
Drauzio Varella disse recentemente que a morte n�o nos comove mais. Uma declara��o forte que nos p�e para pensar. Criamos defesas contra o sofrimento ficando insens�veis? Nada nos abala mais? � bom destacar que nem todos e todas... Ainda bem!
Os sintomas ps�quicos freudianos s�o constitu�dos a partir de traumas considerados acontecimentos de corpo e base de toda neurose. E esta base est� sempre associada � sexualidade humana, que desperta no corpo efeitos surpreendentes e inesperados. Estes efeitos s�o traum�ticos e ficam marcas dele inscritas no inconsciente.
Mesmo esquecidos ou, como dizemos, recalcados, permanecem ativos, embora inconscientes, e esperam oportunidade de retornar � luz da consci�ncia.
Os sonhos, por exemplo, s�o uma das formas deste retorno, camuflados em deslocamentos e condensa��es para fugir � censura da consci�ncia. Tamb�m os sintomas ps�quicos, assim como a febre e a dor para a medicina, apontam para algo que n�o anda bem. Produzem mal-estar e nos levam ao cerne do que cada um sofre e, por isso, busca tratamento.
O traumatismo, o que �? Segundo a psicanalista Colette Soler, � uma efra��o de uma viol�ncia, um excesso que assalta o sujeito e seu corpo, o surpreende e que � causa de pavor. O real imposs�vel de suportar deixa marcas.
Nada mais nos comove? Desde o s�culo 20, na hist�ria da humanidade, fomos assaltados pela Primeira Guerra Mundial, em 1914, causando as neuroses de guerra; e a Segunda Guerra, que produziu efeitos traum�ticos intensos. Sobreviventes judeus foram marcados pela culpa.
Outras conjunturas violentas e dif�ceis de suportar foram as guerras do Vietn�, do Golfo, �rabe-israelense e do Iraque, o acidente nuclear de Chernobyl, o ataque de 11 de Setembro. Tamb�m a peste negra, febre amarela, gripe espanhola.
Tivemos cat�strofes naturais tipo tsunamis, terremotos, inunda��es, a recente trag�dia de Brumadinho, etc. E, finalmente, um ano de COVID-19, alta mortalidade, isolamentos, lockdowns, m�scaras, sem abra�os e amigos.
Diante de tantas perip�cias hist�ricas, estamos escaldados. O discurso capitalista e os aparelhos do Estado promoveram um tipo de absor��o do trauma como parte integrante da vida, uma normaliza��o do trauma.
Homologaram o fato traum�tico. Eles o reconheceram e o tomaram como normal, deram-lhe legitimidade – quando se pode indenizar de certa maneira, produz-se esta normaliza��o do trauma. O trauma depois disto muda de cara, vira do avesso, de dentro para fora, e sofre uma banaliza��o. Tornou-se trivial.
Indenizar � quase uma admiss�o desmentida, uma nega��o do fato, porque se tampa o furo com ganhos consoladores. A p� de cal em cima do buraco. Em ondas, v�m outros. A informa��o permanente bombardeia.
Ainda assim, n�o deixou de arrancar efeitos. Muitos ainda se comovem. Mas houve, sim, um rebaixamento no limiar traum�tico que permitiu ao traumatismo se difundir em nosso cotidiano. N�o perdemos a capacidade de reagir quando os acontecimentos s�o insuport�veis. Por�m, estamos uns exauridos outros calejados.
Cada dia assimilamos mais r�pido o horror. Estamos em pleno momento traum�tico e ansiog�nico. Lidar com o real – imposs�vel de suportar, que nos arromba, estressa e � imposs�vel de abstrair – nos fragiliza. O trauma, antes inscrito no inconsciente, agora nos atinge da realidade concreta.