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Estado de Minas HIST�RIA

Conhe�a Luiz Gama, advogado escravizado que libertou 500 negros no Brasil

Editora Hedra publica os primeiros dois volumes das obras completas do baiano, cujo legado sobreviveu gra�as ao 'correio nag�' dos afrodescendentes


18/08/2021 04:00 - atualizado 17/08/2021 22:29

O detalhe de uma not�cia publicada em 1869 chamou a aten��o do advogado e abolicionista Luiz Gama – em meio � informa��o da briga da fam�lia do falecido comendador portugu�s Manoel Joaquim Ferreira Netto por seus bens, uma linha do texto dizia que, no testamento, o homem declarava o desejo de alforriar os 217 escravizados de sua fazenda, medida que “facilitaria” sua entrada no c�u. Depois de pesquisar, Gama descobriu que as pessoas n�o foram libertadas.
Analfabeto até os 17 anos, Luiz Gama morreu em 1882, deixando importante obra jurídica e literária (foto: Reprodução)
Analfabeto at� os 17 anos, Luiz Gama morreu em 1882, deixando importante obra jur�dica e liter�ria (foto: Reprodu��o)
“Ele via na Quest�o Netto, como ficou conhecida, a chance de uma liberta��o coletiva sem precedentes em S�o Paulo, o cora��o da escravid�o no pa�s”, observa Bruno Rodrigues de Lima, que prepara, na Alemanha, tese sobre a obra jur�dica de Luiz Gama. Lima tamb�m � organizador de um monumental trabalho: os 10 volumes das obras completas de Gama, cerca de 5 mil p�ginas com mais de 750 textos, dos quais cerca de 600 in�ditos, que a Editora Hedra come�ou a lan�ar. Sa�ram agora os dois primeiros, “ Democracia (1866-1869)” e “ Liberdade (1880-1882)”.

Rara oportunidade para se conhecer um dos principais abolicionistas brasileiros, o poeta e advogado negro Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882). Filho de Luiza Mahin, negra africana que lutou pela liberdade dos escravizados na Bahia na d�cada de 1830, e de um branco herdeiro de fam�lia rica de ascend�ncia portuguesa – cujo nome at� hoje � desconhecido –, Gama foi vendido pelo pr�prio pai como escravizado. Passou a inf�ncia, a adolesc�ncia e o in�cio da juventude em cativeiro at� conseguir sua liberdade, aos 18 anos.

Analfabeto at� os 17, trabalhou na �rea policial e militar at� enveredar para as letras e o jornalismo, publicando livros de poesia e fundando jornais. Gama defendeu, de gra�a, in�meros escravizados brasileiros, conseguindo a liberta��o de mais de 500 por via judicial. Nesta entrevista, Bruno Rodrigues de Lima explica a import�ncia do abolicionista, cujo enterro, em 1882, atraiu 10% da popula��o paulistana. Segundo estimativas da �poca, a cidade contava ent�o com 40 mil habitantes.

(foto: Youtube/Reprodução)
(foto: Youtube/Reprodu��o)

"A impress�o que tenho � de que n�o bastou apagar, tiveram de soterrar os textos de Gama e salgar a terra"

Bruno Rodrigues de Lima, escritor


Luiz Gama teve proje��o hist�rica inferior � sua biografia. De que forma precisamente a publica��o de sua obra completa corrige essa distor��o?

Mais de 600 textos in�ditos de Luiz Gama estavam soterrados nos arquivos do Judici�rio e da imprensa brasileira. Ainda assim, a mem�ria de Gama sobreviveu, fundamentalmente devido � tradi��o popular das comunidades negras em contar sua vida heroica. Foi esse “correio nag�”, principalmente em Salvador e S�o Paulo, que livrou sua biografia do completo desconhecimento, sobretudo nos 50 anos depois de sua morte. Embora a tradi��o oral tenha mantido a chama acesa, sempre se procuraram registros de sua obra e, pouco a pouco, gera��o a gera��o, desde 1904, encontraram-se aproximadamente 140 textos. Nos �ltimos nove anos tenho ido pessoalmente a arquivos e cart�rios atr�s desses documentos, que considero de inestim�vel valor hist�rico e p�blico. Encontrei mais de 600 in�ditos, que, junto �queles 140, comp�em as “Obras completas”. � uma necessidade hist�rica resgatar sua obra. A impress�o que tenho � de que n�o bastou apagar, tiveram de soterrar os textos de Gama e salgar a terra.

Qual � a import�ncia dos textos publicados por Gama no jornal A Prov�ncia de S�o Paulo, hoje O Estado de S.Paulo?

Gama colaborou com o jornal desde sua funda��o, em 1875, at� quando ele morreu, em 1882. Em todos esses anos, �s vezes em todos os meses de um mesmo ano, o nome de Gama era presen�a certa nas p�ginas do jornal, ora como autor, ora como assunto, o que demonstra a sua inser��o nos debates da �poca. O jornal foi a plataforma de excel�ncia para sua literatura normativo-pragm�tica, que se caracterizou como um projeto liter�rio de fluxo cont�nuo de textos jur�dicos de interven��o voltados para a resolu��o de casos concretos nos tribunais. Nas p�ginas de A Prov�ncia leem-se dezenas dos mais importantes textos de Luiz Gama. Foi justamente no Prov�ncia que ele publicou o mais longo texto de sua carreira, talvez um dos mais longos da hist�ria do jornal, somando quase 60 p�ginas de discuss�o das entranhas de um processo criminal de alt�ssima complexidade, que foi o famoso crime da alf�ndega de Santos. Esse texto �, sem tirar nem p�r, um livro de direito, que, ironia da hist�ria, nunca antes foi acessado por ningu�m e tamb�m constar� nas “Obras completas”.

A chamada Quest�o Netto, al�m de sua magnitude, marcou o in�cio de carreira de Gama. Como voc� descobriu o documento?

Gama monitorava com lupa a Quest�o Netto e sabia do potencial explosivo da causa. Pelo menos dois anos antes de peticionar pela primeira vez no processo, Gama j� acompanhava a celeuma judici�ria que virou a briga entre herdeiros e s�cios do finado Netto. Ele via na Quest�o Netto a chance de uma liberta��o coletiva sem precedentes na S�o Paulo de 1870, o cora��o da escravid�o no pa�s. Defendo a hip�tese de que a sua demiss�o da pol�cia, em dezembro de 1869, esteja ligada a essa causa. O fato � que ele foi demitido e, em tr�s semanas, conseguiu uma licen�a oficial para advogar. Como ele nunca foi r�bula – mais uma inven��o grosseira do racismo acad�mico –, Gama soube explorar o conhecimento normativo e conseguiu um ato juridicamente perfeito que o igualou a qualquer outro advogado, para qualquer ato da vida judici�ria. Em quest�o de meses, l� estava ele em Santos peticionando nesse processo, que marcaria sua entrada na advocacia. Descobri esse processo atrav�s de uma carta de Gama a Rui Barbosa. Na missiva, Gama disse que precisava correr a Santos 'para assistir a uma audi�ncia na causa dos escravos do comendador Netto'. Foi a senha de que eu precisava para pesquisar tudo relacionado ao tal comendador e � potencial participa��o de Gama na causa. Fui aos arquivos de Santos e depois aos do Rio de Janeiro, onde finalmente encontrei o manuscrito de mil p�ginas que � a maior a��o de liberdade da hist�ria do Brasil e das Am�ricas.

Como poeta, Gama foi sat�rico, zombando do poder, das institui��es e at� do imperador Pedro II. Por que ele utilizava a poesia como meio de esc�rnio?

Gama usou a poesia de muitas formas. Transitou por estilos, m�tricas, motes e tradi��es. Arlindo Veiga provou, em 1944, o quanto a sua l�rica era bel�ssima, embora ofuscada pela s�tira, que alcan�aria o mais alto n�vel produzido no Brasil imperial. A op��o pelo esc�rnio foi tanto uma resposta �s hostilidades do racismo letrado da �poca como express�o de um certo gosto natural pela picardia e pela pol�mica. Da� que, sendo uma veia po�tica natural, talhada pelo estudo que n�o lhe faltava, n�o acredito que sua postura combativa tenha comprometido a qualidade de seus versos, mas, ao contr�rio, que t�o apenas seja uma boa pimenta baiana no prato paulista. Evidentemente que a pimenta da picardia desagradou a muitos paladares, a ponto de dizerem que toda aquela 'versalhada' era indigesta. E a fortuna cr�tica engoliu essa hist�ria insossa de que Gama foi poeta med�ocre, imagem tristemente difundida at� os dias de hoje. Mas, apenas para falar dos seus pares rom�nticos, o que s�o os versos de Gama no Cemit�rio de S�o Benedito sen�o o romantismo condoreiro no auge de sua forma po�tica – e isso 11 anos antes do “Navio negreiro”, de Castro Alves?

O fato de n�o se reencontrar com a m�e, deportada para a �frica, marcou Gama profundamente, n�o?

Rui Barbosa disse uma vez que Gama era feito 'de vidro para gemer e de bronze para resistir'. A met�fora sintetiza com rara felicidade sua trajet�ria, que deu incont�veis exemplos de resist�ncia �s prova��es da vida. A procura de Gama por sua m�e, Luiza Mahin, ao longo de d�cadas, desde a fuga do cativeiro, em 1848, at� os tempos em que era jornalista de renome, na d�cada de 1860, � uma das faces do sofrimento que ele viveu na carne. Gama relata sonhos, choros e dedica poemas para a m�e. Mais at�: deu o nome da m�e para a sua filha, que morreu prematura, noutro sofrimento desse homem negro feito de vidro e de bronze. A 'geniosa, insofrida e vingativa' africana Luiza Mahin, sua m�e, sempre foi o seu norte de luta por justi�a e liberdade. 


“OBRAS COMPLETAS”
• De Luiz Gama
• Organizador: Bruno R. de Lima
• Editora Hedra
• Volume “Democracia” (R$ 110)
• Volume “Liberdade” (R$ 99,90)
• Pre�os promocionais no site www.hedra.com.br

NO CINEMA
(foto: Globo Filmes/divulgação)
(foto: Globo Filmes/divulga��o)

C�sar Mello ( foto ) interpreta Luiz Gama no filme “Doutor Gama”, dirigido por Jefferson De, em cartaz nesta quarta-feira (18/08), �s 16h40, no Una Cine Belas Artes, em BH. O cineasta destaca a import�ncia do longa neste momento em que a luta antirracismo se fortalece no Brasil. De acordo com o diretor, a aboli��o da escravatura n�o se resume ao ato da princesa Isabel, mas � resultado da luta empreendida pelo movimento abolicionista que se espalhou no pa�s no s�culo 19.


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