
Mia Couto deve terminar um livro de mem�rias at� o final do ano. Lembran�as da adolesc�ncia em Beira (Mo�ambique), cidade natal na qual viveu at� os 17 anos, d�o forma ao relato, mas o autor n�o vai falar do furac�o que destruiu a cidade na d�cada de 1970, apesar de ser uma recorda��o forte.
Couto ficou muito abalado com o furac�o que voltou a devastar a cidade, em mar�o deste ano. Ele estava, justamente, em um voo em dire��o a Beira com a inten��o de passar uns dias a fim de colher material para o livro, quando a tempestade come�ou.
O avi�o foi desviado para uma cidade no Norte de Mo�ambique e, quando conseguiu retornar � terra natal, se deparou com um rastro de destrui��o que deixou mais de 200 mortos. “Foi muito duro, tive que ser consolado por meus amigos escritores da Beira. Depois voltei e fiquei duas semanas na cidade para continuar o que j� era meu trabalho, que era meu prop�sito inicial”, conta o escritor, que esteve nesta semana em Bras�lia, onde recebeu o t�tulo de honoris causa da Universidade de Bras�lia (UnB). Ele est� decidido a n�o incluir o furac�o de sua adolesc�ncia no livro por receio de ser oportunista e desrespeitar as v�timas da trag�dia deste ano.
�s vezes, a literatura � atropelada pela realidade e tudo se reformula. �s vezes, a realidade � t�o pungente que vira literatura, como na s�rie As areias do imperador, a trilogia encerrada em 2018 na qual Couto mergulha na hist�ria colonial para contar a ascens�o e queda do Estado de Gaza. A publica��o mais recente, no entanto, � uma pe�a de teatro: O terrorista elegante e outras hist�rias foi escrita a quatro m�os, com o angolano Jos� Eduardo Agualusa, e marca a incurs�o de Couto pelo mundo da dramaturgia.
Sobre os encontros com o p�blico, Couto, que se tornou uma celebridade liter�ria no Brasil, conta que adora a oportunidade de dialogar, mas tem consci�ncia de que est� numa posi��o privilegiada, especialmente quando se trata de literatura africana. Na entrevista a seguir, o autor mo�ambicano falou sobre o novo livro, mas tamb�m sobre suas preocupa��es diante de um mundo que nega as mudan�as clim�ticas e sobre o desconhecimento que h� entre Brasil e �frica, apesar das heran�as comuns nas duas sociedades.
As universidades brasileiras t�m enfrentado s�rios problemas com o novo governo: h� o corte de gastos, al�m da cren�a de que as �reas de humanas s�o dispens�veis. O senhor � bi�logo, mas tamb�m � escritor. Que recado daria a quem pensa que uma �rea � mais necess�ria que a outra?
Olha, sou uma v�tima desse pensamento. Quando comecei minha forma��o, desde a escola prim�ria, acho que perdi muito, porque n�o havia nenhuma preocupa��o com a �rea de humanidades, das artes, com o que podia ser a resposta para a curiosidade, para a imagina��o de uma crian�a. Porque essa � uma quest�o de como lidar com a pr�pria inf�ncia, com pessoas que est�o num momento que querem se espantar com o mundo. A mim preocupa muito que haja mais um golpe nesse territ�rio, que � fundamental. � um assalto t�o avassalador que, a certa altura, n�o tem que ter pruridos sobre isso, uma quest�o � o assunto das escolhas pol�ticas do pa�s, isso diz respeito ao Brasil, mas quando o assunto � a democracia e a ditadura, tem a ver com todos n�s.
"Para quem conhecia as considera��es do atual presidente (do Brasil), mesmo antes da campanha, n�o h� qualquer coisa que surpreenda, mas, para o mo�ambicano comum, est� cada vez mais claro essa coisa de uma via que n�o respeita o quadro institucional''
E como essa nova fase do Brasil tem sido percebida em Mo�ambique?
Para quem conhecia as considera��es do atual presidente, mesmo antes da campanha, n�o h� qualquer coisa que surpreenda, mas, para o mo�ambicano comum, est� cada vez mais claro essa coisa de uma via que n�o respeita o quadro institucional, com uma diplomacia muito estranha na hist�ria do Brasil, porque, quer o governo fosse de esquerda ou de direita, a diplomacia era feita de maneira profissional, sempre na tentativa de come�ar amizades, e isso parece ter sido abandonado.
Pouqu�ssimos brasileiros conheciam a hist�ria contada na trilogia As areias do imperador, apesar de o Estado de Gaza ter sido praticamente um imp�rio. Por que decidiu escrever essa trilogia?
Escolhi esse per�odo em Mo�ambique porque � muito rico do ponto de vista da hist�ria, de coisas que s�o do passado, mas est�o vivas no presente. � uma situa��o hist�rica particular, estamos na presen�a de dois dom�nios imperiais, um dominado por um africano, uma esp�cie de colonialismo africano, e outro europeu, em disputa no mesmo territ�rio. Isso me parece bastante rico, a hist�ria de um mundo que nunca foi linear e nunca foi f�cil de entender.
H� muito mais inclina��o em conhecer o Brasil por parte dos africanos e dos mo�ambicanos do que no sentido contr�rio. Por que, na sua opini�o?
Realmente, existe uma n�o correspond�ncia entre aquilo que conhecemos uns dos outros. A �frica conhece mais do Brasil do que o Brasil conhece da �frica, com o agravante que muitos brasileiros pensam que conhecem, e o pior grau da ignor�ncia � esse. Imaginam que � f�cil, porque h� algo de �frica dentro do Brasil, mas, na verdade, tamb�m h� uma falha na pr�pria �frica em promover isso, ela tem que ser mais agressiva nessa pol�tica de se mostrar ao mundo, porque n�o � uma, s�o v�rias �fricas. � preciso o reconhecimento de que a �frica � uma coisa plural, porque de maneira f�cil se fala da �frica como se fosse uma.
“Muitos brasileiros pensam que conhecem”: h� um equ�voco na maneira como olhamos para a �frica?
H� uma grande margem que n�o conhece e n�o quer conhecer, n�o faz parte de suas preocupa��es, mas h� uma outra margem do Brasil que se preocupa e quer, pelo menos, resgatar uma liga��o que, � claro, est� presente no Brasil pela escravid�o e pela heran�a cultural que isso traz. Mas, mesmo o interesse entre esse setor, apesar dos avan�os, tem muito pouco a ver com a �frica. A �frica tem uma carga da modernidade, que n�o � s� da tradi��o, ela vive com um p� no passado recente, claro, mas o mais bonito � o que a �frica construiu hoje, e isso � pouco conhecido.
A literatura pode ser uma forma de contornar isso? Afinal, o senhor � um autor adorado no Brasil…
N�o sei se, se eu fosse africano de ra�a negra, teria essa mesma adora��o. Estou consciente de que me beneficiei do privil�gio de ter uma ra�a que se abre, que tem mais receptividade. Isso � grave, mas � realidade e � contra minha vontade. E o que quero � lutar contra essa condi��o, usar esse privil�gio para isso. H� muitos escritores importantes em Mo�ambique para se conhecer e espero que esse lugar de visibilidade leve brasileiros a querer conhecer outros escritores. E muitos deles s�o mulheres, outra coisa importante. Onde vou, trago livros de v�rios autores, numa esp�cie de pequena guerra de guerrilha, e insisto que n�o estou aqui sozinho, a literatura mo�ambicana � feita por m�ltiplas vozes, como as de Ungulani Ba Ka Khosa, Paulina Chiziane e Luc�lio Manjate.
''Tenho ins�nias cr�nicas e, portanto, aproveito isso como um momento produtivo. Tornei-me amigo da ins�nia e aquilo se resolveu''
Soube que est� escrevendo um novo livro e que nele falaria do furac�o que arrasou Beira nos anos 1970, mas que desistiu diante da trag�dia recente. Como lidou com isso? Com a trag�dia? E o que h� no novo livro?
Eu estava j� escrevendo esse livro, minhas mem�rias, de adolesc�ncia, mem�rias da cidade onde nasci e cresci at� os 17 anos, e tinha programado uma viagem para reavivar lembran�as, para ter um contato mais pr�ximo, porque desde que sa�, vivo na capital, e quando fiz a viagem houve o furac�o, o avi�o foi para o Norte. Estou continuando a escrever como se n�o houvesse o ciclone e tem uma esp�cie de um pudor de trazer esse assunto para esse livro, porque me parece uma coisa de ocasi�o, de oportunidade que n�o quero ter, porque vivi de maneira intensa esse drama do ciclone. N�o quero colocar em fic��o, tem que ter respeito.
O senhor � muito produtivo, escreve praticamente um livro por ano, mas tamb�m trabalha como bi�logo. Como as duas atividades dialogam?
Sou muito irrespons�vel. Uma das respostas � que realmente, quando estou fazendo biologia, tamb�m estou fazendo literatura, n�o vejo bem essa fronteira. Meu trabalho permite, porque trabalho no campo em contato com pessoas mais que a natureza. Mas tenho ins�nias cr�nicas e, portanto, aproveito isso como um momento produtivo. Tornei-me amigo da ins�nia e aquilo se resolveu.
''Estou consciente de que me beneficiei do privil�gio de ter uma ra�a que se abre, que tem mais receptividade. Isso � grave, mas � realidade e � contra minha vontade''
O senhor � diretor de uma empresa que avalia impactos ambientais. Como encara o que vem acontecendo no Brasil em rela��o � Amaz�nia e no mundo em rela��o � descren�a diante da mudan�a clim�tica?
Preciso dizer duas ou tr�s coisas sobre isso. Primeiro, o inc�ndio da Amaz�nia come�ou antes, num inc�ndio menos vis�vel, menos midi�tico, que foi o inc�ndio que se abateu sobre as institui��es brasileiras que tratam das quest�es ambientais. Esse inc�ndio j� estava lavrando h� mais tempo. A segunda � que sou adepto de que � preciso n�o separar as quest�es ambientais, n�o aceitar que sejam tratadas como um gueto. Os inc�ndios na Amaz�nia s�o uma quest�o ambiental, mas s�o, sobretudo, uma quest�o pol�tica, econ�mica, de decis�o do governo, � preciso n�o ser t�o separado. Essa ambientaliza��o tem que ser vista na totalidade. E, sobre as mudan�as clim�ticas, acho que as evid�ncias s�o t�o claras que � preciso realmente uma total aus�ncia, uma total cegueira para aceitar que n�o existem. � obviamente um discurso de ordem pol�tica para apagar o que � evidente. Mas, tamb�m, por parte dos defensores do meio ambiente se instaurou uma esp�cie de clima do fim de mundo e esse discurso apocal�ptico nem sempre ajuda porque cria medo, cria uma ang�stia que propicia o surgimento dos salvadores, dos messias, que s�o essas novas tend�ncias populistas. Elas t�m todo o terreno psicol�gico para surgir como a solu��o. Porque eles precisam desse ambiente de cria��o de medo, de aus�ncia de sa�da.
Como isso � percebido em Mo�ambique?
Para os africanos, j� houve v�rios fins do mundo. O que se est� a viver hoje, sobretudo na Europa, � que esse territ�rio da civiliza��o deixou de ser o centro e isso � vivido como o fim do mundo. Se voc� perguntar a um ind�gena das am�ricas, ele viveu, durante s�culos, esse sentimento de fim do mundo. A mesma coisa para os africanos, que enfrentaram a escravid�o e depois o colonialismo. N�o � novo esse sentimento de que se est� a perder o ch�o.
E a literatura nisso, qual o papel dela?
Ela faz o contraponto desse ambiente de cria��o de medo e obscuridade. Porque h� uma coisa importante que � o apagamento do que � a subjetividade, de um discurso falsamente coletivo. Enquanto o discurso pol�tico fala da distin��o entre maiorias e minorias, a literatura insiste na observa��o a partir da subjetividade e afirma que cada pessoa � uma maioria, � a humanidade inteira.