
Nos �ltimos dias, a escalada de provoca��es entre EUA e China s� faz aumentar. Em grande parte, o show de besteira � para consumo interno nos dois pa�ses. Ambos t�m a tradi��o de um nacionalismo forjado contra um inimigo estrangeiro. � o que atrai a aten��o das pessoas que acham que patriotismo exige destempero. Assim como boa parte dos brasileiros � obcecada por intrigas e esc�ndalos dom�sticos que tenham efeito sobre pequenas distribui��es de poder, chineses e americanos s�o talhados na l�gica do “meu pa�s contra o mundo.”
Obcecados que ficam com a ideia de uma tramoia estrangeira contra eles, acabam eles mesmos perturbando a paz do resto do mundo.
Em tempos de grave crise econ�mica, o Partido Comunista Chin�s serve-se da mobiliza��o patri�tica para sustentar sua legitimidade. De 1978 para c�, a China abra�ou uma globaliza��o superliberal e cavou com engenharia e estrat�gia um lugar especial para suas empresas nas engrenagens da economia global. Seu sucesso � simbi�tico com os EUA, que, l� nos idos dos anos 1970, foi com umas ideias na cabe�a propor um verdadeiro casamento com a China. E assim foi feito. Ningu�m teria iPhone hoje em dia se isso n�o tivesse sido feito. Se iPhone � bom ou ruim, j� � uma outra hist�ria.
S�nicos como s� eles (com “c” muitos outros s�o), alguns chineses gostam de uma express�o de quatro palavras sobre o recorrente dissenso em rela��es de fraterna interdepend�ncia. “Mesma cama, diferentes sonhos.” Virou inclusive o t�tulo de um livro nos anos 2000 de um dos principais sin�logos americanos, David Lampton, que ainda tem humor para ver como s�o fr�geis as bases estrat�gicas do conflito. Muitos outros lucram migalhas ao aquiescer que “de fato daqui para frente � muita competi��o e pouca coopera��o.”
No caso dos EUA, para al�m de um gosto por a��es unilaterais que reafirmam e testam em que p� se encontra a for�a do pa�s, existe uma l�gica entre os que veem o mundo como complicado demais. � a l�gica de que tudo se resolve se conseguirem o consentimento da Europa. N�o s� essa � uma aritm�tica simplista, simpl�ria e furada, mas esquece que a Europa tamb�m tem l� o sonho dela. E o casal franco-alem�o est� fazendo os esfor�os para n�o deixar o continente cair. Porque se a Uni�o Europeia cair, nenhum pa�s europeu individualmente ter� peso suficiente para definir as regras do jogo da interdepend�ncia global. Enfim, o principal ponto de influ�ncia dos EUA na UE era o Reino Unido, que j� n�o faz mais parte. A tend�ncia � que se a UE sobreviver ser� mais coesa e opinativa.
Al�m do mais, os EUA podem estar entrando numa rota de conflito com a China, mas n�o h� sinal de que exista sequer consulta com os europeus. � sobretudo uma pol�tica externa que serve a uma agenda dom�stica de muito curto prazo. Associada a setores da economia que preferem lucrar de forma irrespons�vel a pensar em algo realmente sustent�vel. O problema do curto prazo virou carrasco da civilidade global. E a China pela primeira vez se coloca como desejosa de bancar – o pouco, ou quase nada que custa – a estabilidade de longo prazo.
Isso ocorre agora n�o porque ela n�o quisesse antes. Mas porque seria il�gico ver os EUA abrirem m�o do que constru�ram. As organiza��es internacionais est�o todas a�. � barato assumir. Como � barato comprar uma empresa que ficou sem caixa numa crise. E est� podendo fazer isso avan�ando sobre Hong Kong. Porque os EUA querem simplificar a vida com cada um com seu quintal, sem essas reuni�es chatas do condom�nio multilateral da ONU.
O estranho � que, como diz Jason Furman, que foi presidente do Conselho de Consultores Econ�micos dos EUA no passado, o custo da d�vida � nulo para os EUA, pois o mundo est� organizado em torno do d�lar. E a moeda real no final das contas � legitimidade e credibilidade do poder de quem a emite. Abrir m�o disso � uma idiossincrasia bem curiosa.
Estrat�gias pol�ticas baseadas apenas em pesquisa de opini�o podem parecer racionais, mas representam o fim da estrada para a��es que promovam o interesse nacional. Por conta do pr�prio atabalhoamento do presidente na condu��o da quest�o, a oposi��o consegue colar nele a imagem de que os problemas sociais e econ�micos resultantes da pandemia s�o raz�es para que ocorra uma troca de governo nas elei��es deste ano.
Em tal contexto, simula��es de pesquisas de opini�o concluem que de fato a situa��o degringolou e s� a ideia de um inimigo salva. A China est� ali pronta para ser a respons�vel pelos problemas. Pensando longe, Pequim j� decidiu apoiar Trump. Ao custo de entregar de m�o beijada o que resta das estruturas que organizam a interdepend�ncia global.
*Paulo Delgado, soci�logo