
Em 1993, a produtora cultural Bianca De Felippes e sua ent�o s�cia, a atriz Carla Camurati, fizeram das tripas cora��o para rodar um filme que acabou se tornando o marco da retomada do cinema nacional – Carlota Joaquina – Princesa do Brazil, lan�ado em 1995. O pa�s enfrentava tempos duros no setor. Em 1990, o presidente Fernando Collor de Mello havia determinado a extin��o da Embrafilme, entidade respons�vel pelo fomento e difus�o da cinematografia brasileira.
“A gente brinca dizendo que pagamos o filme (Carlota Joaquina) com o cart�o de cr�dito. Conseguimos recursos de uma empresa de turismo do Maranh�o e da Petrobras, depois de muito batalhar. E, claro, investimos tamb�m o nosso dinheiro. Lembro-me do meu pai chegando em casa, um dia, e n�o havia nenhum travesseiro ou almofada. Respondi que estava tudo na cama de dom Jo�o. E estava mesmo (risos). Foi quase na ra�a mesmo. Mas valeu a pena, porque foi um sucesso, ficou 11 meses em cartaz e fez hist�ria”, afirma Bianca.
A possibilidade de extin��o da Ag�ncia Nacional do Cinema (Ancine), aventada pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL) nos �ltimos dias, fez muita gente temer o remake do desmonte do cinema brasileiro. Criada em 2001 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) com o status de ag�ncia reguladora, a Ancine tem as atribui��es de fomentar, difundir e fiscalizar o mercado no qual o produto brasileiro compete por recursos e espectadores.
Bianca De Felippes, contudo, avalia que as circunst�ncias s�o diferentes. “Na Embrafilme, o dinheiro utilizado era do or�amento do governo. Na Ancine n�o funciona assim. E agora s�o outros tempos. N�o acredito que realmente ela v� acabar, at� porque precisa do Congresso para isso. A ag�ncia foi criada por uma medida provis�ria e depois regulamentada por lei. A cultura – e o cinema se insere nesse contexto –, al�m de ser fundamental para a forma��o de um povo e a preserva��o da mem�ria de um pa�s, � um segmento importante economicamente. Acredito que v� haver bom senso, porque ningu�m quer torcer contra o pa�s”, afirma a produtora, que hoje comanda a G�vea Filmes.
Na sexta-feira (2), Bolsonaro afirmou que pode manter a Ancine. "Se recuar (da ideia de extinguir a ag�ncia), recuo. Quantas vezes voc�s falam que eu recuei? Tem a quest�o do audiovisual que emprega muita gente, tem de ver por esse lado", disse a jornalistas que o aguardavam na sa�da do Pal�cio da Alvorada pela manh�. O presidente afirmou que o ministro da Cidadania, Osmar Terra, j� enviou a ele um rascunho de como ficaria o �rg�o. "Uma vers�o parecida com o dinheiro da lei Rouanet", afirmou. Bolsonaro disse tamb�m que est� sendo reavaliada a composi��o do Fundo Setorial do Audiovisual, cuja dota��o para este ano � de R$ 724 milh�es. O recurso adv�m de receitas de concess�es e permiss�es e da arrecada��o de um tributo pago pela explora��o comercial de obras audiovisuais. Ele disse, no entanto, que pode extinguir esse imposto. "Conversei com o ministro Paulo Guedes, da Economia, de redirecionar. Se for para extinguir imposto, extingue. Acho que o Estado teria muito mais intelig�ncia para dar uma nova dire��o", declarou.
Com receio em rela��o ao futuro do audiovisual no pa�s, o produtor e diretor brasiliense Marcus Ligocki (Uma loucura de mulher) divulgou uma carta aberta ao presidente, na qual repudia suas declara��es sobre o fechamento da Ancine e pede ao mandat�rio para analisar seus argumentos antes de tomar qualquer decis�o. “Sem a Ancine, o dinheiro p�blico e o apoio governamental que � dado a todas as principais atividades econ�micas do nosso pa�s, n�o haver� mais produ��o audiovisual brasileira. Sem a produ��o audiovisual, nos afastaremos das realidades e das riquezas produzidas em nosso extenso territ�rio, mas tamb�m ficaremos fora de um dos principais mercados globais das pr�ximas d�cadas. Sem a infraestrutura do setor audiovisual, o Brasil perder� competitividade nos demais setores da economia por n�o conseguir produzir e distribuir globalmente conte�dos capazes de entreter, emocionar e conquistar o afeto dos mais diversos consumidores e tomadores de decis�o ao redor do mundo”, escreveu Ligocki.
CAMINHO POSS�VEL Embora n�o tenha recebido uma resposta direta do presidente, o diretor est� certo de que assessores de Bolsonaro lhe mostraram a carta. Atuante no audiovisual desde os anos 1990, Ligocki avalia que “o �nico caminho poss�vel para se construir uma ind�stria cultural forte e duradoura � por meio do di�logo. Se hoje temos a Ancine com essa estrutura, gerando empregos, com um cinema nacional respeitado, mas que ainda precisa de avan�os, foi porque tivemos muita gente disposta a ajudar, a torcer pelo Brasil. � o que propus na carta. Em vez de acabar, vamos juntos melhorar a Ancine. N�o se pode jogar fora 20 anos de trabalho s�rio. Temos que caminhar para ajudar o pa�s”.
Nem todos na �rea cultural, no entanto, acreditam que haja espa�o para dialogar com o presidente. Resistir �s propostas de reorienta��o das pol�ticas p�blicas para a cultura e lutar por seu espa�o � a estrat�gia defendida por um grupo de profissionais do cinema e do teatro. Eles se uniram sob a autodenomina��o Artigo Quinto, no �ltimo dia 19 de julho, quando Bolsonaro fez a declara��o contr�ria ao incentivo federal � produ��o de cinema. citando o longa Bruna Surfistinha (2011), de Marcos Baldini. “N�o posso admitir que, com dinheiro p�blico, se fa�am filmes como o da Bruna Surfistinha. N�o somos contra essa ou aquela op��o, mas ativismo n�o podemos permitir, em respeito �s fam�lias”, afirmou.
“A ideia surgiu porque me indignei com tanto ataque � democracia, como se aqui n�o houvesse prote��o legal � liberdade de express�o. E ataque gratuito tamb�m ao setor profissional que promove o desenvolvimento no pa�s, que nos representa com qualidade no exterior, projetando positivamente a imagem do Brasil, sendo tratado como algo que n�o necessitasse de apoio, fomento, regimentos que o desenvolvam e n�o o fa�am retroceder”, diz produtora cultural Tatyana Rubim, uma das articuladoras do Artigo Quinto.
At� o momento, a iniciativa, cujo nome se refere ao texto da Constitui��o Federal que estabelece a garantia do direito de livre express�o, conta com aproximadamente 4 mil ades�es em diversos estados brasileiros. Idealizadora do Teatro em Movimento, Tatyana Rubim afirma que o Artigo Quinto segue incorporando apoiadores. “Criamos tamb�m um manifesto para ser lido antes de apresenta��es. Foi uma a��o conjunta minha e da (atriz e diretora mineira radicada em S�o Paulo) Yara de Novaes. E, com ela, logo S�o Paulo veio. Temos ainda grupos no Rio, no Centro-Oeste, no Nordeste e em Santa Catarina. Com eles trocamos quest�es importantes e definimos nossa maneira de atuar.”
Embora considere imprescind�vel que o setor cultural se una em sua pr�pria defesa neste momento, Tatyana n�o � pessimista quanto ao futuro. “A arte e a cultura do nosso pa�s n�o ficam sem luz nunca. O que nossos governantes precisam � ver o desenvolvimento social, principalmente, pelo vi�s cultural. Al�m do econ�mico, � claro. Ainda h� muita desinforma��o por parte da popula��o sobre a cultura e a pol�tica cultural. O Artigo Quinto contribuir� para essa divulga��o positiva dos trabalhadores desse setor”, afirma. (Com Ag�ncia Estado)
Lei Rouanet tamb�m balan�a
Outro alvo de cr�ticas do presidente Jair Bolsonaro � a Lei Federal de Incentivo � Cultura, a chamada Lei Rouanet, que possibilita o financiamento de projetos culturais via ren�ncia fiscal. No fim de abril, o Minist�rio da Cidadania alterou as regras de uso da lei, reduzindo o teto de capta��o de patroc�nio de R$ 60 milh�es para R$ 1 milh�o por projeto. O limite somente n�o se aplica a tr�s categorias: restaura��o de patrim�nio tombado; constru��o e manuten��o de teatros e cinemas em cidades pequenas; planos anuais de entidades sem fins lucrativos.
“Essas mudan�as praticamente inviabilizam os musicais, que est�o cada vez mais consolidados no pa�s. Como realizar uma produ��o com esses recursos? Um musical pequeno emprega no m�nimo 200 pessoas. As leis de incentivo s�o feitas para isso – fomentar o que o Estado n�o consegue com seu or�amento”, diz a produtora Bianca De Felippes, que integra a diretoria da Associa��o dos Produtores de Teatro do Rio (APTR).
Ela comenta que os efeitos dessas regras v�o come�ar a ser sentidos em 2020. “Ainda estamos funcionando com muitos projetos aprovados e viabilizados no ano passado, antes da nova gest�o. Se isso n�o for revisto, no ano que vem o cen�rio vai ser bem complicado. Mas acredito que o governo ir� enxergar que isso n�o est� funcionando. Temos que buscar o di�logo, sempre, e estarmos abertos em prol do pa�s. Acredito que vamos encontrar um ponto de equil�brio.”
Mais uma vez, a aposta na capacidade do di�logo com o atual governo n�o � un�nime. Eduardo Moreira, ator e diretor do Grupo Galp�o, afirma que Bolsonaro “se comporta como o presidente de uma minoria radical, de uma mil�cia, e n�o de um pa�s”. Sobre as declara��es do presidente e o desempenho de seu governo, ele diz: “A cada dia eu me assusto mais. Tudo est� afundando – cultura, meio ambiente, a pr�pria economia. � uma cat�strofe, e n�o vejo luz no fim do t�nel”.
O Grupo Galp�o tem patroc�nio da Petrobras, que, sob as ordens de Bolsonaro, reduziu expressivamente investimentos em cultura. “O contrato vence no fim do ano. Ao longo de duas d�cadas, a Petrobras deu muito ao Galp�o, mas o Galp�o deu e continua dando muito � Petrobras. Vamos aguardar... O que nos resta, enquanto artistas, � resistir e continuar fazendo teatro”, afirma Eduardo Moreira.
Outro grupo mineiro que conta com recursos da petroleira � o Corpo. Na semana passada, ao apresentar � imprensa seu novo espet�culo, Gil, que estreia na quarta-feira (7), em S�o Paulo, o diretor art�stico Paulo Pederneiras informou que o contrato com a Petrobras se encerra no fim do ano e a renova��o ainda n�o foi acertada. “Acompanhamos com medo, receio e preocupa��o”, disse.