
Tudo por conta de um cartaz de divulga��o, publicado no ano passado, que, no entendimento das autoridades, trazia uma imagem possivelmente criminosa contra o presidente Jair Bolsonaro. O festival nega as acusa��es e alega que houve censura por parte do governo.
Embora esses acontecimentos sejam recent�ssimos, o enfrentamento entre o punk e o poder � t�o antigo quanto o pr�prio movimento, que h� mais de 40 anos se coloca como uma das mais representativas formas de contracultura no mundo e ganha novos elementos no Brasil atual.
A decis�o do minist�rio de abrir inqu�rito para investigar o suposto crime contra a honra do presidente e apologia ao homic�dio se tornou p�blica na �ltima semana, tendo sido confirmada em nota oficial da pasta, que afirma: “A den�ncia contra os cartazes do festival foi feita pelo Instituto Conservador de S�o Paulo. Como se tratava de ofensa ao presidente da Rep�blica, o Ministro da Justi�a foi chamado a se manifestar nos autos pelo Procurador-Geral da Rep�blica”.
O ministro Sergio Moro usou sua conta no Twitter para dizer que a iniciativa do inqu�rito n�o era dele, “mas poderia ter sido”. “Publicar cartazes ou an�ncios com o presidente da Rep�blica ou qualquer cidad�o empalado ou esfaqueado n�o pode ser considerado liberdade de express�o. � apologia a crime, al�m de ofensivo”, escreveu.
Moro se referia ao cartaz de 2019 que anunciava a edi��o “3.2” do Facada Fest, em Bel�m, realizada em agosto, depois de seguidos cancelamentos.
BOZO


Em nota publicada no Facebook, o coletivo que organiza o festival classificou o inqu�rito como “persegui��o de Sergio Moro ao rock paraense”. “Com tantos problemas ocorrendo neste momento no pa�s – motim de policiais militares, degrada��o ambiental na Amaz�nia e os ind�cios cada vez mais fortes de liga��es entre pol�ticos e milicianos – causa-nos espanto o uso do aparato judicial e policial de nosso pa�s na repress�o de um festival de m�sica, criminalizando a atividade art�stica e a liberdade de express�o, garantidas pela Constitui��o de 1988, a Constitui��o Cidad�”, diz o texto.
Paulo Victor Magno entende a investiga��o como um “ataque direto contra a liberdade de express�o”, segundo afirma ao Estado de Minas. “Os cartazes no punk sempre foram de contesta��o, independentemente do tipo de governo. Essa a��o � um ataque ao livre pensamento. A imagem � uma s�tira ao governo, contra a situa��o prec�ria que vivemos na educa��o e outros setores. N�o h� ataque a honra, nem apologia � viol�ncia. Apologia � viol�ncia � um candidato � presid�ncia pegar um trip� e falar que vai fuzilar a oposi��o”, argumenta o ilustrador, destacando que n�o h� tra�o que identifique Bolsonaro na imagem.
O artista explica que a ideia inicial na arte do cartaz era um protesto contra o descaso das autoridades municipais de Bel�m em rela��o � cidade, mas que o palha�o, “representando o governo federal como um todo”, foi inclu�do “porque, na �poca, aconteciam desmontes na educa��o e cortes de verba”, sendo o l�pis a “representa��o da vit�ria da educa��o sobre a ignor�ncia”.
Ele prossegue sua argumenta��o: “� uma persegui��o, que nem � mais velada. Quando usavam adesivos de Dilma Rousseff nos tanques de gasolina ou bonecos do Lula enforcado em manifesta��es n�o acontecia nada, ent�o � preocupante o governo se empenhar em ir atr�s disso agora, com tantos problemas maiores na �rea de seguran�a para resolver”.
ABERTURA
Vocalista da banda Delinquentes, uma das mais antigas do punk rock no Par� e escalada para o Facada Fest, Jayme Katarro observa com preocupa��o a situa��o. Segundo ele, quando o grupo se formou, em 1985, “apesar de n�o haver internet, a gente podia falar e fazer os cartazes que quer�amos, era um momento de abertura”.
Katarro diz que as capas de disco no punk rock, hardcore e no heavy metal, nacionais ou estrangeiras, sempre foram bastante agressivas. “N�o existia censura, isso permeou minha vida dentro da m�sica. Pegamos todos os governos da redemocratiza��o, desde o Sarney, passando por Collor, FHC, os do PT, e sempre fizemos nossas cr�ticas, nunca passamos por isso que aconteceu agora. Fica o receio de abrir um precedente, mas sabemos que nenhum crime foi cometido e d� at� mais for�a para seguir na resist�ncia”, diz o m�sico.
Outro caso de atrito entre poder p�blico e a m�sica punk ocorreu no carnaval de Recife. A banda local Devotos, uma das mais ic�nicas do g�nero no pa�s, alega que teve um show amea�ado pela Pol�cia Militar. Segundo nota publicada pelo grupo, quando eles tocaram uma vers�o de Banditismo por necessidade, originalmente gravada por Chico Science e Na��o Zumbi, o vocalista foi avisado por um membro do staff da banda que “a pol�cia n�o havia gostado do conte�do das letras e amea�ou, caso o show continuasse com 'esses temas que citam a pol�cia', acabar com show e levar Cannibal (vocalista) preso”.
A nota do Devotos ainda diz: “Se isso n�o for censura, n�o sabemos o que �. O show continuou, eles n�o subiram no palco nem tocaram na banda, mas a amea�a foi feita”. A apresenta��o fazia parte da programa��o oficial da folia de rua pernambucana. Tamb�m em nota, a PM do estado disse desconhecer o ocorrido.
Em seu posicionamento, a banda Devotos, fundada em 1988, afirmou ter “uma linguagem coloquial, urbana, de den�ncia, de alerta e de posicionamento, usando a m�sica como arma” e que “infelizmente, estamos vivendo um regime de repress�o velada, que para a maioria � normal, mas para quem trabalha com cultura, e cultura voltada para o resgate social, como � o nosso caso, sabe que estamos sendo minados, perseguidos e amea�ados de n�o exercer nossas a��es. Querem calar nossas vozes”.
METALPUNK
Os acontecimentos geraram alerta tamb�m em BH. Envolvido com a produ��o de shows e eventos voltados para a m�sica underground na capital mineira h� 15 anos, o produtor Gabriel Herege, que h� oito organiza o festival Metalpunk Overkill, teme que epis�dios assim se repitam por aqui.
“Preocupa��o em rela��o � censura sempre tivemos. Muitos eventos terminaram por interven��o da pol�cia, mas hoje estamos caminhando para uma ditadura, com um estado nitidamente cercando toda forma de express�o que v� contra o que eles imponham”, afirma.
Segundo Herege, “o prop�sito dos nossos eventos sempre � fomentar a cultura underground, n�o s� o punk, mas tudo que venha a contrapor e dar uma resposta a esse sistema e esse modus vivendi no qual estamos atolados. N�o � meramente musical, apoiamos causas como a liberta��o animal, a diversidade sexual e muita gente que n�o tem voz encontra nesses espa�os a chance de trocar ideias”.
A pr�xima edi��o do Metalpunk Overkill est� previsa para o pr�ximo dia 21 e ter� a banda finlandesa Terveet K�det como principal atra��o.
Uma das maiores refer�ncias no Brasil quando o assunto � punk � o m�sico Clemente Nascimento, das bandas Restos de Nada, Inocentes e Plebe Rude, coautor do livro Meninos em f�ria: O come�o do fim, ao lado de Marcelo Rubens Paiva, que trata da eclos�o do punk no pa�s, na virada dos anos 1970 para os 1980.
V�tima da censura que vigia 40 anos atr�s, quando ele lan�ava alguns dos primeiros t�tulos do punk rock brasileiro com o Inocentes e com o Restos de Nada, Nascimento n�o se espanta com o que se passa agora. “Se pensarmos bem, se h� um governo que se declara f� da ditadura militar, � natural que ele use recursos de uma ditadura militar, como a censura. Logo logo estar� torturando tamb�m”, afirma.
Dedicado � atividade musical no underground e no punk rock desde a adolesc�ncia, Clemente acredita que “essa cena atual ter� que come�ar a tomar cuidados que se tomava nos anos 1970 e 1980, n�o s� no punk rock, de driblar a censura com recursos po�ticos, para falar do que quer. Na pr�tica ela existe hoje”, diz o guitarrista e vocalista, lembrando que o primeiro disco do Inocentes, chamado Mis�ria e fome, teve 13 m�sicas censuradas e acabou lan�ado como um EP, com apenas tr�s, em 1983. Com extensa obra, cuja maioria das composi��es tem teor questionador e cr�tico sobre a sociedade e os sistemas pol�ticos vigentes, Clemente diz que n�o seria necess�rio compor novas m�sicas de protesto sobre o atual momento do pa�s. “Tudo isso � velho. Escrevemos sobre isso que se fala agora a vida inteira. � s� ouvir o que escrevemos h� 40 anos. Nunca entendemos nossa democracia como plena, essas for�as sempre estiveram a�, nunca esteve tudo ok. Ent�o � s� pegar e ouvir de novo”, afirma.