
Ism�lia, musa do poeta mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), virou rap. E com o aux�lio luxuoso de Fernanda Montenegro. Obra-prima do simbolismo, o poema cruzou os s�culos 19 e 20 para se encaixar nas rimas de Emicida numa das faixas mais supreendentes (e contundentes) do rec�m-lan�ado disco AmarElo.
A trag�dia da mo�a enlouquecida por amor – declamada por Fernanda – serve de met�fora para o abismo da exclus�o social imposta aos negros brasileiros. “As asas que Deus lhe deu/ Ruflaram de par em par/ Sua alma subiu ao c�u/ Seu corpo desceu ao mar”, rimou Alphonsus. “Hasthags Preto no topo, bravo!/ Oitenta tiros te lembram que existe pele alva/ e pele alvo”, rima Emicida.
Em sua letra, o rapper se refere aos 111 tiros da pol�cia que executaram cinco jovens em Costa Barros (RJ) e tamb�m aos 80 disparos de fuzil destinados ao carro do m�sico negro Evaldo Rosa, no Rio de Janeiro, durante opera��o do Ex�rcito.
“Pra mim, Ism�lia � mais contempor�nea do que tudo. � a met�fora do que o salto da cidadania plena significa para a popula��o n�o branca do Brasil. Ela tenta tocar aquela lua, mas despenca na pedra”, compara Emicida.
“Pra mim, Ism�lia � mais contempor�nea do que tudo. � a met�fora do que o salto da cidadania plena significa para a popula��o n�o branca do Brasil. Ela tenta tocar aquela lua, mas despenca na pedra”, compara Emicida.
O rapper conta que Fernanda lhe ensinou muito, mas n�o se furtou a aprender. “Ela foi de uma humildade gigante”, diz. A atriz j� havia gravado o poema, mas pediu a Emicida para lhe explicar sua vis�o de Ism�lia. Ao ouvi-lo comparar a queda da mo�a com o abismo social no Brasil e o drama dos negros, n�o titubeou. Voltou parao est�dio e gravou tudo de novo.
Emicida n�o conheceu Alphonsus de Guimaraens nos livros de col�gio. Aos 6 anos, foi apresentado ao mestre dos simbolistas pela voz de sua m�e, Jacira Roque. Vi�va, quatro filhos para criar, ela estudava � noite depois de dar duro em tr�s casas de fam�lia. Lia poesia em voz alta para memorizar as palavras, driblando assim as dificuldades de aprendizado.
“Eu e meus irm�os aprendemos a literatura do Brasil por osmose”, conta o rapper. E ele pegou, mesmo, gosto pela coisa. Tanto que o t�tulo de seu novo disco vem de um poema de Paulo Leminski (1944-1989). Diz assim: “Amar � um elo/ entre o azul/ e o amarelo”. Outra refer�ncia veio de Manuel Bandeira e os girass�is do poema Pens�o familiar.
Muriquinho do rap
Muriquinho do rap
H� outra met�fora do s�culo 19 no disco novo de Emicida. A faixa Emin�ncia parda � aberta pela paraense Dona Onete. “Muriquinho piquinino, muriquinho piquinino/ Purugunta onde vai/ Purugunta onde vai”, canta ela. Trata-se de um lamento dos escravos da regi�o de Diamantina resgatado pelo linguista mineiro Aires da Mata Machado Filho (1909-1985), autor do livro O negro e o garimpo em Minas Gerais.
“� um canto de lamento dos amigos, que choram porque n�o podem seguir o menino que vai atr�s da liberdade”, diz o rapper, revelando que o muriquinho – o pequeno escravo que foge da senzala rumo ao quilombo – � ele pr�prio. “� a m�o do Brasil escravista tentando me alcan�ar”, compara.
Na faixa, ouve-se a voz de um rep�rter informando sobre a pris�o do rapper em BH, ocorrida em 13 de maio de 2012, por ironia Dia da Aboli��o da Escravatura. Durante um festival de hip-hop no Barreiro, ele cantou Dedo na ferida, cr�nica do drama de moradores de ocupa��es urbanas e favelas. A letra diz assim: “O povo tem que cobrar com os Parabelo/ Porque a justi�a deles s� vai em cima de quem usa chinelo (…) Homens de farda s�o maus/ era do caos/ carniceiros ganham pr�mios/ na terra onde beb�s respiram g�s lacrimog�neo”.
Preso por desacato � autoridade, Emicida respondeu a processo por cerca de tr�s anos. Durante todo esse tempo, frequentou o f�rum em S�o Paulo. Era o �nico negro a depor sem algemas por l�.
De 2012 para c�, muita coisa mudou para Emicida. Atualmente, � um dos rappers mais respeitados do pa�s, montou a bem-sucedida empresa cultural Laborat�rio Fantasma, uma esp�cie de incubadora de talentos, mant�m a grife de roupas LAB, respons�vel por desfiles hist�ricos na S�o Paulo Fashion Week s� com pretos e pretas na passarela.
AmarElo, seu terceiro disco de est�dio, tem letras contundentes. Exemplo disso � a faixa t�tulo, com direito a sample de Belchior (“Tenho sangrado demais/ Tenho chorado pra cachorro/ Ano passado eu morri/ Mas este ano eu n�o morro”). Emin�ncia parda, Ism�lia e Libre s�o petardos contra o racismo e a exclus�o social.
''Eu e meus irm�os aprendemos a literatura do Brasil por osmose%u201D
Emicida, cantor e compositor
Da 'pedrada' � 'good vibe'
Por�m, AmarElo transcende as tradicionais “pedradas” do rap. Sete das 11 faixas passam ao largo de estere�tipos associados ao hip-hop – rapper com cara de mau, “est�tica do �dio”, discursos panflet�rios contra o sistema. N�o � novidade o di�logo de Emicida com o samba, o pop e a MPB, mas agora ele abra�a com gosto a sonoridade “good vibes”. Suas letras apostam no amor, no afeto e na toler�ncia como ant�dotos a esta era do rancor. O �dio n�o � estrat�gia eficaz, acredita ele.
O recado � direto na delicada Cananeia, Iguape, Ilha Comprida. Antes de a can��o come�ar, Emicida � literalmente zoado pelas gargalhadas de sua ca�ula Teresa, de pouco mais de 1 ano, ao dizer que “no emprego de rapper voc� tem de ser mau”. No refr�o – daqueles de tocar no r�dio –, o ex-enfezado manda cartas de amor para “o mundo em decomposi��o”. A outra filha, Estela, de 8 anos, combina com o pai p�r flores amarelas nos cabelos das meninas. E dos meninos tamb�m.
Cercado por um belo time de orix�s – Fernanda Montenegro, Zeca Pagodinho, Marcos Valle e seu guru Wilson das Neves (1936-2017) –, Emicida valoriza tanto a pot�ncia do rap quanto a comunh�o com as delicadezas da vida. Com Zeca, canta a amizade (Quem tem um amigo tem tudo). Em As pequenas alegrias da vida adulta, fica feliz quando a tampa encaixa na Tupperware e h� promo��o de fraldas na drogaria. “Sintoniza o est�reo/ o seu velho jazz/ Prum pesadelo est�ril/ at� durou demais”, aconselha em Paisagem.
Na abertura do �lbum, Principia fala de Buda, salmos, milagres e Jesus. “A m�sica � s� uma semente/ Um sorriso � a �nica l�ngua que todos entendem”, canta ele. Pra l� de ecum�nico, juntou na mesma faixa o pastor evang�lico Henrique Vieira (com um serm�o de arrepiar), as senhoras cat�licas do coro da Igreja do Ros�rio dos Homens Pretos da Penha de Fran�a, em S�o Paulo, e os agog�s do candombl�. � assim, “anti-heresia”, a m�sica sacra de Emicida.
Em v�rias faixas do disco, o rapper solta a voz. Est� cantando, feliz da vida. Ali�s, ouve-se em AmarElo um “recital” globalizado: o portugu�s de Portugal do rapper Papillon; o ingl�s misturado com espanhol e iorub� do duo franco-cubano Ibeyi, formado pelas g�meas Lisa-Kaind� e Naomi D�az; a sonzeira esperta dos japoneses da Tokyo Ska Paradise Orchestra, que caem no samba em Quem tem um amigo tem tudo. Tudo isso, claro, temperado pelo leg�timo “portugu�s da quebrada” do anfitri�o.
Com produ��o do respeitado Nave, AmarElo abre o rap a outras sonoridades. Est�o l� o piano de Marcos Valle – o craque brasileiro sampleado por Jay Z –, os tambores da �frica, o canto “Brasil profundo” de Dona Onete, o samba, a bossa nova, o soul, o pop inteligente. Detalhe: Emicida comp�s a fofa Cananeia, Iguape, Ilha Comprida ao piano.
A for�a das mulheres
''Ism�lia � mais contempor�nea do que tudo. � a met�fora do que o salto da cidadania plena significa para a popula��o n�o branca do Brasil. Ela tenta tocar a lua, mas despenca na pedra%u201D
Emicida, cantor e compositor
A for�a das mulheres
Neste projeto, as mulheres n�o s�o meras coadjuvantes. Muito menos encarregadas dos vocais de luxo e de, digamos, “preencher a cota feminista” no mundo (ainda) machista do rap. Sem Larissa Luz, Fabiana Cozza, Drik Barbosa, a funkeira MC Tha, Dona Onete, as pastoras da Igreja do Ros�rio de SP, o coro formado por Indy Na�se, Nina Oliveira e Marissol Mwaba, e as g�meas do Ybehy, AmarElo n�o teria a metade de sua for�a. Isso, sem falar de Fernandona.
Vozes emblem�ticas do Brasil LGBQI que enfrentam corajosamente a viol�ncia homof�bica e o feminic�dio, Pabllo Vittar e Majur fazem valer cada verso do manifesto-rap AmarElo. “Permita que eu fale/ N�o as minhas cicatrizes/ Achar que essas mazelas me definem � o pior dos crimes/ � dar o trof�u pro nosso algoz/ E fazer noiz sumir”, canta a dupla. A drag queen e a cantora que se classifica como “n�o bin�ria” t�m legitimidade de sobra para fazer delas as rimas de Emicida.
Outra parceira do rapper � a fot�grafa Claudia Andujar, que assina a imagem dos curumins da capa do disco. “Ter tr�s crian�as ind�genas na capa, num per�odo em que est�o vendo a sua cultura e o seu modo de vida amea�ados, � coloc�-las para encarar o Brasil dizendo: 'S�rio mesmo? Vai acontecer tudo de novo?”, afirma ele no texto de apresenta��o do novo �lbum.

AmarElo
. De Emicida
. 11 faixas
. Laborat�rio Fantasma/Sony Music
. Dispon�vel nas plataformas de streaming