
"Antes, cinema era quase uma igreja. Se voc� n�o fosse, n�o via os filmes. Hoje, al�m dos blockbusters, dos 'reis Le�o' urrando em tudo o que � sala, h� os outros acessos %u2013 Netflix etc. Ent�o, sempre penso no trabalho de escutar o p�blico, fazer com que as pessoas tenham uma rela��o quase afetiva com o espa�o" M�nica Cerqueira, curadora do Cine104
O espa�o existe e est� devidamente estruturado e equipado. Agora, resta ao p�blico tamb�m fazer a sua parte. Reaberto na �ltima semana ap�s um fechamento que durou um ano e meio, o Cine104, na Pra�a Rui Barbosa (Pra�a da Esta��o), busca, mais uma vez, se manter na ativa – � a �nica sala de cinema do Baixo Centro e um dos �ltimos espa�os de rua de Belo Horizonte.
“S� faz sentido manter um cinema aberto se o p�blico vier. Tenho muita experi�ncia de cinema e a minha busca sempre foi por uma rela��o mais profunda, leg�tima. Vamos evitar ser s� uma vitrine de filmes, queremos conquistar n�o s� pelos filmes, mas pelo di�logo e intera��o”, afirma M�nica Cerqueira, de 61 anos, a nova curadora da sala.
Neste momento o cinema est� funcionando com apenas duas sess�es semanais – quartas e quintas-feiras, �s 19h30. A partir do m�s que vem, a sala abrir� tamb�m �s segundas, com uma programa��o voltada para document�rios de grupos e coletivos da cidade. Pelo menos uma vez por m�s haver� um debate com um realizador ou pesquisador de cinema.
O 104, sala de 90 lugares inaugurada em 2012, integra o CentoeQuatro, espa�o multiuso que funciona h� 10 anos na antiga f�brica de tecidos hom�nima, na Pra�a Rui Barbosa. Para al�m da sala de exibi��o, funcionam no galp�o nos dias de hoje o Guima Caf�, o restaurante A Central e o CIV Coworking.
Desde o final de 2016, a sala de exibi��o funciona de forma intermitente. Mantida por meio de recursos incentivados, j� que a bilheteria n�o garante a opera��o do cinema, a falta de patroc�nio fez com que ela ficasse, entre 2017 e 2018, aberta por apenas alguns meses. Nesse per�odo, o espa�o cultural passou por diferentes gestores.
A reabertura do cinema n�o � definitiva. Por ora, est�o garantidos os recursos para o funcionamento da sala at� dezembro – o patroc�nio � do Banco BMG, via Lei Federal de Incentivo � Cultura. “O aporte que conseguimos corresponde a 20% do valor total do projeto. Ent�o tivemos que readequar o projeto, diminuir os dias de funcionamento do cinema”, afirma Gabriela Silva, que atualmente responde pela ger�ncia do espa�o cultural.
“O CentoeQuatro estava sem direcionamento. Agora est� passando por um processo de reestrutura��o para que volte a ser uma refer�ncia na �rea cultural”, diz Gabriela. Para que ele saia do vermelho, al�m de programa��o cultural, o galp�o – cuja �rea multiuso j� sediou festas, shows e festivais – est� se abrindo tamb�m para ser alugado para eventos corporativos. “Aqui � um espa�o particular e trabalhar s� com cultura �s vezes � invi�vel”, afirma a gerente. Para outubro, ela afirma que j� h� tr�s eventos marcados.
DESAFIO M�nica Cerqueira sabe que est� longe do ideal abrir uma sala de cinema apenas alguns dias de semana. “O come�o est� sendo meio devagar, porque tivemos que redimensionar o projeto. Mas n�o adianta ter um projeto ideal. Voc� tem que adequ�-lo para o que conseguiu captar.” E o desafio nos dias de hoje para fazer uma pessoa sair de casa para ir ao cinema � muito maior. “Antes, cinema era quase uma igreja. Se voc� n�o fosse, n�o via os filmes. Hoje, al�m dos blockbusters, dos 'reis Le�o' urrando em tudo o que � sala, h� os outros acessos – Netflix etc. Ent�o sempre penso no trabalho de escutar o p�blico, fazer com que as pessoas tenham uma rela��o quase afetiva com o espa�o.”
� uma rela��o de m�o dupla. O 104 pretende apresentar uma programa��o acess�vel (os ingressos custam R$ 10 a inteira) e de qualidade. Os filmes ser�o exibidos por duas semanas. O programa duplo da reinaugura��o: o document�rio My name is now – Elza Soares, de Elizabete Martins Campos, e Ex-Paj�, de Luiz Bolognesi, se repete nesta semana.
Os dois longas, exibidos no circuito comercial em 2018, foram escolhidos porque concorrem ao Grande Pr�mio do Cinema Brasileiro – a premia��o ser� nesta quarta (14), no Theatro Municipal de S�o Paulo, e os concorrentes est�o sendo exibidos tamb�m no Cine Humberto Mauro. My name is now � a �nica produ��o mineira na corrida. Um ingresso d� direito aos dois filmes. De acordo com M�nica, como s�o produ��es relativamente curtas, com pouco mais de uma hora de dura��o, foi poss�vel programar uma sess�o dupla.
J� a partir do pr�ximo dia 21, o destaque ser� a produ��o franco-chinesa Longa jornada noite adentro, de Bi Gan, que participou da mostra Um Certo Olhar do Festival de Cannes do ano passado. Lan�ado em mar�o em BH no Indie Festival, o longa, que acompanha com alguma dose de surrealismo a jornada de um homem � sua cidade natal em busca da mulher amada, foi pouco visto na cidade – esteve em cartaz com apenas uma sess�o di�ria, durante uma semana de maio, no Cine Belas Artes.
“Ser� uma programa��o incomum”, afirma M�nica. Pois n�o h� como concorrer com o comum nas salas de shopping. E isso ela sabe como ningu�m. A partir da d�cada de 1980, ela esteve envolvida em alguns dos cinemas mais importantes de BH – salas que formaram mais de uma gera��o de cin�filos. Em 1979, M�nica era estudante de comunica��o na PUC quando foi contratada como datil�grafa no Pal�cio das Artes.
Apaixonada por cinema, um ano depois entrou para o Cine Humberto Mauro, onde logo assumiu a frente. “Foi uma escola muito maior do que qualquer outra”, relembra. Ficou bons anos naquela sala, at� que, em 1988, com outros tr�s s�cios, um deles seu irm�o, Eduardo Cerqueira, hoje na distribuidora Zeta Filmes, resolveu abrir seu pr�prio cinema.
SAVASSI CINECLUBE O espa�o onde funcionava uma oficina de conserto de eletrodom�sticos na Rua Levindo Lopes n�o era o ideal. Mas tinha um p�-direito alto e um bom projeto arquitet�nico viabilizou o Savassi Cineclube. N�o demorou para que a pequena sala virasse a refer�ncia dos cin�filos da capital mineira. Era tudo muito pr�ximo. Um caderninho, M�nica se lembra, era aberto para que o p�blico apontasse suas prefer�ncias. A produ��o francesa Betty Blue (1986), de Jean-Jacques Beineix, por exemplo, sa�a e voltava ao cartaz segundo pedidos da plateia.
A partir dessa experi�ncia bem-sucedida, o grupo de s�cios inaugurou, em 1991, a Usina Unibanco de Cinema. No Bairro Santo Agostinho, o projeto era mais ousado, com mais de uma sala (inicialmente, duas, que chegaram a quatro) incluindo um bar-caf�, sonho antigo dos propriet�rios. Os s�cios foram mudando, e M�nica tamb�m.
Ela teve ainda, por um ano, em meados dos anos 1990, o Cine Imagin�rio, em Santa Efig�nia. Projeto ainda mais ambicioso – e que nunca se repetiu na cidade, vale dizer – ocupava um grande galp�o. Durante o dia, sess�es de cinema em poltronas m�veis. � noite, lugar de shows – Arnaldo Antunes e Tom Z� passaram por l�.
Depois desses tr�s espa�os, M�nica n�o teve mais sua pr�pria sala. Ainda programou, durante sete anos, outra sala alternativa de BH – o La Boca, que funcionava num bar e sinuca no Barro Preto. “E ele fechou por causa do bar, n�o pelo cinema. As duas salinhas sempre se sustentaram”, diz ela. Mais tarde, M�nica deu consultoria e ainda programou um projeto de exibi��o semanal no Museu das Minas e do Metal.
Fora da programa��o das salas, voltou-se para o roteiro – escreveu os longas Deserto azul (2013) e A casa do girassol vermelho, ambos projetos dirigidos por �der Santos, o �ltimo atualmente em fase de finaliza��o. “Ou seja, nunca sa� do cinema, ent�o n�o sinto como se estivesse voltando”, comenta. Mas n�o h� como negar que a chegada ao 104 marca um retorno dela ao cinema de rua. “E ele hoje � o anticinema de shopping. N�o s� por uma diferen�a f�sica, de estar na rua. � uma diferen�a na alma”, conclui.
CINE104
Pra�a Rui Barbosa, 104, Centro, (31) 3222-6457. Na quarta (14) e quinta (15), �s 19h30, ser�o exibidos, em programa duplo, os filmes My name is now – Elza Soares, de Elizabete Martins Campos, e Ex-Paj�, de Luiz Bolognesi. Nos dias 21, 22, 28 e 29 de agosto, no mesmo hor�rio, ser� apresentado Longa jornada noite adentro, de Bi Gan. Ingressos: R$ 10 e R$ 5 (meia).