Coronav�rus cria paradoxo entre oferta e demanda cultural
Isolamento social para deter o avan�o da contamina��o faz disparar o consumo de produtos culturais, enquanto artistas s�o for�ados a parar e se veem sem meios de conseguir seu sustento
postado em 21/03/2020 04:00 / atualizado em 21/03/2020 19:01
Guilherme Augusto e Pedro Galv�o
(foto: mariana lima/divulga��o)
''Lancei um disco (Letrux aos prantos) e todo um planejamento (de turn�) ruiu. Admiro quem consegue instantaneamente sorrir e seguir. Quando eu estiver pronta ou desejar, farei alguma live. Agora n�o � o meu interesse, mas absolutamente nada contra quem consegue. S� n�o � o meu caso''
. Letrux, cantora
Um dos principais nomes da cena independente do Brasil, a cantora Let�cia Novaes est� atualmente reclusa em uma fazenda no Rio de Janeiro. Ela lan�ou o �lbum Letrux aos prantos no �ltimo dia 13 e, desde ent�o, viu seus planos irem por �gua abaixo.
A agenda de shows para divulgar o trabalho teria in�cio na pr�xima semana e foi adiada por tempo indeterminado. "N�o fa�o ideia de como ser� daqui para a frente, e isso me assusta e me entristece, mas a verdade � essa: n�o fa�o ideia. Quero crer em possibilidades e que iremos sair dessa ou vencer, mas ser� complicado. At� chegar o cosmos, haver� muito caos, infelizmente", avalia.
Aos 38 anos, esse � o segundo trabalho de Letrux como artista solo e o primeiro feito com patroc�nio via edital. A turn�, entretanto, seria realizada de forma independente, por meio de uma uni�o de esfor�os, segundo ela. Sensibilizada pelo momento atual, ela diz n�o estar preparada para se engajar, como outros artistas, em eventos on-line.
"Lancei um disco e todo um planejamento ruiu. Admiro quem consegue instantaneamente sorrir e seguir. Quando eu estiver pronta ou desejar, farei alguma live. Agora n�o � o meu interesse, mas absolutamente nada contra quem consegue. S� n�o � o meu caso. Tamb�m n�o me sinto � vontade em dizer 'comprem minha camisa, meu livro', precisamos respeitar as ordens da Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS), ent�o n�o consigo pensar num apoio monet�rio para o momento", afirma.
A situa��o preocupante para todos os trabalhadores aut�nomos tem especificidades para profissionais da m�sica, evidenciadas pelo contexto da pandemia. Diante dos cancelamentos de espet�culos com p�blico _ principal fonte de renda de boa parte deles _ artistas cobram medidas emergenciais das autoridades e lamentam um momento de desvaloriza��o da classe que antecede a escalada do coronav�rus no Brasil.
O instrumentista Paulim Sartori revela que teve pelo menos oito datas canceladas e n�o tem nenhuma apresenta��o programada at� o fim de maio. Integrante da Orquestra Ouro Preto e participante de outros projetos musicais, seus concertos, shows e at� apresenta��es em festas particulares, como casamentos, n�o acontecer�o nos pr�ximos meses. O m�sico define a situa��o como calamitosa.
“N�o s�o apenas as apresenta��es ao vivo, o ambiente dos est�dios de grava��o tamb�m � contr�rio �s recomenda��es da OMS. S�o lugares fechados, onde h� contato. V�rias inst�ncias do trabalho musical est�o afetadas e, como recebemos por trabalho feito, a perspectiva � de n�o receber quase nada nos pr�ximos meses”, diz Sartori, lembrando ainda que os valores provenientes de arrecada��o por direitos autorais e quantias repassadas por plataformas de streaming s�o “irris�rios” para muitos.
(foto: mauro figa/divulga��o)
Para conta��o de hist�rias, encontrei uma alternativa poss�vel: a partir da segunda-feira (23), come�arei uma s�rie para a quarentena''
. Jh�, cantora e contadora de hist�rias
PALIATIVOS
As iniciativas paliativas escolhidas por muitos, como shows on-line, tamb�m n�o representam uma solu��o ampla, segundo o instrumentista. “Muita gente tem feito apresenta��es e at� festivais on-line, mas � mais por uma quest�o solid�ria, n�o � nada que tenha substrato (financeiro). Estamos buscando alternativas e, nesse caso, h� o risco de os servidores das plataformas n�o aguentarem tantas transmiss�es de shows, ou seja, at� essa alternativa pode entrar em colapso”, alerta.
Para ele, o melhor caminho seriam editais e pol�ticas p�blicas emergenciais para o setor, citando como exemplo o edital rec�m-anunciado pela Prefeitura de S�o Paulo, que destinar� um total de R$ 10 milh�es para viabilizar 8 mil espet�culos musicais, teatrais e liter�rios nas janelas da cidade durante a quarentena.
Paralelamente ao contexto da pandemia do coronav�rus, Paulim Sartori aproveita para questionar: “� uma conversa que sempre existiu. A vida que m�sicos levam � invi�vel. A pessoa n�o pode adoecer nunca, nem precisa ser uma pandemia. Ficar de cama, pelo motivo que for, significa uma diminui��o de renda muito significativa. N�o ter um resguardo � insustent�vel”.
Um dos compromissos que o m�sico teria era com o projeto Kriol, dedicado � m�sica cabo-verdiana, apresentado em parceria com a cantora Jh�. Ela esclarece que, nesse caso, o cancelamento foi iniciativa deles mesmos. “Eu n�o conseguiria convidar ningu�m para ir ao concerto sabendo dos riscos de propaga��o do v�rus”, diz. Jh�, que � tamb�m contadora de hist�rias e se apresenta com m�ltiplos grupos musicais, buscar� na internet uma forma de seguir trabalhando.
“Para conta��o de hist�rias, encontrei uma alternativa poss�vel: a partir da segunda-feira (23), come�arei uma s�rie para a quarentena. N�o para ganhar dinheiro, sim para tocar o barco, continuar ativa e movimentar as redes sociais”, diz Jh�. Ela afirma que o of�cio de artista � uma “luta di�ria” no Brasil, independentemente da �poca.
“Se j� costuma ser complicado conseguir espa�os para trabalhar, nesse cen�rio me sinto de m�os, p�s e bocas atadas. Parar nossas atividades, sem previs�o, � o mesmo que ficar � beira do abismo e da incerteza. N�o bastasse a tristeza de viver num pa�s em que a cultura � desvalorizada, ainda que na quarentena o que a maioria da popula��o consome � arte: filmes, s�ries, etc, ainda precisamos nos preocupar com nossa subsist�ncia”, lamenta a cantora, citando pa�ses como a Alemanha, cujo governo federal j� prometeu um pacote de assist�ncia � classe art�stica por conta da pandemia.
MOBILIZA��O
O cantor e compositor piauiense radicado em Minas Makely Ka diz que “preju�zos todos v�o ter, mas buscamos mitig�-los”, lembrando que, assim como os aut�nomos de outras �reas, muitos m�sicos n�o t�m 13º ou seguro desemprego, sendo totalmente dependentes do trabalho di�rio.
Diante da crise causada pela pandemia, ele diz que “esperar uma mudan�a estrutural neste momento � utopia”, mas que h� mobiliza��o, por parte do F�rum da M�sica, uni�o de profissionais do qual faz parte, de exigir medidas governamentais. Makely destaca que a situa��o dos artistas se torna particularmente grave por conta por um cen�rio de ataque � classe, anterior � chegada do v�rus no pa�s.
“H� esse pensamento da direita de achar que quem trabalha com arte � vagabundo, sendo que cultura � um direito constitucional, assim como sa�de, educa��o e seguran�a. � dever do Estado prover condi��es para realiza��o das atividades e para o acesso a elas. Tudo fica mais complicado quando h� essa hostiliza��o. Apesar disso, o que as pessoas far�o nesses dias isoladas em casa? V�o ler, ver s�ries, filmes, ouvir m�sica, shows no streaming. A� vemos a import�ncia da cultura e quem trabalha com ela precisa ser remunerado”, argumenta Makely.
Com agenda de shows cancelada, bem como outras atividades remuneradas, como grava��o de trilhas sonoras, ele tamb�m se valer� do streaming para manter contato com o p�blico, que poder� contribuir financeiramente com a apresenta��o. No entanto, Makely Ka destaca que isso est� longe de ser o suficiente. “A internet tamb�m precisa ser paga”, diz, e cobra medidas do poder p�blico.
SOBREVIV�NCIA
“� um momento de salvar os feridos. Garantir a sobreviv�ncia, o pagamento dos boletos. N�o esperamos nada do governo federal. � um governo que ataca sistematicamente os artistas. Ent�o o foco � em quest�es objetivas. Esperamos do governo de Minas um edital via fundo estadual de cultura ou via Cemig, para atender demanda espec�fica para os pr�ximos meses, nos quais os m�sicos estar�o sem agenda, visando a realiza��o de espet�culos on-line e shows virtuais. Acho que m�sicos e artistas, de modo geral, passam a exercer fun��o importante para as pessoas n�o enlouquecerem nesse tempo”, afirma Makely Ka.