
Com a pandemia ficando cada vez mais longa, tendo mais d�vidas que certezas, aumentam a solid�o das pessoas, a intoler�ncia com o isolamento, a vontade de sair. E uma das palavras mais repetidas, todo dia repetida, � casa. Ficar em casa, cansar de ficar em casa, n�o sair de casa. Mas ter uma casa n�o � o sonho de todos? Ficar onde voc� sonhou n�o est� sendo agrad�vel? � isso?
O problema seria f�cil se fosse s� isso, mas est� al�m, muito al�m. � que a gente vai percebendo que casa n�o � s� espa�o f�sico, n�o � ter paredes que dividem os c�modos, banheiro, cozinha, quartos. Hoje, o que incomoda na casa n�o � o sof� que foi comprado h� pouco tempo, ou o que andava pedindo uma reforma. O problema � n�o ter ningu�m assentado no sof�. N�o � isso que d�i?
Onde est� o di�logo na sala de visitas? A cadeira em que o primo sentava para tocar viol�o e fazer todo mundo cantar? Onde os netos fazendo acampamento na sala? O genro vendo futebol pela TV? Assim, v�-se que a murmura��o vem de todas as dire��es. De quem mora no acanhado apartamento na periferia e de quem reclamava da demora na fila do banheiro. De quem tem rede para dormir na varanda ap�s o almo�o de domingo. De quem achava que a casa estava velha demais, com trincas demais. Do refinado apartamento na zona nobre da cidade, da casinha pequenina na tamb�m pequena cidade do interior.
Gente que, estando em casa, n�o consegue se concentrar na leitura de um livro, foge de qualquer filme triste ou de terror, n�o se distrai mais com a TV, n�o v� o tempo passar. Idosa que, sozinha, arruma a casa, passa, lava, cozinha e ainda sobra tempo para murmurar. “Mas quando � que isso acaba?” Pai que se esfor�a para inventar brincadeiras com o filho, ele trabalhando em casa, o filho sem escola. M�e que n�o sabe como explicar para a filha que gripe � essa da vov� que n�o sara e ningu�m pode v�-la.
Quando crian�a, lembro-me de um quadro na parede da copa da minha tia, no interior. “O mundo todo n�o vale o meu lar.” Ent�o, por que essa tristeza dentro do lar? Porque descobrimos que lar � feito de pessoas, mesmo que se tenha a gra�a de conseguir morar na casa dos sonhos. S�o as pessoas em volta da mesa que tornam saborosa a ceia, as crian�as dormindo no quarto que fazem a noite brilhar. Lar � eu e voc�, tu e ela, eles e v�s. Lar � poder sair de casa, pegar o carro, o �nibus, e entrar na casa da amiga, da madrinha, do pai e, com eles, sermos n�s.
A casa influencia em n�s mesmos muito menos do que n�s influenciamos nela. � a nossa tristeza que faz toda a casa parecer triste. Assim como a casa � constru�da aos poucos para durar para sempre, � com o afeto que vamos construindo o lar, cada dia alicer�ando os la�os, tecendo os sonhos uns dos outros, reformando a sala, aumentando o port�o de entrada para que ele fique bem largo para recebermos as pessoas de bra�os abertos, sempre sorrindo.
Ter casa todo mundo quer. Inclusive os animais. Como o jo�o-de-barro, a ave s�mbolo da Argentina, que vai construindo com paci�ncia seu ninho em forma de forno usando palha, esterco e pequenos galhos, passando quase todo o ano envolvido na constru��o e at� interrompendo o trabalho quando falta barro. E, casa pronta, canta nas horas mais quentes e claras do dia, na porta do ninho, com certeza de alegria. Ou como as formigas, que fazem dos formigueiros verdadeiras obras de engenharia, com um complexo sistema de t�neis e c�maras.
Quer um ninho o pardal, quer um t�nel o tatu, mas s� o homem quer um lar. Por isso, seria bom se, durante essa dif�cil pandemia, que se prolonga e prolonga, a gente adotasse uma nova hashtag: Fique no lar. � nesse lar que precisamos adubar o jardim para que ele d� flores em abund�ncia. � nesse lar que vamos plantar s�lidas vigas de jatob� para nos sustentar e nos proteger contra as tormentas.
A casa do jo�o-de-barro � de barro, a casa do pardal � de gravetos, penas, cordas e papel. A casa do homem � o lar, onde habita seu cora��o.