
Um historiador brasileiro desvendou a origem hist�rica dos cour�s, um dos povos mais singulares e enigm�ticos da escravid�o. Tamb�m conhecidos como couranos, eles foram traficados da �frica para as Am�ricas — e, no Brasil, habitaram diversas regi�es, principalmente cidades de Minas Gerais.
At� ent�o a hist�ria desse grupo de africanos sequestrados e trazidos � for�a para o Brasil era incerta, segundo o historiador Moacir Rodrigo de Castro Maia. "Esse era um mist�rio dos estudos sobre a escravid�o. Embora eles fossem muito presentes em Minas, n�o se sabia muito sobre a origem dos cour�s", diz ele.
Milhares de couranos foram traficados para as Am�ricas — dos Estados Unidos e Caribe � Am�rica do Sul —, e parte significativa desembarcou na col�nia portuguesa para trabalhar nas primeiras d�cadas da produ��o de ouro e diamantes em cidades como Diamantina, Ouro Preto e Mariana — h� tamb�m registros deles no sul da Bahia, em Goi�s, Pernambuco e Rio de Janeiro.
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Quando chegavam, eles eram batizados por outros cour�s que j� estavam por aqui (ao entrar no Brasil, os escravizados eram obrigados a trocar de nome). Viravam Francisca ou Jo�o Mina, por exemplo — e Mina era uma refer�ncia � chamada Costa da Mina, regi�o africana que abrigava um forte portugu�s e onde hoje ficam os pa�ses de Gana, Togo, Nig�ria e Benim.
A pesquisa de Maia apontou precisamente o litoral da Rep�blica do Benim, pa�s da regi�o ocidental do continente africano, como o local de origem dos cour�s."Essa descoberta pode abrir uma s�rie de possibilidades de estudos sobre a escravid�o, o tr�fico de africanos e esse povo t�o conhecido na �poca. A hist�ria dos cour�s � tr�gica e surpreendente", diz Maia, que atua no N�cleo de Pesquisa em Hist�ria Econ�mica e Demogr�fica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Na verdade, a palavra "cour�" foi a chave para o pesquisador desvendar o mist�rio. O povo vivia no chamado Reino de Uid�—- tamb�m conhecido pelos portugueses como Ajud� —, que por alguns s�culos ocupou a regi�o litor�nea do Benim at� ser conquistado por outro reino africano, o Daom�.
"A palavra cour� era como traficantes e os pr�prios africanos traduziram para o portugu�s a identidade da popula��o do Reino de Ajud�", explica Maia.
O historiador encontrou refer�ncias ao reino em documentos hist�ricos de outros Estados europeus que exploraram o com�rcio de escravos nos s�culos 17 e 18.
O Reino de Ajud� era chamado de Whydah pelos ingleses, Jud� ou Juid� por franceses, e Fida pelos holandeses.

"Um documento portugu�s contava que os couranos invadiram um forte durante um conflito com membros do Reino de Daom�. Cruzando a documenta��o, descobri que aqueles cour�s eram o povo chamado de judaiques pelos franceses e whydahs pelos brit�nicos. Eram do mesmo local", explica Maia.
No Brasil, tanto os huedas quanto os hulas (os dois povos habitantes de Ajud�), passaram a se declarar como "na��o cour�".
Essa uni�o dos dois povos revela que, no Brasil, a popula��o de parte do Golfo do Benim teceu uma identidade pr�pria e lutou para reconstruir suas vidas sob uma mesma identidade.
O estudo de Moacir Maia sobre o grupo, em princ�pio uma tese de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), deu origem ao livro De Reino traficante a povo traficado: a di�spora dos cour�s do golfo do Benim para Minas Gerais (Arquivo Nacional), vencedor do pr�mio Arquivo Nacional de Pesquisa de 2019 e lan�ado recentemente.
A pesquisa mostra que os cour�s viveram e sofreram com escraviza��o, conflitos e viol�ncias na �frica e no Brasil, mas tamb�m lutaram para manter sua identidade, hist�ria e religiosidade mesmo em terras estrangeiras.
A hist�ria da "na��o cour�" trafega da fartura de um reino rico e poderoso para a decad�ncia de um povo conquistado por invasores africanos e vendido como escravo aos europeus.

Hist�ria de viol�ncias
No s�culo 17, o pequeno Reino de Ajud�, casa dos couranos, tinha um importante porto (na atual cidade de Ouidah), utilizado por algumas na��es europeias para exportar especiarias e principalmente traficar pessoas.
"Ajud� conseguiu negociar uma tr�gua entres Estados europeus que estavam em conflito na �poca, como Inglaterra e Fran�a. Naquele dom�nio, eles atuavam lado a lado", diz Moacir.
Esse com�rcio duplo na �frica, de produtos agr�colas e de pessoas, rendeu a Ajud� um per�odo de prosperidade econ�mica.
"Importante dizer que, na �poca, os reinos n�o capturavam o pr�prio povo para a escravid�o, mas sim gente de outros lugares, de regi�es mais distantes que eram conquistadas... Estrangeiros eram capturados e vendidos aos europeus", afirma.
Mas o aumento desse com�rcio escravista acirrou a viol�ncia e as tens�es na regi�o, diz Maia.
E uma derrota mudou para sempre o destino do Reino de Ajud� e de sua popula��o.
No in�cio do s�culo 18, a regi�o foi invadida e conquistada pelo Reino de Daom�, que estava em expans�o por conta de sua estreita e lucrativa parceria com o com�rcio escravista comandado pelos europeus.
"Daom� se transforma em uma pot�ncia escravista servindo como intermedi�rio dos europeus. Os cour�s ent�o se transformam de uma popula��o que comercializava escravos em um povo escravizado nas Am�ricas. Esse tr�fico aconteceu ainda por mais um s�culo, e s� diminuiu em meados do s�culo 19", diz Maia.

A mestra das feiticeiras
Na �frica, os cour�s viviam principalmente da agricultura, da pesca e da produ��o de sal marinho. Mas, no Brasil, ficaram conhecidos como "bons mineradores" por conta de sua ampla atua��o na produ��o de ouro e diamante em Minas Gerais.
Segundo Maia, eles apreenderam o of�cio ao entrar em contato com outros africanos que j� trabalhavam na �rea.
O modelo escravista incentivava o apagamento da hist�ria e da identidade dos africanos que entravam aos milhares no Brasil — essa � uma das raz�es da mudan�a obrigat�ria dos nomes em um batismo crist�o, por exemplo.
Temia-se que a preserva��o do senso de identidade e la�os comunit�rios poderiam ensejar revoltas contra os senhores de escravos.
Por�m, segundo o historiador, a "na��o cour�" conseguiu de certa forma preservar sua hist�ria e cultura na col�nia portuguesa, pelo menos na gera��o dos pr�prios traficados.
"V�rios cour�s que chegavam ao Brasil eram batizados e acolhidos por outro courano. Dessa forma eles conseguiam manter um senso de identidade, de comunidade, pois eram da mesma regi�o e partilhavam a conviv�ncia e uma hist�ria de viol�ncias", conta Maia.

A religiosidade foi outro fator que mantinha viva a identidade e a cultura dos filhos do Reino de Ajud� no Brasil.
O livro de Moacir Maia conta a hist�ria da sacerdotisa africana �ngela Maria Gomes, uma mulher negra liberta, dona de casa pr�pria e padeira em Itabira do Campo — hoje munic�pio de Itabirito, a 57,5 km de Belo Horizonte.
Nascida no litoral do Benim, a courana �ngela Maria se reunia secretamente com mulheres em noites de "lua branca" na cidade mineira. Famosa na regi�o, chegou a ser denunciada � Inquisi��o como uma "mestra das feiticeiras".
Ela era adepta do vod�nsi, uma pr�tica religiosa comum no Golfo do Benim. "Para muitos seguidores das divindades voduns, o indiv�duo encontraria equil�brio e prote��o ao respeitar e incorporar outros protetores sobrenaturais", escreve Maia.
Por outro lado, a padeira �ngela Maria tamb�m era uma destacada devota de Nossa Senhora do Ros�rio, fazendo parte da irmandade da santa em Minas Gerais — essa informa��o, no entanto, n�o constava na den�ncia � Inquisi��o.
"Muitos sacerdotes e adeptos dessa religi�o chegaram por aqui. Embora o homem fosse o sacerdote supremo, quem incorpora a divindade no vodum eram as mulheres", diz Maia.
Segundo ele, a religi�o, a cultura e o modo de vida dos cour�s t�m "grande import�ncia" na hist�ria do Brasil, ainda que mais estudos sejam necess�rios para entender melhor essa influ�ncia.
"Quando se fala que o indiv�duo era escravizado, normalmente a gente n�o sabe qual � a hist�ria dele, de onde ele vinha, como era sua sociedade e o que aconteceu para que ca�sse na teia do tr�fico humano. A hist�ria dos cour�s � global, est� em v�rios pa�ses da Am�rica e da Europa. Todos somos herdeiros dessa hist�ria e, por isso, precisamos entend�-la", completa o historiador.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62443624
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