O Brasil est� sofrendo de graves problemas econ�micos e sociais, que deveriam ser suficientes para nos ocupar a todos. No entanto, nossa vida p�blica est� envolvida em desencontros e insensatez. Todas as sociedades humanas, desde a mais remota hist�ria at� os dias de hoje, combinam em algum grau os instintos de competi��o e de coopera��o. A prova que a coopera��o prevaleceu na maior parte do tempo s�o os progressos materiais e culturais que separam o homem primitivo dos contempor�neos. Progressos que n�o teriam sido poss�veis se os homens tivessem vivido permanentemente lutando e se destruindo uns aos outros. Vez por outra, no entanto, o esp�rito de conflito consegue predominar sobre os la�os da solidariedade e da coopera��o, tornando as crises sociais e pol�ticas dif�ceis de serem tratadas. Em alguns casos, as for�as da ruptura t�m ra�zes antigas e profundas, como � o caso de sociedades divididas historicamente por conflitos �tnicos e culturais, incapazes de sobrepor a eles os la�os universais de humanidade que igualam toda a condi��o humana. Em outros casos, como o nosso, os conflitos se d�o ao longo de divis�es ideol�gicas inventadas pelos homens, cria��es puramente ficcionais, usadas para dividir e conquistar. Vivemos nesses �ltimos anos uma crise econ�mica severa, com as atividades produtivas estagnadas e muitos milh�es de cidad�os sem emprego ou com renda insuficiente para atender aos padr�es m�nimos de bem-estar. Esse estado de coisas tem desafiado os governos, parecendo um enigma que, se n�o for decifrado, pode levar nossa na��o � ru�na. Para construirmos sa�das precisamos de todos, de muita coopera��o e fraternidade. N�o � isso que estamos vendo. Nos �ltimos 60 dias, o que nos separa est� aumentando, por iniciativa dos lados em disputa. As na��es mais bem-sucedidas t�m sido aquelas nas quais o sistema pol�tico processa civilizadamente as diferen�as de opini�es e de interesses, num acordo de regras em que se op�em advers�rios, que se procura vencer, e n�o inimigos, que � preciso destruir ou eliminar. Nelas, os advers�rios se alternam no poder e as pol�ticas p�blicas acabam por ter algum grau de continuidade. Mal encerramos as elei��es e inauguramos um novo governo, e j� as pessoas est�o voltando �s ruas, para protestar contra ou a favor, como se as institui��es democr�ticas n�o servissem para governar. Salvo em momentos raros e ocasionais, as multid�es nas ruas n�o constroem nada de proveitoso e respons�vel. Elas servem apenas para aprofundar as divis�es pol�ticas e n�o ajudam � forma��o dos consensos m�nimos, sem os quais os governos democr�ticos n�o funcionam. Quando mais precisamos de acordo e de fraternidade para resolver nossos problemas, a manifesta��o de 30 de junho exibiu grandes cartazes pregando o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF). Pediam que o governo ficasse livre de limites, para exercer um poder incontrast�vel, fora e acima da Constitui��o. Para fazer o que com esse poder supremo? Para que agenda ou para quais prop�sitos? N�o havia cartazes explicitando esses detalhes, que n�o s�o desimportantes. Valeriam eles o pre�o das liberdades? O Poder Legislativo e o Poder Judici�rio existem h� s�culos no mundo civilizado, justamente para limitar o poder pessoal no governo e para proteger os direitos individuais. Ser� que o que nos falta hoje � mais poder pessoal ou o fim dos direitos? Ser� essa a vontade da maioria dos cidad�os, ou � apenas a aud�cia de uma minoria, querendo impor a todos o seu mundo mental? Um livro interessante que acabei de ler, O povo contra a democracia, do cientista social Yascha Mounk, professor nos Estados Unidos, revela como ultimamente tem sido o pr�prio povo que amea�a os sistemas democr�ticos, n�o os militares ou os autocratas, como antigamente. Hoje, as autocracias, abertas ou disfar�adas, t�m se constitu�do por meio dos pr�prios processos democr�ticos. O poeta irland�s Yeats advertia: quando as multid�es chegam tudo pode acontecer. Eu completo: menos a paz e o progresso humano!