
Existe um dilema na vida nacional que somente a antropologia social d� conta de perceb�-lo na sua dimens�o cultural: a contradi��o entre os aspectos autorit�rios, hierarquizados e violentos da nossa sociedade e a busca de um mundo harm�nico, democr�tico e n�o-conflitivo. O antrop�logo Roberto Da Matta captou esse dilema no livro Carnavais, Malandros e Her�is, de 1979, um cl�ssico da interpreta��o do Brasil. Na �poca, o carnaval de rua n�o era ainda a grande manifesta��o de massas que se registra hoje em praticamente todos os estados, por�m, os desfiles de escola de samba no Rio de Janeiro j� traduziam a alma de um Brasil mais profundo.
Este coment�rio de Henrique Brand�o, jornalista e um dos fundadores do bloco Simpatia � quase amor, me remeteu das redes sociais para a obra de Da Matta: “O que se viu e ouviu no Samb�dromo neste carnaval foram enredos criativos e, uma boa parte, autorreferentes. Mangueira, Tuiuti, Ilha e Tijuca usaram as comunidades de origem para contar suas hist�rias. Outras, falaram de personalidades com forte identifica��o com as localidades de onde surgiram as escolas, como Jo�ozinho da Gomeia (Grande Rio) e Elza Soares (Mocidade). O Salgueiro exaltou o primeiro palha�o negro do Brasil. Os ind�genas que habitavam o Rio antes da chegada dos portugueses foram cantados pela Portela. As Ganhadeiras de Itapu�, negras de ganho que compravam suas alforrias em Salvador, foi o tema da Viradouro.
A criatividade destes enredos se refletiu nos sambas, com uma safra de alto n�vel. Enfim, mesmo lutando contra a m� vontade do poder p�blico – principalmente do prefeito-bispo que demoniza o carnaval – as escolas sa�ram de suas zonas de conforto e foram buscar em suas ra�zes a chave para renovarem seus desfiles. H� muito n�o via um carnaval t�o bom na Sapuca�”.
Segundo da Matta, o lado autorit�rio e hierarquizado da sociedade brasileira tem tr�s dimens�es: uma ordem formal, baseada em posi��es de status e prest�gio social bem definidos, onde n�o existem conflitos e onde "cada um sabe o seu lugar"; uma oposi��o sistem�tica entre o mundo das “pessoas”, socialmente reconhecidas em seus direitos e privil�gios, e um universo igualit�rio dos indiv�duos, onde as leis impessoais funcionam como instrumentos de opress�o e de controle (“para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”); e o sagrado, onde se opera uma suposta equaliza��o da sociedade, j� que todos s�o filhos de Deus, mas ao mesmo tempo s�o mantidas estruturas claramente hier�rquicas de santidade.
Nesses sistemas, se estabelece uma tens�o permanente entre a vida dom�stica, na qual deve reinar a paz e a harmonia e cada um vale pelo que �, e a vida mundana, onde a batalha cotidiana pela sobreviv�ncia � an�nima, dura e impiedosa. Os privil�gios da elite do tipo “voc� sabe com quem est� falando” imp�em � maioria as rela��es de mercado e as regras da burocracia, restando ao cidad�o comum o velho “jeitinho” para minimizar as agruras da vida banal. � a� que o carnaval subverte tudo, pois � uma manifesta��o essencialmente igualit�ria, na qual a transgress�o e a liberdade traduzem para as ruas as rela��es espont�neas. O carnaval de rua cresce, inverte a ordem e mostra que continuamos a ser uma sociedade hier�rquica, desigual; na folia, as mulheres, os negros, os pobres e os exclu�dos assumem o lugar que quase sempre lhes � negado nos demais dias do ano.
Napole�o
Paradas militares, prociss�es e solenidades oficiais ritualizam e explicitam os aspectos hier�rquicos e autorit�rios da sociedade brasileira; a irrever�ncia dos blocos de rua e os her�is populares das escolas de samba, o seu oposto. O carnaval � essencialmente igualit�rio e, nos seus tr�s dias, dramatiza e transp�e para o mundo da "rua" os ideais das rela��es espont�neas, afetivas, e essencialmente sim�tricas que s�o o outro lado da ordem imposta de cima para baixo.
Na antropologia, a “cultura” � um conceito chave para a interpreta��o da vida social, n�o � uma forma de hierarquizar a sociedade. N�o marca uma hierarquia de “civiliza��o”, mas a maneira de viver de um grupo, sociedade, pa�s ou pessoa. � justamente porque compartilham de parcelas importantes deste c�digo (a cultura) que indiv�duos com interesses e capacidades distintas e at� mesmo opostas transformam-se num grupo e podem viver juntos como parte de uma mesma totalidade.
Segundo Da Matta, desenvolvem rela��es entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos de comportamento diante de certas situa��es. A cultura n�o � um c�digo que se escolhe simplesmente. � algo que est� dentro e fora de cada um de n�s.
Segundo Da Matta, desenvolvem rela��es entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos de comportamento diante de certas situa��es. A cultura n�o � um c�digo que se escolhe simplesmente. � algo que est� dentro e fora de cada um de n�s.
O presidente Jair Bolsonaro passou o carnaval em Guaruj�, n�o gosta de desfiles de escolas de samba, prefere as paradas militares. O carnaval � a nega��o de tudo o que ele pensa. Como primeiro mandat�rio da Na��o, por�m, deveria prestar mais aten��o ao recado dos foli�es, compreenderia melhor o nosso povo e suas aspira��es mais profundas. Entretanto, enquanto o povo se divertia, endossou pelas redes sociais a convoca��o de uma manifesta��o para fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Como quem prepara um “coup d’�tat”, Bolsonaro testa suas cadeias de comando e capacidade de mobiliza��o, numa afronta � Constitui��o de 1988. Com todo respeito, nesse “apronto”, vestiu a fantasia de Lu�s Napole�o.