres, feministas - nos digam como devem ser nossos sonhos. 


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