
Para quem leu Todos os homens do Kremlin (Editora Vest�gio), de Mikhail Zygar, ex-editor-chefe da �nica emissora de TV independente da R�ssia, a TV Rain (Dozhd), o paralelo com o presidente Jair Bolsonaro e sua atua��o no poder � inevit�vel, resguardadas, � �bvio, as diferen�as de contexto hist�rico e nacional. Como Putin, Bolsonaro se tornou presidente porque soube aproveitar a oportunidade, bafejado pela fortuna. Diferentemente do presidente russo, por�m, n�o era um candidato do sistema: o homem certo na hora certa para o ent�o presidente Boris Yeltsin, o pol�tico carism�tico, beberr�o e imprevis�vel, que implodiu a antiga Uni�o Sovi�tica, destronando Mikhail Gorbatchov, e liderou a transi��o selvagem para o capitalismo na Federa��o Russa. Bolsonaro foi um candidato antissistema, que surfou o tsunami eleitoral de 2018 na onda da insatisfa��o popular com os pol�ticos gerada pela Opera��o Lava-Jato.
As semelhan�as s�o maiores quando levamos em conta que Putin n�o tinha uma estrat�gia de poder, foi administrando as circunst�ncias para mant�-lo. Ex-chefe da FSB, usou a for�a do Estado para afastar aliados indesej�veis, proteger os amigos de S�o Petersburgo e da antiga KGB, seduzir os militares e liquidar os advers�rios. Os instrumentos de coer��o do Estado – os servi�os de intelig�ncia, a pol�cia, o Minist�rio P�blico e o Judici�rio – foram fundamentais para a consolida��o de sua longa perman�ncia no poder, depenando oligarcas que se apoderaram das estatais russas, favorecendo os empres�rios amigos e eliminando poss�veis concorrentes eleitorais. Putin acreditou que seria bem recebido pelos l�deres das grandes pot�ncias ocidentais, mas logo se viu frustrado por Angela Merkel, a primeira-ministra alem�; N�colas Sarkozi, o presidente franc�s; e, principalmente, Barack Obama, o presidente negro dos Estados Unidos.
Arreganhou os dentes quando chegou � conclus�o de que todos queriam enfraquecer a Federa��o Russa e afast�-la das antigas rep�blicas sovi�ticas. E de que o menosprezavam, tratando-o como um personagem menor na cena internacional. Esse sentimento de rejei��o somente aumentou ao longo dos anos, mas teve como resposta o endurecimento da pol�tica externa russa em rela��o �s ex-rep�blicas sovi�ticas da Georgia e da Ucr�nia e ao Oriente M�dio. A decis�o estrat�gica de manter o ditador da S�ria, Bashar Hafez al-Assad, no poder a qualquer pre�o, e assim preservar sua base naval no Mediterr�neo, foi uma demonstra��o de for�a; da mesma forma, a divis�o da Ucr�nia, com a separa��o de Donetz, e a anexa��o da Crimeia como uma rep�blica aut�noma da Federa��o Russa, com o prop�sito de manter a grande base naval da frota do Mar Negro. Por �ltimo, o apoio econ�mico e militar a N�colas Maduro, na Venezuela, quando parecia que o chavismo iria desabar.
Reelei��o
No terceiro mandato de presidente, a rela��o de Putin com o ex-presidente liberal Dmitri Medvedev, com quem tamb�m se revezou no cargo de primeiro-ministro, hoje � de estranhamento. Na verdade, sempre foi tensa, como a de Bolsonaro com o vice-presidente, Hamilton Mour�o, um general de quatro estrelas. Putin afastou todos os aliados com pol�tica pr�pria ou a lhe fazer sombra. Bolsonaro fez a mesma coisa. Come�ou com o general Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, hoje ocupada pelo general Luiz Ramos, principal articulador pol�tico do governo, e o advogado Gustavo Bebiano, secret�rio-geral da Presid�ncia, j� falecido, defenestrado para dar lugar a um ex-assessor parlamentar de inteira confian�a, Jorge Oliveira. O ex-deputado Onyx Lorenzoni foi deslocado da Casa Civil para o Minist�rio da Cidadania, para dar lugar ao general Braga Neto. Os ministros da Justi�a, S�rgio Moro, e da Sa�de, Luiz Henrique Mandetta, no auge do prest�gio, tamb�m foram defenestrados, sendo substitu�dos pelo advogado da Uni�o Andr� Mendon�a e outro general, Eduardo Pazuello, respectivamente, dois bem mandados.
Deputado ligado ao baixo clero durante toda a sua trajet�ria, para neutralizar qualquer tentativa de impeachment, Bolsonaro montou uma base parlamentar com os partidos do Centr�o, cujos l�deres — Gilberto Kassab (PSD-SP), Roberto Jefferson (PTB-RJ), Valdemar Costa Neto (PR-SP) e Ciro Nogueira (PP-PI) — apoiam qualquer governo. Trocou os desastrados deputados de extrema-direita, que defendiam o seu governo no Congresso, por raposas moderadas do parlamento: Ricardo Barros (PP-PR) na C�mara, Fernando Bezerra (MDB-PE) no Senado, e Eduardo Gomes (MDB-TO) no Congresso. E est� fritando o ministro da Economia, Paulo Guedes, uma economista ultraliberal, cada vez mais isolado no governo, no qual as estrelas em ascens�o s�o os ministros Tarc�sio de Freitas (Infraestrutura) e Rog�rio Marinho (Desenvolvimento Regional), cada vez mais influentes na pol�tica econ�mica do governo, como o discreto ministro de Minas e Energia, almirante Bento de Albuquerque.
Qual foi a estrat�gia de Putin para manter sua popularidade ao longo de duas d�cadas? Domar o parlamento, controlar o Judici�rio, estreitar a alian�a com a Igreja Ortodoxa, estimular o nacionalismo russo e o conservadorismo machista e homof�bico. Putin transformou a jovem democracia russa numa ditadura da maioria, na qual assume um papel cada vez mais autocr�tico.
Cada vez mais populista, Bolsonaro recuperou a popularidade apesar da pandemia e s� pensa na reelei��o, que parece ao alcance das m�os. O que acontecer� com a democracia brasileira se Bolsonaro controlar o Judici�rio e passar o rodo no Congresso em 2022, como deseja?
