
Em 2008, uma universidade americana convidou um pianista para apresentar sua primeira composi��o de m�sica erudita. Milhares de pessoas e dezenas de ve�culos de imprensa acompanharam o evento com grande curiosidade. O pianista compositor n�o era um m�sico famoso, uma celebridade ou um artista conhecido. Ali�s, ele tinha pouco interesse por m�sica, at� ser atingido por um raio.
O caso dele ficou conhecido e atraiu interesse internacional depois de ser mencionado em um livro do conhecido neurologista e escritor anglo-americano Oliver Sacks, em que este investigava o fasc�nio da mente humana por m�sica.Essa hist�ria � contada no podcast 'Que Hist�ria!', da BBC News Brasil, produzido e apresentado por Thomas Pappon.
Tony Cicoria era um cirurgi�o ortopedista de quarenta e poucos anos, que vivia com a mulher e os tr�s filhos em Oneonta, uma pequena cidade no Estado de Nova York, nos Estados Unidos. Sua vida girava em torno do trabalho.
Em entrevista programa Outlook, da BBC, ele contou que "trabalhava entre 12 e 14 horas por dia, sete dias por semana".
"Sa�a �s seis e meia de casa e voltava �s oito da noite. Era o �nico ortopedista da regi�o. Quase n�o jantava em casa. O �nico momento que eu tinha com a fam�lia era quando botava as crian�as para dormir."
Em um fim de semana de 1994, Tony e a fam�lia foram fazer um piquenique �s margens de um belo lago da regi�o, o Sleepy Hollow Lake.

"O dia estava lindo. As folhas de outono ainda estavam com cores vibrantes, o lugar era maravilhoso. As crian�as estavam correndo, se divertindo, eu estava cuidando do churrasco, � beira do lago. Quando terminei o churrasco, fui a um orelh�o ligar para minha m�e. Senti umas gotas de chuva, e vi que o tempo tinha mudado de repente, mas em Nova York isso era comum e n�o dei bola."
"Quando peguei o telefone e ele estava a uns 15 cent�metros do meu rosto, ouvi um estrondo. De repente, um enorme clar�o de luz saiu do telefone e me atingiu no rosto. Fui atirado para tr�s, como se tivesse levado um coice de cavalo. Eu me vi fora do meu corpo, olhando para o que estava acontecendo. Tinha ca�do ao lado de uma mulher que estava esperando para fazer uma liga��o e vi ela come�ando a fazer massagem card�aca em mim. De repente, fui puxado para dentro de meu corpo, e passei da sensa��o de extremo bem-estar para a de dor extrema. Uma dor incandescente. � como enfiar um ferro em brasa direto na sua boca. Uma dor lancinante."
Tony acordou poucos minutos depois de ser atingido pelo raio, confuso e desorientado. Sem ferimentos graves, ele se recusou a ir ao hospital e foi pra casa se recuperar do incidente. Duas semanas depois, ele estava de volta ao trabalho.
"Me sentia normal. O que aconteceu, aconteceu, ficou para tr�s. � assim que sempre lidei com situa��es desse tipo. Elas acontecem, voc� se levanta e segue em frente. S� a partir da segunda semana � que comecei a sentir essa incr�vel vontade de ouvir m�sica de piano. Foi uma grande mudan�a, porque n�o era o tipo de m�sica que eu ouvia. Achei estranho."

"Mas a vontade era t�o grande que eu tive de comprar um CD de m�sica cl�ssica. E nossa cidade era t�o pequena que nem tinha loja de CD. Fui a Albany, a uma dessas grandes lojas de m�sica, e topei com um CD que parecia pular da prateleira para as minhas m�os. Era do pianista Vladimir Ashkenazy tocando suas pe�as favoritas de Chopin. N�o havia d�vida de que esse era o CD que eu tinha de ter, mesmo sem nunca ter ouvido as m�sicas. E comprei s� esse CD. Nem olhei para outros."
Quando ouviu o CD, Tony soube que fez a compra certa.
"Podia sentir a emo��o, a paix�o da m�sica. E n�o queria ouvir outra coisa. Ouvia esse CD o dia todo, no caminho para o trabalho, voltando do trabalho, durante o trabalho, obrigando todo mundo a ouvir, meus colegas no trabalho, minha fam�lia...Certamente todo mundo pensava 'tem algo errado com esse cara'."
"Era como uma droga. Eu tinha de ouvir essa m�sica o tempo todo. E ap�s algumas semanas, de repente, passei a achar que s� ouvir n�o era suficiente. Eu tinha que poder tocar essa m�sica. O que era dif�cil, j� que n�o sabia tocar e n�o tinha um piano. No dia seguinte, uma antiga bab� disse que estava de mudan�a e perguntou se podia deixar um piano antigo conosco."
De repente, ele tinha um piano em casa, sem saber como toc�-lo. Tony comprou partituras com as pe�as de Chopin no CD, muitas delas dif�ceis de executar at� para quem toca bem piano. N�o faria diferen�a, porque ele tamb�m n�o sabia ler m�sica. E sua obsess�o n�o parou a�. Ele teve um sonho, recorrente, com uma m�sica que n�o conhecia.

"Eu estava subindo no palco de uma sala de concerto, olhando em volta para os balc�es e camarotes. E essa m�sica ficava tocando. E eu me dei conta, no sonho, de que essa m�sica n�o era de outra pessoa. Era minha! Quando essa m�sica terminou, com um acorde final bem intenso, eu acordei. Eram tipo tr�s e pouca da manh�. Levantei, fui ao piano e tentei tocar a m�sica do sonho. Mas eu n�o sabia como, n�o sabia como escrever essa m�sica e, meia hora depois, desisti e voltei pra cama. A partir desse dia, essa m�sica estava na minha cabe�a, do jeito que a tinha ouvido. Dirigindo o carro, nos momentos de sil�ncio...E passei a ter essa obsess�o dupla, de aprender a tocar piano e com essa m�sica, que estava sempre ali."!
"Nada � imposs�vel", pensou Tony. E assim, aos 42 anos de idade, ele arrumou uma professora de piano.
"A gente se encontrava duas vezes por semana. Eu ia � casa dela, sempre �s cinco da manh�. Me sentia mal por causa da fam�lia dela, que sempre era acordada. Mas era o �nico hor�rio em que ambos podiam."
Para a fam�lia de Tony, tamb�m n�o foi f�cil lidar com sua obsess�o por m�sica.
"Eu acordava �s quatro da manh�, todo dia. Eu praticava das 04h30 �s 06h30, quando tinha de ir pro trabalho. Fazia isso religiosamente. Quando voltava pra casa, comia, punha as crian�as na cama e voltava ao piano. As crian�as, que tinham 4, 5 e 7 anos, iam dormir ouvindo piano e acordavam do mesmo jeito."
"As crian�as viam aquilo como parte do crescimento delas. Mas pra minha mulher foi diferente. Eu estava o tempo todo no piano. E tocava todo dia at� meia noite, uma da manh�. Ela dizia que eu estava casada com o piano, e n�o com ela. O problema � que eu perdi a no��o de equil�brio. Estava fora de controle. Eu trabalhava e tocava piano, praticamente n�o fazia outra coisa. E a justificativa que eu tinha, pra mim mesmo, � que estou aqui por causa dessa m�sica."
Em 2004, dez anos ap�s ser atingido pelo raio, Tony e sua mulher se divorciaram. E ele mergulhou ainda mais na m�sica e no seu piano. Em 2006, o caso dele chamou a aten��o de um dos maiores neurologistas do mundo, Oliver Sacks, que queria entrevist�-lo.

"Foi absolutamente incr�vel. Passei um dia com esse g�nio. Falamos sobre tudo isso e provavelmente a parte mais surpreendente foi no fim do encontro. Eu estava me despedindo, quando ele me disse 'a m�sica do teu sonho passou por v�rios percal�os para chegar aqui, o m�nimo que voc� pode fazer � comp�-la'. Fiquei t�o impressionado com isso, que quando voltei pra casa, passei cada minuto livre que tinha botando essa m�sica no papel."
Tony levou sete meses para compor a m�sica, que batizou de Ligthning Sonata (Sonata do raio). Pouco depois, estava sendo convidado para o seu primeiro concerto, em um teatro da Universidade Estadual de Nova York.
"Minha professora, Sandy, me preparou. Me ensinou como subir no palco, como agradecer ao p�blico, enfim, como tocar para um p�blico."
O interesse era grande. O evento foi filmado por TVs americanas, brit�nicas e alem�s. Culpa de Oliver Sacks, que tirou Tony do arm�rio, por assim dizer, e tornou p�blica a sua hist�ria.
Em entrevista � BBC, o famoso neurologista, que estava lan�ando um livro chamado Musicophilia (lan�ado no Brasil com o t�tulo Alucina��es Musicais), em que investiga mist�rios do instinto musical humano, falou sobre o caso de Tony Cicoria.
"No caso dele", contou Sacks, "eu certamente acho que ele tinha habilidades latentes que foram ativadas pelo raio. Acho que v�rias formas de reorganiza��o devem ter ocorrido na mente dele. Ele pessoalmente tende a falar em interven��o divina. Eu digo 'OK, mas ser� que isso n�o � operado atrav�s do sistema nervoso?' Acho que, por exemplo, uma experi�ncia fora do corpo pode ser interpretada teologicamente, mas �, na verdade, uma complexa alucina��o."
Em seu livro, Oliver Sacks tentou aprofundar o conhecimento cient�fico que temos sobre m�sica e seus efeitos na mente. Para Tony entretanto, o que aconteceu com ele dificilmente pode ser explicado pela ci�ncia.

"Oliver e eu tivemos v�rias conversas. Ele sempre tentou explicar o que houve comigo em termos de circuitos e anatomia. Eu n�o acho que voc� consegue. N�o temos ainda uma no��o real de como o c�rebro funciona. O que eu sei � que o c�rebro d� um tratamento especial � m�sica."
"O raio me mudou. As pessoas que me conheciam de repente viram uma pessoa obcecada, que parecia um pouco com um viciado em drogas. Voc� nunca se recupera totalmente de uma depend�ncia de hero�na. Ela sempre est� ali. Se tenho algum arrependimento � esse. De n�o ter conseguido chegar a um equil�brio. E ainda � uma luta. Mas hoje pelo menos, se eu passo um dia sem tocar piano, n�o � mais o fim do mundo."
Tony Cicoria lan�ou um CD com sua composi��o em 2008, e continua tocando piano, trabalhando e dando entrevistas sobre sua experi�ncia. Ele vive com sua mulher, com quem se casou de novo.
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