
Nahima Maciel - Correio Braziliense
Maria Kodama n�o gosta de ver a si mesma como a guardi� da obra de Jorge Luis Borges. A escritora e cr�tica argentina se diz, na verdade, “respons�vel” pela obra de um dos maiores nomes da literatura latino-americana. Maria tamb�m � vi�va de Borges.
Aos 80 anos, ela n�o se cansa de viajar o mundo para falar sobre o autor de 'O Aleph' e 'Fic��es'. � uma miss�o de vida, mas n�o � f�cil. Maria se casou com Borges em abril de 1986, dois meses antes da morte do escritor. Mas a proximidade entre os dois come�ou nos anos 1970, quando ela se tornou colaboradora de Borges. Ela esteve no Brasil para participar de um ciclo de confer�ncias sobre autores latino-americanos, em Bras�lia.
Para falar sobre Borges, Maria escolheu o tema do outro. A alteridade � ponto central da obra do autor e algo que permite construir pontes para o universo borgiano, incluindo, inclusive, um rol de outros escritores que serviram de fonte e influ�ncia. “O outro � um dos temas principais de sua obra”, avisa Maria. “Acho que � porque n�s somos assim. N�s n�o somos um. Somos mais de um. Muitas das obras de autores que ele gostava muito t�m essa duplicidade do ser humano.”
Borges se tornou um �cone da literatura latino-americana, mas Maria lembra como ele mesmo costumava apontar que era mais comentado do que lido. Ela tamb�m trata de desconstruir a fantasia da Argentina como um pa�s que l�. “N�o se pode generalizar, claro”, diz. “H� um grupo de pessoas, de estudantes, que, claro, leem. Mas digamos que n�o � a maioria.”
Maria conhece pouco da literatura contempor�nea produzida no continente e menos ainda da brasileira. Ela cita um conselho do pr�prio Borges para explicar o porqu� de n�o ler os contempor�neos: se voc� n�o tem tempo para ler, leia o que � importante para voc�.
Filha de um cientista japon�s com uma pianista argentina, atualmente, ela mergulha nas trag�dias gregas. Para Maria, � uma maneira de compreender os tempos modernos. Em entrevista, ela fala sobre Borges e sobre literatura.
A senhora comentou que, mesmo na Argentina, os �ndices de leitura t�m ca�do. Por que acha que isso acontece? H� um desinteresse pela cultura no mundo de maneira geral?
Acho que se deve a muitas coisas. Para come�ar, temos a tecnologia, que � fascinante e ajuda muito no desenvolvimento de diferentes disciplinas. E n�o �, digamos, esse o mal, mas a forma como � utilizada. Por exemplo, h� estudantes que n�o leem, pesquisam as coisas no Google ou na internet n�o se d�o ao trabalho de buscar e entender algo. Sequer se perguntam por que fazem isso.
O que gosta de ler hoje?
N�o tenho muito tempo para ler coisas novas e Borges dizia sempre que n�o tinha tempo para ler coisas novas. Ent�o leio coisas que me interessam. E minhas leituras preferidas s�o as trag�dias gregas porque creio que ningu�m conseguiu fazer a dissec��o da alma humana como os gregos.
� poss�vel compreender a contemporaneidade lendo as trag�dias gregas?
Eu acho que sim, porque nada mudou desde ent�o. Nada. N�o mudou, por exemplo, a ambi��o, o desejar o que n�o deve ser desejado, a sede por notoriedade, fazer qualquer coisa para estar em evid�ncia. Tudo isso j� existia e ainda existe.
A senhora costuma dizer que Borges est� sempre presente, mesmo n�o estando mais aqui. E que ele continua a conversar com a senhora. Esse di�logo � eterno?
Creio que sim. N�o que seja um di�logo. � mais sobre como voc� sente as coisas. Voc� sente que a pessoa est� com voc�. Mas tamb�m talvez isso seja parte de minha forma��o japonesa. No Jap�o, acreditamos que os seres que amamos e que morrem se convertem, de alguma maneira, em seres e esp�ritos que nos protegem. � o xinto�smo. O xinto�smo � uma religi�o totalmente aberta, muito bonita, voc� pode ser xinto�sta e budista ou cat�lico. Isso � muito agrad�vel porque n�o � uma religi�o que se instala e diz como tem que ser.
Que lugar ocupa Borges hoje na literatura mundial?
Pelas confer�ncias e convites que recebo, convites para bancas de tese, no �mbito intelectual segue ocupando um espa�o importante. Mas ele dizia que, apesar de ser visto como esp�cie de �cone, na verdade n�o era t�o lido. Claro que nada � absoluto, mas � verdade.
Borges � um escritor do qual o cinema e as artes pl�sticas gostam muito. Por que isso acontece?
Borges, com frequ�ncia, n�o gostava das adapta��es de suas obras para cinema e eu sempre dizia que ou ele n�o devia dizer n�o ao acompanhamento do roteiro ou n�o dizer sim ao ceder os contos. Borges gostava muito de arte. O problema com os contos � que, quando um diretor lia um conto, pensava logo “tenho o filme”, porque � terrivelmente visual. E no fim sa�a uma besteira porque escapava a ess�ncia, que � toda a filosofia subjacente a tudo isso. Ele sempre dizia que apenas dois filmes se salvavam: 'O homem da esquina rosada', de Ren� M�gica, e 'A estrat�gia da aranha', de Bernardo Bertolucci. E ele havia visto todos os filmes. Eram os �nicos de que ele gostava.
Por que, na sua opini�o, a literatura de Borges desperta tanta admira��o e devo��o?
Creio que � porque a obra dele n�o � do tipo “te conto um conto”. Na obra dele, cada conto carrega toda uma percep��o filos�fica de diferentes temas. E isso � o que faz com que a obra seja fascinante para as pessoas e atravesse o tempo. N�o � uma obra que voc� l�, toma um caf� e vai caminhar. Tem toda essa filosofia que ele carregava desde pequeno sem se dar conta. Quando ele era pequeno, o pai dava a ele uma ma�� e perguntava: “O que � isso?” Ele respondia: “Uma ma��”. Ent�o o pai dizia: “Feche os olhos e me diga o que � uma ma��? A cor? O sabor?”. O pai ensinou filosofia, e toda a forma��o de Borges era uma forma��o filos�fica. N�o �, digamos, aprendida, e sim absorvida e vivida desde a inf�ncia. E depois desenvolvida e aprofundada conforme o interesse dele.
A senhora � a guardi� da obra dele…
N�o sou a guardi�, sou a respons�vel. O que � muito diferente. A diferen�a � que a guardi� cuida da obra e ser respons�vel � tratar de impedir que essa obra seja deturpada, destru�da. H� uma enorme diferen�a. E � uma responsabilidade que tenho. Cada um tem sua miss�o na vida. Cumpro a minha com alegria.
Qual � o desafio? H� amea�as?
H� muitas pessoas que querem distorc�-la, us�-la. � uma coisa muito complexa e dif�cil preservar o respeito em rela��o a como a pessoa trabalhava e sentia sua obra.
H� coisas in�ditas de Borges?
Tenho coisas in�ditas. Um pref�cio feito para o Livro dos mortos, dos eg�pcios, e um roteiro pedido por uma atriz que se chamava Valentina Cortese. Ele trabalhou muito nesse roteiro. Mas n�o vou publicar, faltava muito para terminar.
Como a senhora encara as crises no continente latino-americano hoje, em 2017?
Penso que, se n�o aprendermos a nos encontrar e falar, estamos perdidos. Estive no Festival de Biarritz numa comiss�o para escolher entre cerca de 80 filmes latino-americanos. Vendo todos esses filmes pensei em duas possibilidades. Uma � que eles tenham sido feitos para que as pessoas que o produziram recuperassem o dinheiro e isso j� era terr�vel o suficiente. A outra possibilidade � que realmente isso fosse o que pensam, sentem e o que queriam transmitir os diretores desses filmes. Se for assim, a Am�rica Latina nasceu malparida e vai continuar malparida. Para c� vieram homens aventureiros que trouxeram para fazer dinheiro. E isso ficou na mente e no DNA dos latino-americanos. � um saque permanente. Estamos perdidos. Em nenhum desses filmes que eu vi h� futuro. E quando n�o h� futuro, acabou a hist�ria.