
H� como desvincular a literatura da pol�tica nos tempos atuais? Certamente que n�o, se tomarmos como exemplo pol�micas recentes que envolveram autores de obras relevantes. Por causa de opini�es manifestadas fora de suas obras, escritores tiveram pr�mios e homenagens contestadas."O pr�prio Alfred Nobel tinha uma hist�ria marcada pelo arrependimento. Ele foi o inventor do dinamite. Para tentar concertar isto, criou o pr�mio no intuito de defender a paz. Certamente a literatura de Handke tem seus m�ritos, mas havia outros bons candidatos. Ele solidarizou-se com um ditador. E agora parece que virou chique questionar a democracia, os movimentos antidemocr�ticos est�o sendo valorizados"
Georg Otte, Professor titular da Faculdade de Letras da UFMG
O caso mais c�lebre � o do Nobel de Literatura. Peter Handke recebeu na �ltima ter�a-feira (10) o pr�mio (830 mil euros) sob uma chuva de protestos e boicotes – o austr�aco de 77 anos apoiou o regime genocida do s�rvio Slobodan Milosevic na Guerra da Iugosl�via, nos anos 1990.
No Brasil, a norte-americana Elizabeth Bishop, primeira autora estrangeira a ser homenageada pela Festa Liter�ria de Paraty (Flip), tornou-se, 40 anos ap�s sua morte, o centro de um debate nas redes sociais. Bishop, que viveu duas d�cadas no Brasil, teria apoiado os militares no Golpe de 1964, afirmam seus detratores.
Em setembro passado, o Pr�mio Nelly Sachs, concedido pela cidade alem� de Dortmund, simplesmente reverteu a decis�o de premiar a brit�nico-paquistanesa Kamila Shamsie ao descobrir, ap�s a entrega do pr�mio, que ela apoia a iniciativa de Boicote, Desinvestimento e San��es (BDS) contra Israel.
Saias justas liter�rias n�o s�o novas – uma das mais c�lebres � o fato de o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) nunca haver recebido o Nobel, motivo de piada do pr�prio: “N�o me entregar o pr�mio Nobel virou j� uma antiga tradi��o escandinava. Cada ano me dizem que estou sendo cotado e sempre d�o o pr�mio a outro. � uma esp�cie de rito”, afirmou Borges, em 1979.
Uma raz�o pol�tica � apontada como o motivo maior desta recusa da Academia Sueca em reconhec�-lo. Borges visitou o Chile da ditadura Pinochet em 1976, recebeu dos m�os do general um t�tulo honoris causa da Universidade do Chile e ainda elogiou o regime: “Nesta �poca de anarquia, sei que aqui, entre a Cordilheira e o mar, h� uma p�tria forte”.
“Pr�mios s�o sempre pol�micos, pois v�o contrariar algum grupo, principalmente se o escritor tiver alguma milit�ncia”, afirma o professor da Escola de Letras da UFMG Wander Melo Miranda. “Como a Europa passou por muitas guerras, pelo nazismo, pelo Holocausto, a quest�o pol�tica � sempre muito premente no Nobel. Agora, pessoalmente, acho que em num pr�mio liter�rio o primeiro a ser julgado � a qualidade da obra. Mas outros valores acabam entrando no julgamento.”
Na opini�o de Miranda, por exemplo, Borges, a despeito da liga��o com Pinochet, � um dos maiores injusti�ados do Nobel. “� evidentemente um dos maiores escritores do s�culo 20. Eu daria o pr�mio para ele, pois acho que ele n�o tinha no��o da pol�tica da �poca, vivia em outra esfera. Por vezes, a conjuntura pol�tica e hist�rica pesa de maneira exagerada.”
Por outro lado, Miranda faz parte do coro dos descontentes da escolha da Flip em homenagear Bishop. Mas por uma quest�o liter�ria: “Jo�o Cabral de Melo Neto � um poeta com uma qualidade superior a dela. Coloc�-lo de fora no ano de seu centen�rio (o pernambucano completaria 100 anos em 9 de janeiro de 2020) �, no m�nimo, discut�vel”.
"Jo�o Cabral de Melo Neto � um poeta com uma qualidade superior a dela (Elizabeth Bishop). Coloc�-lo de fora no ano de seu centen�rio (o pernambucano completaria 100 anos em 9 de janeiro de 2020) �, no m�nimo, discut�vel"
Wander Melo Miranda, Professor em�rito da Faculdade de Letras da UFMG
ARREPENDIMENTO
Tamb�m da Faculdade de Letras, o professor Georg Otte acha contest�vel, eticamente, o pr�mio dado a Peter Handke. “O pr�prio Alfred Nobel, fundador do pr�mio, tinha uma hist�ria marcada pelo arrependimento. Ele foi o inventor do dinamite. Para tentar concertar isto, criou o pr�mio no intuito de defender a paz. Certamente a literatura de Handke tem seus m�ritos, mas havia outros bons candidatos. Ele solidarizou-se com um ditador. E agora parece que virou chique questionar a democracia, os movimentos antidemocr�ticos est�o sendo valorizados.”
Para Otte, Handke via o apoio � S�rvia como um assunto encerrado. “Havia mais de 10 anos que ele n�o falava sobre isto. Claro que, na hora em que o tema voltou � tona, ele poderia mostrar arrependimento. Mas a mim me pareceu muito orgulhoso.” Para o acad�mico, a pol�mica escolha do Nobel de Literatura de 2019 vem se somar a acontecimentos recentes que fizeram a Academia Sueca perder prest�gio – h� dois anos, um esc�ndalo sexual com um marido de uma integrante da Academia fez com que a escolha do Nobel de 2018 e a entrega do pr�mio fossem canceladas. A vit�ria da polonesa Olga Tokarczuk foi tardiamente anunciada (junto com a de Handke) e ofuscada pela pol�mica em torno do austr�aco.
"Eu gostaria de ter acesso a um debate um pouco mais informado, menos �vido, leviano e vaidoso. Em pa�ses como o Brasil, onde a cr�tica liter�ria como atividade p�blica � prec�ria, o problema � pior. Pessoas mais ou menos intelectualizadas t�m nas redes sociais um megafone e a sensa��o de ter uma participa��o relevante"
S�rgio Alcides, professor associado da Faculdade de Letras da UFMG
A despeito de erros e acertos nas escolhas, S�rgio Alcides, tamb�m professor da Faculdade de Letras, v� outro vi�s nas pol�micas: a m� qualidade do debate. “Eu gostaria de ter acesso a um debate um pouco mais informado, menos �vido, leviano e vaidoso. Em pa�ses como o Brasil, onde a cr�tica liter�ria como atividade p�blica � prec�ria, o problema � pior. Pessoas mais ou menos intelectualizadas t�m nas redes sociais um megafone e a sensa��o de ter uma participa��o relevante.”
Para Alcides, uma postagem em uma rede social “� uma ilus�o de participa��o efetiva, em algo relevante, em que as pessoas amenizam seu profundo sentimento de impot�ncia diante de um mundo cada vez mais fren�tico, fora de controle. Estamos presos a bolhas opressivas e antidemocr�ticas, pois a pr�pria natureza da comunica��o nas redes sociais nos impele a ver s� o semelhante. Raramente nos confrontamos com o outro, com o dissenso. Ou seja, estamos sempre no deserto pregando para nossos iguais”. Nesse contexto, o professor e poeta observa: “� muito c�modo voc� come�ar a tacar pedra na Elizabeth Bishop, pois n�o vai haver consequ�ncia”.
LETRAS EM TRANSE
Entenda as recentes pol�micas no universo da literatura
PETER HANDKE/PR�MIO NOBEL

De origem eslovena por parte materna, Peter Handke se posicionou a favor da S�rvia na Guerra da Iugosl�via, nos anos 1990. Publicou, em 1996, o ensaio Justi�a � S�rvia, no qual apontava os s�rvios como "as v�timas reais da guerra civil". Dez anos mais tarde, ele compareceu (e discursou) no funeral do ex-ditador s�rvio Slobodan Milosevic.
Desde que o nome de Handke foi anunciado pela Academia Sueca, em outubro, n�o faltaram manifesta��es contr�rias. A cerim�nia de entrega do Nobel, na ter�a-feira (10), em Estocolmo, sofreu boicotes tanto de acad�micos quanto de diplomatas. Ap�s a premia��o, manifesta��o no centro de Estocolmo reuniu pessoas com a bandeira da B�snia e pulseiras brancas, como as que os n�o-s�rvios foram obrigados a portar no in�cio da Guerra dos B�lc�s, em 1992.
Recluso, Handke, que vive h� d�cadas na Fran�a, disse em novembro ao seman�rio alem�o Die Zeit: "Nenhuma das palavras que escrevi sobre a Iugosl�via � de den�ncia, nem uma. � literatura."
ELIZABETH BISHOP/FLIP

Primeira estrangeira homenageada pelo mais chamativo evento liter�rio do pa�s, Elizabeth Bishop (1911-1979) virou alvo de pol�mica por causa de cartas datadas dos anos 1960. Na correspond�ncia trocada com o escritor Robert Lowell, a norte-americana escreveu que o Golpe de 1964 foi “uma revolu��o r�pida e bonita” e que “os militares no Brasil jamais na sua hist�ria tentaram tomar o poder ou mant�-lo”.
Houve uma onda de protestos nas redes sociais com a sugest�o de boicote � Flip, caso a decis�o n�o seja revista. O coro dos descontentes justificou a pol�mica chamando a autora de apoiadora dos militares. Bishop foi companheira da arquiteta Lota Mac�do Soares, criadora do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, e muito pr�xima de Carlos Lacerda, um dos articuladores do Golpe de 1964.
No in�cio deste m�s a organiza��o da Flip publicou nota afirmando que a "campanha lan�ada contra a poeta nas redes sociais" chamou "a nossa aten��o e escuta". "Estamos ouvindo as manifesta��es de todos e pensando em seu significado com a serenidade que essa quest�o merece." A 18ª edi��o da Flip ser� realizada entre 29 de julho e 2 de agosto de 2020.
KAMILA SHAMSIE/PR�MIO NELLY SACHS

Em setembro, o Pr�mio Nelly Sachs, concedido pela cidade alem� de Dortmund, anunciou o nome da autora brit�nico-paquistana Kamila Shamsie como a vencedora de 2019. A premia��o de 15 mil euros que leva o nome da autora judia alem�, Nobel de Literatura, � concedida a um escritor que promova “toler�ncia e reconcilia��o”. Shamsie � uma ficcionista em cujos romances os personagens s�o afetados por acontecimentos pol�ticos.
Por�m, ap�s ser anunciado, o pr�mio foi retirado, porque Shamsie apoia o Boicote, Desinvestimento e San��es (BDS), campanha global criada contra Israel por causa de suas pol�ticas em rela��o � Palestina. O j�ri admitiu que n�o sabia da participa��o da autora no BDS. “O boicote cultural n�o transcende fronteiras, mas afeta toda a sociedade israelense, independentemente de sua real heterogeneidade pol�tica e cultural”, declarou o j�ri.
Shamsie afirmou que era uma grande tristeza “que um j�ri se curvasse para pressionar e retirar um pr�mio de um escritor que exerce sua liberdade de consci�ncia e liberdade de express�o”.