
O preconceito, em qualquer �rea, � cruel. E quando cria um estigma, super�-lo � um desafio di�rio. Nos �ltimos anos, as pessoas que vivem com o HIV, o v�rus da imunodefici�ncia humana, infec��o sexualmente transmiss�vel e causadora da Aids, ganharam qualidade de vida (ainda que a doen�a n�o tenha cura) e, consequentemente, t�m participado ativamente do mercado de trabalho. Depois de trabalhar no servi�o de preven��o e assist�ncia ao HIV/Aids do Sistema �nico de Sa�de da Prefeitura Municipal de Betim, entre 2007 e 2009, Ronan Rom�o, de 30 anos, foi tomado por questionamentos diante do contato com esse p�blico na sua rotina. Era seu primeiro emprego, funcion�rio p�blico concursado, e com a veia de pesquisador, mergulhou nesse universo para descobrir o impacto que essas pessoas vivenciavam.
Diante de dados desafiadores, o administrador Ronan Rom�o, mestre e doutorando, desenvolveu sua disserta��o por meio do Programa de P�s-gradua��o em Administra��o da PUC-Minas (PPGA-PUC Minas), entrevistando 13 trabalhadores que convivem com o v�rus da Aids e atuam em organiza��es p�blicas e privadas. “O estigma � real, j� que � vivenciado por essas pessoas e se encontra amplamente denunciado na literatura. A hist�ria do HIV/Aids � permeada de estigmas como nenhuma outra doen�a at� ent�o conhecida. Por meio dos diversos relatos dos depoentes foi poss�vel concluir que o trabalhador que vive com HIV/Aids lida rotineiramente com uma s�rie de adjetivos que o desqualificam no local de trabalho (pessoa doente, inapta, irrespons�vel, desleixada). Contudo, a imagem mais temida por ele parece ser a de uma pessoa doente e inapta para o trabalho.”
De maneira geral, Ronan explica que os participantes da pesquisa n�o passaram pelo processo agudo da doen�a, em que a Aids se manifesta de maneira avassaladora e anuncia um quadro de morte iminente. “Dadas a disponibilidade e a efici�ncia do diagn�stico e da medica��o espec�fica, em quase todos os casos foi poss�vel iniciar o tratamento da doen�a em seu est�gio inicial. A tal imagem (a do doente terminal de Aids), contudo, aparece como um fantasma: ao mesmo tempo em que eles convivem com a doen�a em situa��o controlada, existe o medo e a inseguran�a de se aparentar fisicamente doente de Aids.”
Ronan Rom�o enfatiza que, pelo medo do estigma, o trabalhador soropositivo, de maneira geral, procura ser discreto e manter a doen�a em segredo. “Parece haver uma avalia��o, por parte dele, que concluiu no sentido de redobrar a aten��o e o cuidado com as informa��es que remetam ao HIV/Aids, pois, se mesmo entre seus familiares e amigos o estigma da doen�a se faz presente e o prejudica, ele considera que poderia ser ainda mais prejudicado no local de trabalho, visto que o afeto e a cumplicidade n�o s�o objetivos que se esperam a priori nas organiza��es.”
As barreiras s�o muitas. Ronan Rom�o destaca que a possibilidade de trabalhar, que � comemorada por eles como uma vit�ria sobre a doen�a, corporiza-se em sofrimento e adoecimento no local de trabalho quando o estigma se apresenta. “O pavor de ter sua sorologia descoberta e ser, por conseguinte, discriminado configura um campo de sofrimento e adoecimento no local de trabalho que se torna observ�vel. Por exemplo, por um estado de alerta constante, por um alto n�vel de estresse, pela autoestima que se fragiliza, pela possibilidade da depress�o que surge implac�vel e pelo isolamento do grupo, que constitui um grande pesadelo para esse trabalhador.” Ele completa dizendo que “nossa aten��o foi especialmente agu�ada para esses sinais quando, durante as entrevistas, al�m dos relatos orais, observou-se tamb�m que, n�o raro, a voz do depoente se alterava, os olhos se agitavam, as m�os tremiam e, especialmente quando na entrevista com as participantes (as duas mulheres), foi necess�rio interromper a entrevista, dando a elas o espa�o e o tempo necess�rios para que se recompusessem e retomassem a fala”.
TEMORES Ronan Rom�o afirma que, praticamente, todos os entrevistados n�o consideram a possibilidade de se revelar no local de trabalho. “E para que n�o levantem suspeitas sobre sua condi��o, comportam-se como algu�m que n�o vive com HIV/Aids. Eventualmente, esse assunto � tema de algum di�logo promovido pela organiza��o ou alguma roda de conversa informal entre colegas, e reconhecem nisso uma oportunidade de contribuir com o que sabem, mas mesmo querendo contribuir exaustivamente, evitam falar al�m do que seria razo�vel para algu�m que n�o estivesse inserido no contexto. Assim, ficou percept�vel que se colocar como algu�m distante desse cen�rio, ou por vezes alienado, tamb�m faz parte dos esfor�os que eles empregam.”
De tudo que constatou na pesquisa, Ronan Rom�o destaca que, “quando se esfor�am para minimizar, esconder ou negar sinais que remetam ao HIV/Aids, esses trabalhadores n�o encontram um lugar de conforto. Pelo contr�rio, antecipam preju�zos do estigma por meio da ansiedade e do medo. Nesse momento, a possibilidade de trabalhar, que � comemorada por eles como uma vit�ria sobre a doen�a, corporiza-se em sofrimento e adoecimento no local de trabalho. Nessas situa��es se veem obrigados a escutar (e sem poder se defender) os adjetivos depreciativos associados aos doentes de Aids. E ali, para que n�o demonstrem sua ang�stia, internalizam-na. Na impossibilidade de enfrentar o estigma, aceitam, infelizes, caminhar ao seu lado.”
Outra percep��o de Ronan Rom�o entre os 13 trabalhadores entrevistados � que, pelos relatos, “o contato com o diferente (algu�m que n�o porta o v�rus) suscita uma s�rie de temores, que se intensificam no trabalho. A imagem mais temida parece ser a de uma pessoa doente e inapta.”
Parece que, para estar no mercado de trabalho, obrigatoriamente, esses profissionais t�m de esconder a doen�a. “Como estrat�gia de sobreviv�ncia, habitualmente, escondem. A pessoa soropositiva n�o � obrigada a revelar sua sorologia e sua discrimina��o no local de trabalho � uma infra��o prevista em lei. Deve restar claro que o sigilo quanto � sua identidade �, sobretudo, um direito. Em seu governo, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei 12.984/2014, que define como crime a discrimina��o de pessoas soropositivas ou doentes de Aids. Nessa lei, o local de trabalho aparece em destaque: negar emprego ou trabalho, exonerar ou demitir, segregar no ambiente de trabalho e divulgar a condi��o de pessoa portadora do v�rus ou soropositiva pode implicar reclus�o de um a quatro anos, al�m de multa. Mesmo sendo essa lei uma grande conquista para as pessoas que vivem com o v�rus, os desafios persistem nos mais diversos ambientes.”
Para Ronan Rom�o, o estigma s� pode ser combatido com o entendimento do processo que o gera e o mant�m vivo na din�mica social. “� necess�rio, em primeiro lugar, compreender para desmistificar. Todos os estigmas se alimentam tamb�m da ignor�ncia.” Quanto ao comportamento dos colegas de trabalho, o pesquisador lembra que eles n�o deveriam se preocupar. “O HIV/Aids � uma doen�a cr�nica com tratamento altamente eficiente e n�o se transmite pelo contato que se estabelece entre as pessoas no local de trabalho.”
Al�m de todas as batalhas que o trabalhador soropositivo tem de enfrentar, muito se questiona tamb�m sobre a forma��o e a capacita��o. Ronan Rom�o conta que foi feita uma abordagem qualitativa, entrevistas em profundidade com um grupo de estudo composto por 13 trabalhadores que vivem com HIV/Aids entre um e 12 anos, sendo 11 homens e duas mulheres, com idade entre 20 e 55 anos, com escolaridade do ensino fundamental ao ensino superior, que atuam em organiza��es p�blicas e privadas. Impere ressaltar que o HIV/Aids n�o escolhe um grupo. As mais diversas pessoas em termos de ra�a, credo, classe social, orienta��o sexual, forma��o e qualifica��o distintas est�o suscet�veis ao v�rus.”
DEPOIMENTOS
Os personagens
Sobre os personagens, Ronan Rom�o explica que h� uma determina��o do Minist�rio da Sa�de (MS) junto aos conselhos de �tica da PUC-Minas e do SUS que impede o acesso aos participantes do estudo ap�s a etapa de coleta de dados. Abaixo, alguns trechos dos depoimentos colhidos pelo pesquisador. Os nomes s�o fict�cios.
Raquel, de 54 anos, t�cnica de enfermagem, tem Aids h� 7 anos
“Trabalhei com ele e a gente era muito amigo [...], a gente tinha muita afinidade, muito coleguismo e tudo [...]. A� foi o dia que a minha irm� foi levar a minha m�e nesse posto [de sa�de] e ele perguntou por mim. A� ela pegou e abriu! Boca solta, n�? Foi e falou! A�, dessa data em diante, nunca mais ele me ligou, n�o me procurou”
Henrique, de 40, funcion�rio p�blico e professor, tem Aids h� 4 anos
“� aquela quest�o de achar: “ele � incapaz, ele n�o vai conseguir”. Ent�o eu n�o tenho o direito de ficar resfriado, eu n�o tenho o direito de ter uma enxaqueca, de ter uma indisposi��o [...]. Qualquer coisa: “Ah! Ele est� morrendo”
Leandro, de 29, guarda municipal, tem Aids h� 8 anos
“Fui at� a �ltima [etapa do processo seletivo]. Ou seja, fui aprovado em todas. E a �ltima era exame m�dico. E a� nessa eu n�o tive retorno, n�o tive nem resposta, se eu passei, se n�o passei, por que n�o passei. E a� eu fiquei pensando: ‘Ser� por que eu n�o passei?’ Da�, liguei uma coisa com a outra: ‘Acho que eles descobriram l�, nos exames’
Mateus, de 32, confeiteiro, tem Aids h� 12 anos
“Infelizmente, tenho amigo que tem [Aids] e perdeu o emprego por causa disso. Inclusive, ele at� ganhou um dinheiro na Justi�a porque ficou comprovado o porqu� de eles o mandarem embora. A� teve prova, testemunha... Ele dizia que as pessoas olhavam para ele estranho. Ele se sentia incomodado, porque as pessoas sabiam que ele tinha. E ele n�o aguentou mais”
Carlos, de 46, trabalha com limpeza t�cnica, tem Aids h� 1 ano
“Por isso que � melhor, �s vezes, voc� se esconder do que se expor. Porque, ao se expor, depois tamb�m voc� tem que pensar que se exp�s demais. A�, como se diz, agora as consequ�ncias v�m. [...] Acho que se n�o falar vou viver melhor. N�o vou ter constrangimento com as pessoas, nem nada”
COMO MUDAR...
Sugest�o para as organiza��es apontadas na pesquisa:
� fundamental atualizar, no local de trabalho, a imagem que historicamente � associada � pessoa que vive com Aids. � necess�rio superar, por exemplo, aquela triste imagem do fim da vida do memor�vel cantor e compositor Cazuza, que, infelizmente, morreu quando essa doen�a surgiu, horrorizando o mundo, e n�o havia recursos para det�-la. Campanhas, treinamentos, di�logos de sa�de e seguran�a com a equipe e lideran�a s�o boas alternativas que se pode sugerir. Talvez esse seja o primeiro – e o mais f�cil – passo a ser dado na empreitada contra o estigma que aflige o trabalhador soropositivo no �mbito organizacional.
� urgente afirmar, nas organiza��es, a exist�ncia de recursos que possibilitam � pessoa que vive com HIV/Aids exercer suas atividades laborais sem limita��es decorrentes da doen�a. Ou, ainda, na ocorr�ncia de alguma observa��o m�dica para o exerc�cio de determinada atividade, � mister afirmar que � poss�vel administr�-la internamente por meio de uma gest�o de recursos humanos que compreenda e trate a Aids como uma doen�a cr�nica (como outras) que, por vezes, demanda alguma interven��o para que o indiv�duo continue no exerc�cio de
suas atividades, integrado ao grupo e, o mais importante: com sua dignidade e seus direitos respeitados como trabalhador e pessoa.
� necess�rio rever a conduta de certos Sesmts (Servi�o Especializado em Engenharia de Seguran�a e em Medicina do Trabalho) e �reas de recursos humanos: as empresas t�m investigado a sorologia de seus empregados (ou candidatos) sob o pretexto de exames peri�dicos ou admissionais. Tal investiga��o se configura uma ilegalidade. Essas �reas, em nossa percep��o, devem ser vistas como local de acolhimento para qualquer trabalhador que traga qualquer demanda relacionada � sua sa�de.