
“Um homem way�u n�o pode tocar no corpo de algu�m que foi assassinado. V� chamar as mulheres”, ordena Rapayet (Jos� Acosta), diante da cena de uma chacina praticada por seu s�cio, Mois�s (Jhon Narvaez). Mois�s matou os fornecedores de Rapayet para se vingar de ter sido exclu�do da sociedade. O neg�cio em que o �ndio estava envolvido? O tr�fico de maconha para os Estados Unidos. Ocorre que os fornecedores de Rapayet pertencem a um ramo de sua fam�lia, e a chacina marca o in�cio do que ser� um cabo de guerra entre essas duas pontas.
Em P�ssaros de ver�o, que estreia nesta quinta-feira (22) no Brasil, os diretores colombianos Cristina Gallego e Ciro Guerra (O abra�o da serpente) prop�em uma abordagem original e carregada de sutilezas para o tema que tornou seu pa�s mundialmente conhecido. No longa – exibido no ano passado na Quinzena dos Realizadores, em Cannes –, nem Pablo Escobar nem os cart�is de Cali ou Medell�n s�o sequer citados. A hist�ria come�a em 1968, em Guajira, a des�rtica ponta Norte colombiana que � territ�rio dos way�u.
Na bela cena de abertura, um ritual cujo equivalente no mundo branco seria a festa de debutante. Filha de �rsula (Carmi�a Mart�nez), uma lideran�a na tribo, Zaida (Natalia Reyes) cumpriu seu tempo de recolhimento e agora se apresenta como uma mulher apta a ter sua pr�pria fam�lia. �rsula � quem negocia o dote e ter� a palavra final sobre o pretendente mais adequado. Na dan�a ritual�stica em que Zaida e Rapayet ora se afastam, ora se aproximam, sem que ele perca o equil�brio quando ela o faz correr de costas, fica claro que est�o destinados a ser um casal, embora ele n�o tenha dinheiro nem ascendentes vivos.
Mas Rapayet est� determinado a conseguir a quantia necess�ria para comprar o dote estabelecido por �rsula – animais de pastoreio, um item da economia local, e colares de pedra, um costume ancestral de prote��o. � aqui que se estabelece a sociedade entre Rapayet e Mois�s, o n�o ind�gena que primeiramente o ajuda a negociar caf� e, em seguida, maconha, objeto do interesse de turistas norte-americanos.
Confira o trailer do filme:
� aqui tamb�m que P�ssaros de ver�o faz sua clara op��o por n�o adotar um vi�s sociol�gico para a quest�o do tr�fico de drogas, mas sim contar uma hist�ria singular de personagens que lidam de modo tr�gico com o conflito estabelecido ao alienar seus valores morais em decis�es movidas pela cobi�a.
Com o passar dos anos – o filme � dividido em “c�nticos” e faz saltos temporais – os neg�cios de Rapayet prosperam e tamb�m as desaven�as com o bra�o familiar respons�vel pelo plantio da erva, configurando a descida ao inferno de uma fam�lia, que se d� n�o em queda livre, mas em c�mera lenta. Na entrevista a seguir, Cristina Gallego conta por que ela e Ciro Guerra optaram por essa abordagem. Em Belo Horizonte, o filme est� em cartaz no Cine Belas Artes, com sess�es �s 16h e 21h40.
� bastante inusual um filme colombiano que aborde o narcotr�fico sem mencionar Pablo Escobar e os cart�is. Como surgiu em voc�s o desejo de falar desse tema a partir de sua liga��o com a etnia way�u?
Havia muitas quest�es no ar. Primeiro, quer�amos conhecer a hist�ria de como tudo isso come�ou. Depois, havia uma cultura, a cultura way�u, com seus c�digos de comportamento muito estritos, a figura do palavreiro (o mensageiro da palavra). E tamb�m quer�amos abordar um tema que, de certa forma, � tabu – a ideia de que na Col�mbia somente se fazem filmes sobre narcotr�fico. N�o h� mais do que cinco filmes feitos na Col�mbia sobre isso. Essa imagem de n�s foi constru�da nos Estados Unidos. Quer�amos contar a nossa vers�o da hist�ria.
E que cuidados tomaram para n�o ser desrespeitosos com os way�u, que t�m, como voc� mencionou, c�digos de comportamento muito estritos?
Para n�s, era importante estabelecer que n�o est�vamos fazendo antropologia. Est�vamos, sim, investigando como vivia uma comunidade profundamente tradicional, mas humana. E, ainda que se pudesse pensar que n�o, profundamente capitalista. Uma comunidade em que as mulheres t�m um papel muito forte nos aspectos pol�tico, espiritual e econ�mico, mas que � absolutamente machista, no sentido de que os homens s�o os donos da palavra e os protagonistas da porta para fora. Achamos que esse era um marco interessante para falar n�o somente sobre os way�u, mas sobre conflitos humanos, fam�lia e honra. Nossa tentativa foi gerar empatia com o espectador, traz�-lo para dentro disso e com uma disposi��o de n�o julgamento. N�o se trata de acompanhar uma luta entre o bem e o mal, mas como uma fam�lia se quebra por dentro e n�o sob o efeito de for�as externas. E quer�amos construir efetivamente uma trag�dia, que � o que avaliamos que o narcotr�fico significou para n�s. Quando voc� entra numa comunidade, voc� se v� a�, dentro dela.
Um dos argumentos de Alfonso Cuar�n para ter feito Roma com a Netflix � que ele n�o conseguiria o dinheiro para fazer o filme que queria sobre uma dom�stica ind�gena, falado em dialeto. Foi dif�cil para voc�s obter o or�amento de P�ssaros de ver�o?''Embora estiv�ssemos filmando no deserto, enfrentamos tormentas e inunda��es. Lutamos o tempo todo com um clima que parecia estar nos amea�ando e expulsando. A comunidade dizia que os ancestrais estavam nos expulsando, porque n�o hav�amos pedido as permiss�es adequadas''
Cristina Gallego, codiretora de P�ssaros de ver�o
Na verdade, tivemos um primeiro impulso de fazer esse filme e escrev�-lo em 2014, antes de rodar O abra�o da serpente. A indica��o ao Oscar de O abra�o da serpente, toda a exposi��o que ele teve em festivais e o patamar de vendas para o exterior nos abriram portas para financiar esse filme muito facilmente. O aspecto do idioma nunca foi um empecilho para conseguirmos o dinheiro.
Para os padr�es atuais da Col�mbia, esse � um filme de alto or�amento?
Sim. Um or�amento m�dio dos filmes aqui gira em torno de US$ 400 mil. Esse longa custou quase US$ 3 milh�es.

Pensamos, com otimismo, que ia ser mais f�cil. Tivemos uma quantidade de contratempos muito grande. Embora estiv�ssemos filmando no deserto, enfrentamos tormentas e inunda��es. Lutamos o tempo todo com um clima que parecia estar nos amea�ando e expulsando. A comunidade dizia que os ancestrais estavam nos expulsando, porque n�o hav�amos pedido as permiss�es adequadas. Mas isso acabou sendo uma superequipe de efeitos visuais. O filme passa de um sol inclemente para a �gua. Tivemos at� uma tormenta el�trica que causou estragos e nos obrigou a reescrever o final. No fim, essa � a viagem que os espectadores t�m.
Nos cr�ditos do filme h� um agradecimento de cunho religioso � prote��o que tiveram. O fato de a comunidade dizer que os ancestrais os estavam expulsando porque voc�s n�o haviam pedido as permiss�es adequadas n�o assustou voc� demais?
Claro que me assustava. Ningu�m faz um filme desses sem ter um n�vel de abertura e supersti��o bastante grande. Estar no deserto e ver que ele estava inundando me fazia lembrar da saga de Terry Gilliam para filmar O homem que matou Dom Quixote (projeto que levou mais de 20 anos). Sent�amos que est�vamos naufragando, que ir�amos a pique e nos dava muito medo. Obviamente, est�vamos num lugar com muita presen�a e for�a espiritual. Sab�amos que est�vamos removendo a hist�ria dos mortos. Est�vamos com muito medo, mas tamb�m tentando nos proteger, usando a f� e a uni�o de uma equipe para enfrentar seus maiores medos. Temos uma equipe que foi constru�da ao longo de anos e hoje se parece com uma fam�lia – muito amorosa, muito entregue e muito forte nas dificuldades. S�o � prova de tudo.
O que acharam do filme os way�u que julgaram que seus ancestrais estavam contra as filmagens?
Adoraram! O filme teve 200 mil espectadores na Col�mbia, e 10% desse p�blico foram ind�genas, que viajaram em caminh�es para lotar as salas de cinema. Esse filme os fez recuperar muitas coisas de suas tradi��es, a forma digna que t�m de ser. Eles aceitam o filme como deles.

Procuramos entre atores profissionais, de teatro, de TV, naturais – fizemos um casting muito amplo. Todos t�m caracter�sticas diferentes e nosso objetivo era organizar um grupo que soasse como uma fam�lia que estava conectada. Fizemos umas semanas de prepara��o numa oficina especialmente montada para isso. Os atores profissionais aprendiam a l�ngua, os costumes, como tecer uma rede, todas essas coisas. E os atores naturais aprendiam sobre o processo de ensaios e o n�vel de compromisso que se exige na filmagem de um longa.
Voc� mencionou o fato de a imagem da Col�mbia narcotraficante no cinema ter sido fabricada nos Estados Unidos. Qual � sua opini�o sobre Narcos, a s�rie do brasileiro Jos� Padilha para a Netflix?
H� uma coisa muito problem�tica com Narcos que � ter dado o status de her�i para personagens t�o sinistros como Pablo Escobar. A Col�mbia tinha tentado limpar sua imagem e se livrar da ideia do narcotr�fico, que era muito presente nos anos 1980, com a viol�ncia que fazia parte dessa �poca, na escala do terrorismo. Esse era um tema superado. Narcos reviveu essa imagem da Col�mbia como o pa�s dos narcotraficantes, dos terroristas. � claro que isso faz parte de uma hist�ria, mas tamb�m faz parte de como se conta essa hist�ria para o p�blico estrangeiro. Num pa�s que sofreu tanto com o narcotr�fico, � muito desagrad�vel ver que Medell�n se encheu de gente que queria fazer “narcotours”. Isso n�o � legal. � como se voc� fosse para a Alemanha com camisetas de Hitler, pensando que � isso que os representa. Para n�s, � um insulto essa posi��o.