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Conto de Natal

"Eu queria acreditar na �rica, mas sabia que os pacotes de fralda e latas de leite s�o aceitos como moeda de troca pelos traficantes"


25/12/2022 04:00

Ilustração

 
O conto de Natal estava me esperando do outro lado da rua. Bastou eu virar a esquina e a protagonista dessa hist�ria veio me abordar. Roupas gastas, olhar aflito, p�s no ch�o, descal�os. Poderia perfeitamente se chamar Maria, mas atendia pelo nome de �rica. “�rica com ‘c’”, disse ela, para, em seguida, se arrepender. “Desculpa, dona. A senhora nem me conhece e fico tomando o seu tempo com coisas bobas. � que tenho epilepsia e n�o estou raciocinando direito”, completou. 
 
Cheia de sacolas, sombrinha e de pressa, em plena semana do Natal, parei assim mesmo para ouvi-la. Pedi a ela que ficasse tranquila e elogiei o seu nome. Ela abriu um sorris�o e disse que o filho tamb�m se chamava Eric, com ‘c’. Tinha apenas 3 anos, mas era muito esperto. “Voc� acredita que um dia ele pegou a lata de leite em p� e preparou sozinho o lanche para a av� doente?”, disse, com orgulho. 
Depois, tornou a pedir desculpas. Contou que tinha acabado de percorrer a rua, batendo de casa em casa, mas n�o tinha conseguido dinheiro para levar o leite do filho. Eu me lembrei da hist�ria do nascimento de Jesus. A jovem Maria batendo de porta em porta pedindo ajuda para acolher o filho que estava nascendo. Nenhuma porta se abriu. 
 
�rica tamb�m estava na rua. Tinha fome, cansa�o e as roupas molhadas de chuva e de urina. Voltou a fazer o seu pedido. Eric precisava tomar um leite especial e que custava mais caro, pois tinha intoler�ncia � lactose. “At� agora consegui 11 reais e setenta centavos. Vou dar para a senhora inteirar o valor”, disse ela, j� tirando do bolso moedas e notas amassadas. 
 
Confesso ter ficado desconfiada. N�o daria a ela o dinheiro, mas poder�amos ir at� a farm�cia mais pr�xima, aonde eu poderia comprar o tal leite. No caminho, descobri que �rica sofria de epilepsia, que n�o estava fazendo acompanhamento m�dico e nem conseguia arranjar emprego. “Minha m�e n�o aceita a minha doen�a, diz que sou a vergonha da fam�lia.”
 
“Querida, h� quanto tempo voc� est� usando crack?”, perguntei, observando os dentes amarelados, unhas dos p�s e das m�os quebradi�as, manchadas de marrom. Eram sinais de que ela havia trope�ado na pedra. “Deve ter uns cinco anos”, confessou ela. Vivia nas ruas e deixava o filho com a av�, pois n�o tinha condi��es de cuidar dele. Mas fazia quest�o de levar o leite. Duas latas por m�s.
 
Eu queria acreditar na �rica, mas sabia que os pacotes de fralda e latas de leite s�o aceitos como moeda de troca pelos traficantes. Falo sobre isso no meu livro “O crack como ele �”, resultado de uma s�rie de reportagens publicada aqui, no jornal Estado de Minas. Desde ent�o, evito dar dinheiro ou produtos aos que me pedem ajuda nas ruas. Prefiro pagar um lanche ou almo�o, ou fazer a��es de caridade nas institui��es, presencialmente. 
 
Os usu�rios de crack podem ser bem manipuladores, mas �rica tinha algo de diferente. “Sei que voc� vai trocar as latas de leite por droga”, acusei. �rica teve uma rea��o inesperada. N�o ficou surpresa, nem com raiva. Ficou triste. “Voc� tamb�m n�o acredita em mim”, disse. E come�ou a falar que me daria o endere�o e que eu mesma poderia levar as latas de leite para o filho. Tornou a tirar os trocados do bolso para completar o valor. 
 
Foi a minha vez de pedir desculpas. J� est�vamos na porta da farm�cia. Peguei o produto, passei no caixa e paguei no cart�o de cr�dito. Duas latas, em vez de uma s�. “Sei que voc� pode sair dessa, querida. Conhe�o pessoas que podem te ajudar a se desintoxicar, a fazer um tratamento para epilepsia, a mudar de vida. Voc� quer?” 
 
�rica perguntou para quando seria isso, se poderia ser ainda nessa semana. Ela n�o tinha no��o de tempo e nem se lembrava de que seria Natal. Peguei o n�mero do telefone da m�e dela. Antes de me despedir, fiz quest�o de dizer que acreditava nela, mas, no fundo, sabia que isso n�o era totalmente verdade.
 
Liguei no dia seguinte e conversei com a m�e da �rica. Informei-lhe os contatos de uma pessoa disposta a ajudar. A mulher n�o sabia do paradeiro da filha. Ela morava nas ruas e costumava aparecer de vez em quando para ver o filho. Ela tinha estado l� naquela noite, mas n�o havia ningu�m em casa. 
 
�rica deixou com a vizinha um presente para o filho: uma sacolinha de farm�cia contendo leite em p�. N�o tive coragem de perguntar se eram as duas latas. Isso n�o importava.

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