
''Um desn�vel absurdo de oportunidades entre a popula��o branca e negra � o grande legado da escravid�o. A desigualdade social no Brasil �, basicamente, uma heran�a da escravid�o. E esse � o principal assunto do nosso pa�s''
Laurentino Gomes, escritor
Entre 1780 e 1787, o m�dico brit�nico Alexander Falconbridge participou de quatro viagens em navios negreiros africanos que cruzaram o Atl�ntico rumo �s Am�ricas. Em 1788, ao publicar An account of the slave trade on the coast of Africa (Um relato do tr�fico de escravos na costa da �frica, em tradu��o livre), ele apresentou uma observa��o estarrecedora. Acompanhando a rota dos navios, havia hordas de tubar�es, “em n�mero inacredit�vel, devorando rapidamente os negros que eram arremessados da amurada”.
Durante tr�s s�culos e meio, a partir de 1500, 12,5 milh�es de homens e mulheres, tornados escravos na �frica, foram enviados ao Novo Mundo. Destes, 1,8 milh�o morreram no trajeto. Fazendo uma conta r�pida, o escritor e jornalista Laurentino Gomes chegou ao n�mero de 14 cad�veres lan�ados ao mar diariamente ao longo desse per�odo. O volume de corpos era t�o grande que acabou interferindo na rota dos tubar�es.
O Brasil recebeu 40% do total de negros escravizados embarcados na �frica, tornando-se o maior territ�rio escravista do hemisf�rio ocidental. “A desigualdade social no Brasil �, basicamente, uma heran�a da escravid�o. E esse � o principal assunto do nosso pa�s”, afirma Laurentino, que se tornou um autor best-seller com a trilogia 1808-1822-1889 (2,5 milh�es de exemplares vendidos desde 2007, quando saiu o primeiro volume). Agora, ele finalmente se volta para aquele que considera “o grande tema” da hist�ria do Brasil.
Com tiragem inicial de 100 mil exemplares, Escravid�o – Do primeiro leil�o de cativos em Portugal at� a morte de Zumbi dos Palmares (Globo Livros) � o volume inicial de uma nova trilogia na qual o escritor pretende percorrer 350 anos de “uma trag�dia humanit�ria de propor��es gigantescas”. No livro que vem agora a p�blico, o autor refaz 250 anos de hist�ria, do in�cio da captura de escravos pelos portugueses na costa da �frica at� o final do s�culo 17.
O segundo volume, que ser� publicado daqui a um ano, ser� ambientado no s�culo 18, o auge do tr�fico negreiro – Minas Gerais ser� o destaque da narrativa, j� que o per�odo remonta � descoberta das minas de ouro e diamante. J� o fecho da trilogia, previsto para 2021, ser� dedicado ao movimento abolicionista e ao seu legado nos dias atuais.
Para a empreitada, que resultar� em 1,5 mil p�ginas editadas, Laurentino, al�m de extensa pesquisa (leu em torno de 200 livros), passou uma temporada na estrada. Ao longo de um ano, viajou por 12 pa�ses, oito deles em territ�rio africano. A exemplo do que fez em sua trilogia anterior, na que agora se inicia o autor apresenta a hist�ria de maneira acess�vel (mas nunca leviana ou gratuita), embasada em um levantamento jornal�stico de peso. “No que diz respeito a n�s, escritores e jornalistas, devemos infundir um componente de racionalidade na discuss�o atual”, afirma o escritor.
N�meros da escravid�o 1501 a 1867*
- 12,5 milh�es de negros escravizados embarcaram nos navios negreiros
- 10,5 milh�es de negros escravizados chegaram vivos �s Am�ricas
- 1,8 milh�o de negros escravizados morreram na travessia do Atl�ntico
- 5,8 milh�es de negros escravizados vieram para o Brasil, o pa�s que mais recebeu cativos no per�odo
- 2,3 milh�es de negros escravizados vieram para a regi�o Sudeste
- 1,5 milh�o de negros escravizados chegaram ao Rio de Janeiro, o maior porto negreiro da hist�ria
- 7 em cada 10 africanos que vieram para o Brasil sa�ram de Angola e do Congo
* Fonte: Escravid�o, de Laurentino Gomes
Entrevista
Escrever sobre hist�ria em um momento em que tentam reescrever a hist�ria � um ato de resist�ncia, n�o?
O Brasil e o mundo, pois isso � um fen�meno global, vivem um momento muito avesso a qualquer racionalidade, pesquisa, ci�ncia. Qualquer discuss�o que realmente coloque as coisas em bases concretas n�o � bem-vinda. Est�o voltando as manifesta��es de ideologias que j� julg�vamos superadas. Escrever, mais do que nunca, � necess�rio para adicionar algum elemento de racionalidade. � importante levar em conta que n�o se estuda o passado s� pelo car�ter da curiosidade, mas a nossa rela��o com o passado ajuda a construir a identidade do presente e tamb�m a projetar a do futuro. Agora, � natural que a hist�ria seja manipulada, usada de forma expl�cita por partidos pol�ticos, discursos, campanhas. Isso sempre aconteceu. A gente est� vendo nos Estados Unidos, que t�m dois s�culos e meio de democracia, uma discuss�o t�o polarizada e irracional. O papel do jornalista, do escritor � pesquisar, mostrar de forma concreta que essa discuss�o n�o � aleat�ria, n�o � coisa de mero “ach�metro”. N�o adianta escrever “eu acho que a escravid�o foi assim”. Este livro, em particular, chega em um momento adequado. Falando para um p�blico mais amplo, espero que ele d� alguma contribui��o para a racionalidade dentro da catarse que vivemos hoje. O cen�rio me preocupa, sim, pois h� uma aposta deliberada na desinforma��o e no enfrentamento com objetivos pol�ticos.
Por que a escravid�o � o grande tema da hist�ria do Brasil?
Na minha trilogia anterior, eu tentava falar do Brasil do ponto de vista de na��o: nossas caracter�sticas legais, institucionais, burocr�ticas, que aparecem nas tr�s datas (1808, 1822 e 1889). Agora, a escravid�o mostra uma dimens�o mais profunda, j� que ela v� o Brasil como um ser vivo, pois foi a maneira como a sociedade se construiu antes do Estado. Claro que houve a expans�o portuguesa, os ind�genas rapidamente dizimados. S� que a contribui��o africana foi mais decisiva do ponto de vista econ�mico. O Brasil se tornou viciado em m�o de obra cativa desde a chegada de Cabral. Todos os nossos ciclos econ�micos foram alimentados por m�o de obra cativa. H� ainda a contribui��o para a nossa identidade cultural, da culin�ria, m�sica, dan�a, capacidade de resili�ncia e at� mesmo do sorriso f�cil. E h� um terceiro aspecto: um desn�vel absurdo de oportunidades entre a popula��o branca e negra � o grande legado da escravid�o. A desigualdade social no Brasil �, basicamente, uma heran�a da escravid�o. E esse � o principal assunto do nosso pa�s.
Quais s�o as maiores dificuldades que o senhor enfrentou para pesquisar o tema?
Hoje, a escravid�o talvez seja o assunto mais estudado no mundo todo, inclusive no Brasil. Eu, como jornalista, tive dificuldade em ser seletivo. Para a pesquisa, li 200 livros. H� uma quantidade inacredit�vel de n�meros, de hist�rias de personagens, ent�o tive que fazer uma sele��o, sen�o a obra ficaria incompreens�vel. Fugi da narrativa cronol�gica, fazendo como que ensaios em cada cap�tulo, para que, no final, o leitor tenha uma no��o de conjunto. Outra dificuldade � que existem vis�es muito contradit�rias a respeito da escravid�o. Casa grande & senzala (Gilberto Freyre, 1933) apresenta uma vis�o patriarcal, por exemplo, enquanto outras obras, com as de Abdias do Nascimento, t�m uma hist�ria mais guerreira, de enfrentamento. Claro que n�o posso desempatar isso. Busquei mostrar o olhar branco, o olhar negro. Voc� � afetado pelo momento em que escreve. � importante reconhecer isso e ser transparente com o leitor, apresentando vis�es diferentes.
Nas viagens que o senhor fez pela �frica, qual a vis�o que lhe foi apresentada sobre a escravid�o? H� algum ressentimento contra o Brasil?
N�o, ao contr�rio. Em todos os lugares me senti muito bem-vindo. A cultura brasileira � muito forte. Al�m de acompanhar todas as novelas, a literatura, os programas de TV, h� regi�es que t�m carnaval e at� culto ao Senhor do Bonfim. A escravid�o na �frica n�o � uma ferida aberta como � no Brasil. Quem ficou na �frica n�o foi v�tima de escravid�o. Desde Jos� do Egito, que est� no G�nesis, a escravid�o � parte da cultura da �frica. Al�m do mais, houve um envolvimento grande da elite militar da �frica com a escravid�o – e parte dela continua mandando at� hoje.
Como o senhor lida com o fato de ser um autor best-seller em um pa�s em que se l� pouco?
Meu primeiro livro, 1808 (2007), vendeu 1,5 milh�o. No come�o, me assustei bastante. (O sucesso) Gerou uma press�o psicol�gica muito grande, tanto que tive que fazer tr�s anos de terapia para conseguir escrever o segundo livro (1822, publicado em 2010). Mas agora me sinto orgulhoso, alegre por ter uma acolhida muito generosa dos leitores. S� n�o subo em salto alto. Vejo isso como uma miss�o. Sou crist�o, religioso, ent�o vejo isso como uma voca��o que Deus me deu.

Turn� de lan�amento
At� novembro, Laurentino viajar� para 20 cidades em 12 estados (totalizando 30 eventos) para lan�ar Escravid�o. Em BH, o autor participa do Sempre um Papo em 9 de outubro, no Teatro Sesiminas. Antes, ser� um dos convidados da quinta edi��o do Festival de Hist�ria de Diamantina (fHist), de 4 a 7 de outubro, na cidade hist�rica.
Laurentino Gomes
Globo Livros (504 p�gs.)
R$ 49,90