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Estado de Minas LITERATURA/RESENHA

Em 'A mem�ria do perigo', Ana Cec�lia Carvalho investiga o avesso da aventura humana

Volume encerra a Trilogia da Inquietude. Nos dois volumes anteriores a autora explorou desentendimentos irreconcili�veis de nossa �poca


postado em 02/11/2019 04:00 / atualizado em 01/11/2019 18:15

Lino de Albergaria*
Especial para o Estado de Minas


Ana Cec�lia Carvalho, com o romance A mem�ria do perigo, conclui a trilogia em que aborda o tema da inquietude, presente nos volumes anteriores Os mesmos e os outros: o livro dos ex e O foco das coisas & outras hist�rias, quando registra as impens�veis estranhezas que permeiam as rela��es interpessoais.

Desta vez, prefere tratar do absurdo que comanda a exist�ncia humana, explorando o esgar�amento de uma mem�ria fluida, que, entre �gua e areia, impossibilita ao narrador compreender ou absorver um acontecimento traumatizante. Ele nunca poder� ter certeza do que realmente viu por ter chegado um breve minuto ap�s a explos�o.

A mem�ria e a linguagem s�o questionadas como possibilidades de se construir um sentido objetivo nesta narrativa em que um suposto Xavier se dirige ao interlocutor Robert de uma forma imprecisa, com as identidades trocando constantemente de lugar. Nat�lia, que se interp�e entre os dois homens, anuncia outra mulher, multiplicada em Denise/Anelise/ Alex, que, por sua vez, traz � cena um rapaz que pode ser Bianchi ou o qu�mico da banca de revistas.

Os dois �ltimos personagens, apesar da identifica��o m�ltipla, t�m caracter�sticas que os denunciam: a loura m�ope com o esmalte sempre descascado e o rapaz com uma cicatriz que pode sangrar quando ele fala.

O enigma subjacente ao texto, pressupondo a aus�ncia ou a incompletude de sentido das coisas, deixa, para uma poss�vel decifra��o, v�rias trilhas ao longo dos 19 cap�tulos. S�o sutis chaves de leitura, acionadas por refer�ncias liter�rias, musicais, cinematogr�ficas.

Precisos, os t�tulos t�m um forte di�logo com as ep�grafes. Beckett e Cort�zar podem iluminar o tumulto das palavras ou a fluidez das pessoas verbais. O misterioso Armand Lancestrong, primeiro a ser citado, d� o tom do que vir�: as cartas n�o enviadas, levando � absurdidade pioneira de Melville e seu anti-her�i Bartebly, al�m da men��o � fala que sangra do mesmo modo que nos fere o sil�ncio.

J� na primeira alus�o ao incidente detonador da nebulosa hist�ria, o narrador percebe no caminh�o uma carga de livros, provocando um alerta de perigo. Teme ser tragado pelo excesso de sentido. Lembra, ainda, que o interlocutor, Robert, havia dito para que se precavesse contra o lapso que tudo engolfa. Uma grande m�quina explode como uma enxurrada de frases, introduzindo imagens de peixes, c�es, gatos, cavalos e o p�ssaro de um olho s�, mais tarde identificado como um grande corvo. Simb�licos, os animais o ofuscam, impedindo a recorda��o definitiva do perigo que n�o p�de entender.

O personagem se transfere para um retiro na montanha, depois substitu�do por uma casa de muitos c�modos vazios, com seus pensamentos trazidos na mala, � espera de um lampejo de sentido, como Vladimir e Estragon aguardavam em v�o por Godot.

O primeiro coment�rio musical dos muitos que v�o pontuar o texto evoca o rock do grupo Eagles, Hotel Calif�rnia, uma armadilha, uma pris�o, o lugar que nunca poder� ser abandonado.

Embora ocupando corpos diferentes, pois surgem juntas, Nat�lia e Anelise/Denise s�o semelhantes na rigidez das posturas e no vestu�rio. T�m a fun��o de observadoras do comportamento do homem recluso e estariam a servi�o de Robert, o contraponto do narrador e destinat�rio de sua escrita.

Anelise traz at� o solit�rio personagem um rapaz, que, pelo mesmo nariz adunco, se revela o duplo de um certo Bianchi, antigo chefe de nosso confuso her�i. Ele duvidosamente assegura � mulher que os animais – gatos, c�es, aves – pouco sofreram, apesar da refer�ncia � pe�a de Peter Schaffer, Equus, sobre um jovem que cegava cavalos. Vem ao encontro do leitor o p�ssaro de um olho s�. A falta de uma vis�o completa refor�a as falhas da mem�ria.

Outra ep�grafe de Armand Lancestrong afirma que ficamos cegos quando as ilus�es em que nos refugiamos explodem, e a teia de sentidos se desfaz.

Entre os presentes enviados por Robert – o outro? –, h� um pacote de alfinetes e uma velha revista. Os alfinetes seriam usados pra prender as palavras de um dicion�rio etimol�gico, doa��o do dono da banca de revistas, desaparecida quando explode o caminh�o. Da revista dispersa-se tamb�m uma manada de palavras.

Quando deixa sua casa, o homem � levado por Nat�lia a um pr�dio labir�ntico, onde na realidade n�o teria entrado, pois um acidente o traz de volta, ferido junto ao olho esquerdo. Come�a a duvidar se tudo aquilo n�o seria imagina��o. Personagens das telas de cinema se intrometem no mon�logo dirigido a Robert, movidos por comportamentos estranhos e que desafiam as normas, oriundos de filmes como Perdas e danos e Um estranho no ninho. Tamb�m surge Bartebly, cria��o de Melville, precursor do absurdo de Kafka e Camus.

Reproduzindo a atmosfera do outro conto, trabalhando no departamento de cartas perdidas, sob a orienta��o de Robert, ele subtrai uma fotografia, na qual levitam as personagens da cena final que n�o percebeu.

A derradeira trilha sonora posta para tocar vem de uma obra de Sergio Leone, t�o destoante do resto da filmografia evocada, mas seu nome � Dopo l' esplosione. Acompanha a invoca��o de S�sifo, cujo mito Albert Camus explorou como a nega��o de algum sentido para a exist�ncia humana. A liberdade, para o existencialista, s� se acha na aceita��o do absurdo.

Finalizando sua explora��o da inquietude, Ana Cec�lia, que j� havia posto em relevo a met�fora dos desentendimentos irreconcili�veis de nossa �poca, urde essa teia mutante e inst�vel, como se nela juntasse os cacos de um espelho que, numa imprevis�vel combina��o, desvelam os avessos da aventura humana na inten��o de explicar a vida.

* Lino de Albergaria � escritor. Autor, entre outros, de O homem delicado, Um bailarino holand�s, Em nome do filho e de vasta obra dedicada ao p�blico infantojuvenil. 

A MEM�RIA DO PERIGO
. De Ana Cec�lia Carvalho
. Quixote+Do
. 90 p�ginas
. R$ 39,90


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