
Faz pouco mais de 40 anos que a hist�ria da evolu��o humana come�ou a ser contada. � claro que, antes disso, muitos f�sseis ancestrais j� haviam sido escavados e descritos. Mas faltava um personagem que conferisse l�gica � narrativa. Foi uma criaturinha de 1m, 29kg e 3,7 milh�es de anos que desempenhou esse papel. Lucy, como foi batizado um esqueleto encontrado em 1974 no Deserto de Afar, na Eti�pia, usava seus longos bra�os para pular de galho em galho, mas a anatomia da parte inferior do corpo n�o deixa d�vidas: ela havia sido projetada para andar.
Depois de Lucy, a paleontologia e a antropologia n�o seriam as mesmas e, em quatro d�cadas, surgiram diversas teorias para tentar decifrar a trajet�ria do Homo sapiens na Terra. Os �ltimos cinco anos, por�m, foram os mais pr�digos na montagem do quebra-cabe�a evolutivo e, s� em 2018, cientistas fizeram revela��es, como: dois genes, o UBR4 e o PHLPP, podem ser os respons�veis pelo formato globular dos cr�nios e c�rebros do homem moderno, com implica��es no funcionamento do �rg�o; os ancestrais da nossa esp�cie provavelmente sa�ram da �frica h� 120 mil anos (e n�o 70 mil, como se imaginava); duas esp�cies extintas, parentes pr�ximas do Sapiens, geraram seres geneticamente h�bridos, metade neandertal e metade denisovano; um esqueleto tido como Australopitechus, g�nero de homin�deo ao qual pertence Lucy, e que viveu na �frica entre 2 milh�es e 4 milh�es de anos, descoberto na �frica do Sul na d�cada de 1990, pode ser de uma esp�cie ainda n�o descrita.
Essas descobertas n�o ajudam somente a aumentar o conhecimento sobre a evolu��o da vida inteligente na Terra, mas a definir quais ingredientes que nos tornaram humanos e de que forma eles foram sendo adquiridos ao longo do tempo. Um estudo interdisciplinar publicado na revista Nature Ecology & Evolution, por exemplo, apresentou algumas teorias que explicam como a face do homem ganhou as caracter�sticas que o diferenciam de qualquer outro homin�deo que j� passou pelo planeta. Oito especialistas na evolu��o do rosto colaboraram para a s�rie de artigos e contam essa hist�ria de mais de 4 milh�es de anos.
DIETA
William Kimbel, professor de hist�ria natural da Universidade Estadual do Arizona, explica que, depois que os ancestrais ficaram sobre duas pernas e come�aram a andar eretos, h� pelo menos 4,5 milh�es de anos, a estrutura esquel�tica dos b�pedes j� estava muito bem formada. Membros e dedos tornaram-se mais longos ou mais curtos, tudo se encaixando com os padr�es exigidos pelo novo estilo de locomo��o. Mudan�as no cr�nio e nos dentes, por�m, demoraram bem mais tempo, at� que o rosto do homem moderno fosse moldado. “Fatores primordiais na mudan�a de estrutura da face incluem um c�rebro em crescimento e adapta��es �s demandas respirat�rias e energ�ticas. Mas o mais importante � que as mudan�as na mand�bula, nos dentes e na face responderam �s altera��es na dieta e no comportamento alimentar. N�s somos, ou evolu�mos para ser, o que comemos, literalmente”, observa Kimbel.
Os primeiros ancestrais humanos se alimentavam de vegetais resistentes, que exigiam m�sculos mandibulares largos e uma denti��o capaz de quebr�-los. Isso se refletia no formato da face: mais larga e profunda, com �reas de liga��o muscular enormes. � medida que o ambiente ficou mais seco e menos arborizado, especialmente nos �ltimos dois milh�es de anos, as primeiras esp�cies do g�nero Homo come�aram a lan�ar m�o com frequ�ncia de ferramentas para quebrar alimentos ou cortar carne. Consequentemente, as mand�bulas e os dentes j� n�o precisavam ser t�o fortes, deixando o rosto mais delicado e com um semblante mais plano.
COMUNICA��O
As mudan�as na face humana, por�m, n�o ocorreram apenas por fatores mec�nicos. “Afinal, o rosto tamb�m desempenha um importante papel na intera��o social, na emo��o e na comunica��o. Algumas delas podem ter sido levadas, em parte, pelo contexto social”, diz o pesquisador. Os ancestrais foram desafiados por altera��es significativas nos ecossistemas, al�m de impactados cada vez mais por fatores culturais e sociais. Segundo Kimbel, ao longo do tempo, a habilidade de formar express�es faciais diversas provavelmente ajudou a melhorar a comunica��o n�o verbal.
“Atualmente, podemos usar nosso rosto para sinalizar mais de 20 categorias diferentes de emo��o, por meio da contra��o ou do relaxamento dos m�sculos”, explica Paul O’Higgins, professor de anatomia do Departamento de Arqueologia da Universidade de York e um dos autores do trabalho publicado na Nature Ecology & Evolution. “� improv�vel que nossos primeiros ancestrais humanos tivessem a mesma destreza facial, j� que a forma geral do rosto e as posi��es dos m�sculos eram diferentes”, diz.
Mas, com o tempo, isso foi mudando. “Em vez da pronunciada testa de outros homin�deos, os humanos desenvolveram uma testa lisa, com sobrancelhas mais vis�veis e peludas, capazes de uma maior amplitude de movimento. Isso, ao lado do fato de nossos rostos terem se tornado mais finos, nos permite expressar uma ampla gama de emo��es sutis, incluindo o reconhecimento e a simpatia”, assinala o especialista.
De acordo com O'Higgins, nos �ltimos 100 mil anos, as faces ficaram ainda menores, � medida que o homem desenvolvia a habilidade de cozinhar e de processar alimentos, reduzindo a necessidade de mastiga��o. O processo de encolhimento do rosto foi particularmente marcado desde a revolu��o agr�cola, por volta de 12 mil anos atr�s, enquanto a humanidade deixava o estilo ca�ador-coletor para se fixar no campo e, depois, viver em cidades, modos de vida que levaram a um aumento ainda maior do consumo de ingredientes pr�-processados. “As dietas mais macias da modernidade e as sociedades industrializadas podem significar que o rosto humano continua a diminuir de tamanho”, afirma. “Mas h� limites do quanto a face ainda pode mudar. Por exemplo, a respira��o requer uma cavidade nasal suficientemente grande.”