
Em frente a TVs e redes sociais do interior do estado de Nevada, Trump reclamou que sua equipe n�o o deixara pousar com o Air Force One no aeroporto do condado em que realizava o com�cio. Fingiu que n�o sabia que a pista n�o tinha capacidade para receber o 747 presidencial. Fez charme ao resmungar que gostava de ter o Air Force One atr�s de si nos com�cios.
� o estilo dele, que vem do setor de lan�amentos imobili�rios. Considera-se uma cobertura. Afinal, em Nevada fica a torre dourada com seu sobrenome no topo. Agora presidente, seu s�mbolo preferido � o que projeta a soberania da Presid�ncia, confundida com sua personalidade. N�o podendo ter o avi�o pelas costas, mandou estacionar atr�s de si a limusine presidencial. Um Cadillac conhecido como The Beast . “Vejam a Besta. O que voc�s n�o sabem � que a Besta custa quase tanto quanto o avi�o,” exclamou Trump, tentando se equilibrar entre frustra��o e encantamento com sua r�gua mo- net�ria. E viu seu povo achar sentido em um avi�o custar o mesmo que um autom�vel.
“Daqui pra frente ser� apenas Am�rica em primeiro lugar. America First,” repetiu Trump seu discurso de posse. A ideia de America First veio do primeiro l�der americano que gostava de fazer com�cios em frente a um avi�o. No caso, Charles Lindbergh, era um aviador e primeiro a atravessar sozinho o Atl�ntico. Nunca chegou perto da possibilidade de concorrer � presid�ncia, salvo no romance Compl� contra a Am�rica, de Philip Roth.
O fetiche de um l�der que pousa dos c�us com a mensagem � antigo. Mas, semana passada, na primeira vez em que l�deres do mundo n�o puderam pegar um avi�o e ir a Nova York para discursar na ONU, o que impressiona � a disson�ncia internacional sobre o sentido dado � palavra soberania no vocabul�rio do poder.
J� � padr�o admitir que, dentro dos pa�ses, as pessoas t�m ideias muito variadas sobre democracia. Mas entre pa�ses, o que pega � a varia��o de sentido em torno do conceito de soberania. A ideia cl�ssica de soberania como o Estado ter autoridade m�xima sobre tudo o que existe dentro de seu territ�rio, e n�o aceitar interfer�ncia de outros Estados em seus assuntos dom�sticos, ainda � a cartilha seguida por muitos pa�ses. Entretanto, soberania j� � outra coisa.
Roland Paris, que foi assessor para assuntos internacionais e de defesa do primeiro-ministro canadense Justin Trudeau, considera que a reafirma��o por parte de R�ssia, China e EUA de vers�es de soberania s�o extralegais e org�nicas. Nessas vers�es, o exerc�cio da verdadeira soberania est� acima da lei e se expressa em nome de um povo em busca de grandioso destino coletivo. Se os canadenses est�o preocupados, o cons�rcio nipo-brit�nico que controla o jornal Financial Times de Londres tamb�m est�. O problema da jurisdi��o extraterritorial, mandar na casa dos outros, que alguns pa�ses est�o clamando para si, � um prato cheio para escancarar a lei do mais forte.
Esse fen�meno est� se espalhando em diferentes �reas do mundo que n�o t�m clareza sobre o que � soberania. Semana passada, entrou em vigor a Lei geral de Prote��o de Dados (LGPD) brasileira. O Brasil, que n�o teve for�a para determinar a localiza��o dentro do pa�s dos dados gerados no pa�s, colocou na LGPD que ela se aplica tamb�m extraterritorialmente. Estados soberanos n�o escrevem que o le�o miou. Confrontados � que sabemos se � um gato rugindo.
Trump est� testando o exerc�cio da soberania dentro do pr�prio territ�rio para ver se � le�o ou gato diante do mundo. N�o esconde sua grande admira��o por Putin, da R�ssia, e Xi, da China. Para se equiparar aos dois, quer que os norte-americanos aprovem a institucionaliza��o da sua dubiedade sobre soberania interna e internacional. A melhor tradi��o dos EUA � a ideia de que a soberania do governo, sobretudo da presid�ncia, permane�a sob a �gide da intensa desconfian�a na sua atua��o dom�stica. Compensada por amplos poderes para a atua��o externa, inclusive para errar, como no Vietn� e no Iraque. Domesticamente, os EUA se orgulham de ser a terra das pessoas livres e onde o governo atua sob o imp�rio da lei.
Por outro lado, internacionalmente, o governo americano tem poucas amarras no exerc�cio de sua soberania, protegida por atos secretos. A releitura de Trump sobre a legitimidade da soberania presidencial em solo americano ainda � bal�o de ensaio. Na R�ssia e na China, j� s�o a regra. Mas faz muito tempo que essa possibilidade paira sobre os EUA.
Est� a pleno vapor no mundo o desmoronamento do conceito interno de soberania popular. A rendi��o interna � soberania do governante � uma capitula��o da democracia que cada vez mais se materializa no mundo. (Com Henrique Delgado)
PAULO DELGADO, Soci�logo
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