
“A �nica coisa mais aterradora do que a cegueira � ser a �nica pessoa que consegue enxergar.” A frase � do escritor Jos� Saramago (1922-2010) e ganhou a voz da atriz Julianne Moore, int�rprete da �nica mulher que continua capaz de ver, depois que uma epidemia viral cega toda a popula��o, no Ensaio sobre a cegueira criado pelo escritor portugu�s e levado ao cinema pelo diretor brasileiro Fernando Meirelles em 2008.
A mulher que mant�m a capacidade de enxergar assiste, em meio ao caos crescente, a comportamentos marcados pelo ego�smo, autoritarismo e viol�ncia sexual. Vinte e cinco anos ap�s sua publica��o, o livro do Nobel portugu�s de literatura voltou � tona, por raz�es mais do que �bvias. “Saramago dizia que a humanidade era uma experi�ncia que n�o deu certo”, afirma Fernando Meirelles. Na entrevista a seguir, franca, sem meias palavras, como lhe � de praxe, o cineasta reflete sobre o meio ambiente, a pol�tica, o cinema, a fam�lia. O mundo dele, o seu, o nosso, n�o ser�o os mesmos p�s-COVID 19. “Seria uma pena desperdi�armos a oportunidade para repensar. Talvez a �ltima oportunidade.”
"S� agora soubemos que esta pandemia e as outras que vir�o estavam anunciadas h� um tempo. Aquele TED Talk de 2015 do Bill Gates parece uma consulta a um vidente, mas mesmo quem assistiu n�o enxergou o que ele dizia. Nossa mente parece trabalhar com filtros para enxergar s� o que precisa. Lembro que quando a minha mulher ficou gr�vida, eu via gr�vidas em todo lugar. Achava que estava acontecendo um boom de nascimentos no mundo. Filtros"
Impactados, profissional e pessoalmente, todos estamos diante dos acontecimentos. Em que medida a pandemia est� afetando sua produtora, a O2 Filmes? O que � poss�vel fazer agora?
A O2 Filmes estava rodando tr�s s�ries e preparando mais duas quando o mundo parou. As filmagens foram interrompidas de um dia para o outro, com previs�o de retomar entre junho e julho. Campanhas de publicidade tamb�m foram adiadas na boca do gol. A produtora estava funcionando a todo vapor e, em tr�s dias, deu uma freada de 90%. Se fecharmos o ano no zero a zero, vamos comemorar. Mas esta � a hora de engolir o choro e fazer o que tem que ser feito. O poeta e amigo Tadeu Jungle tinha um poeminha impresso em uma camiseta de que eu gostava muito. Na frente dizia: TUDO PODE. Era poderoso. Quando ele ia embora se lia nas costas: PERDER-SE. Nossa civiliza��o � muito menos s�lida do que queremos acreditar.
E no n�vel familiar? � hora de nos recolhermos com aqueles que nos s�o mais caros?
Goste ou n�o, a conviv�ncia agora � mandat�ria. Voc� vai ter que encarar! Sorte para quem tem uma fam�lia funcional e amorosa. Sou um destes. Sinto por quem estava naquelas de empurrar as insatisfa��es com a barriga usando a dist�ncia. Agora � hora de entrar em contato. Seria um bom momento para assistir Entre quatro paredes (1944), pe�a do Sartre em que a conclus�o a que chegam os personagens � que o inferno s�o os outros. Mas o trope��o joga a gente para a frente – ou para fora de casa, depois que passar o surto.
Al�m da pandemia do novo coronav�rus, h� tamb�m uma epidemia de cegueira em curso? Que rela��es voc� tra�a entre o que est� ocorrendo e a hist�ria de Saramago que filmou?
S� agora soubemos que esta pandemia e as outras que vir�o estavam anunciadas h� um tempo. Aquele TED Talk de 2015 do Bill Gates parece uma consulta a um vidente, mas mesmo quem assistiu n�o enxergou o que ele dizia. Nossa mente parece trabalhar com filtros para enxergar s� o que precisa. Lembro que quando a minha mulher ficou gr�vida, eu via gr�vidas em todo lugar. Achava que estava acontecendo um boom de nascimentos no mundo. Filtros. Saramago dizia que a humanidade era uma experi�ncia que n�o deu certo, seu Ensaio sobre a cegueira fala sobre isso e sobre a nossa incapacidade de ver o que est� na nossa frente.
Que rea��es positivas voc� viu por parte dos governos mundo afora?
Apesar de um ou outro vacilo, no geral as rea��es dos governos ao redor do mundo pareceram r�pidas e respons�veis, mesmo tendo que adotar medidas duras que comprometem o futuro pr�ximo. No Brasil, se tiv�ssemos um governo no modelo que o Partido Novo prop�e, o do Estado m�nimo, estar�amos ferrados. � fato que muitos empres�rios est�o fazendo doa��es, mas por sorte temos um Estado mais forte que pode fechar o com�rcio, criar estruturas hospitalares da noite para o dia, defender os cidad�os, importar ventiladores, testes e m�scaras. A iniciativa privada diria que n�o � problema dela ou tenderia a mandar o pessoal de volta ao trabalho. Eu me recuso a entrar num pingue pongue ideol�gico, mas esta experi�ncia � uma oportunidade para quem acredita na l�gica do mercado como solu��o para todos os problemas rever alguns conceitos.
Como voc� comentou no Twitter, os esquilos j� voltaram para o jardim da sua casa. Que pontos positivos voc� enxerga como decorr�ncia do isolamento social?
Depois de 10 anos, um casal de pandas do Ocean Park, em Hong Kong, acasalou esta semana porque fecharam o parque, dando a eles alguma privacidade. Golfinhos voltaram ao canal de Veneza. Em cidades no Norte da �ndia, agora os Himalaias podem ser vistos depois de 30 anos. H� sinais assim por todos os lados, os esquilos no meu jardim s�o s� mais um deles. Ser� que colocaremos o p� no freio quando tudo passar? Ou vamos correr ansiosos para retomar o ritmo fren�tico? N�o posso falar pelo mundo, mas eu aprendi algumas coisas e espero voltar com a voltagem mais baixa, viver menos como se estivesse numa prova de 100 metros rasos e mais como se caminhasse num parque. Seria uma pena desperdi�armos a oportunidade para repensar. Talvez a �ltima oportunidade. Outro dia me mandaram uma pergunta: 'E se o v�rus for o anticorpo?'. Pareceu mais que uma boa piada.
Que mundo voc� imagina para depois da COVID-19?
Podemos enveredar para um mundo mais autorit�rio, onde a monitora��o e o controle do cidad�o passem a ser vistos como normal. Onde a falta de empregos que se seguir� leve � consolida��o da perda de conquistas de quem trabalha todo dia. Ou podemos pegar o outro vi�s, onde a solidariedade que est� pipocando em todo canto flores�a como um v�rus e os cidad�os assumam o seu destino. O que eu gostaria? Que as coisas nunca mais voltassem ao normal, porque aquele normal de normal n�o tinha nada.
Voc� filmou O jardineiro fiel (2005) no Qu�nia. Qual a sua opini�o sobre os pa�ses africanos neste momento?
Ouvi um bi�logo indiano/americano que afirma com muita seguran�a que a vitamina D � uma preven��o decisiva. O que as pessoas atribu�ram ao frio do inverno onde tudo come�ou, ele diz que, na verdade, foi a falta de sol que fez o v�rus explodir nos pa�ses do Norte e em playboys nos pa�ses do Sul (ele n�o usou o termo playboy). Por outro lado, mostrava que em pa�ses como o Mali, onde a popula��o vive sob o sol do Saara, o v�rus n�o foi para a frente. De fato, na �frica o bicho ainda n�o pegou. Espero que o bi�logo esteja certo. De qualquer maneira, pelo sim ou pelo n�o, j� peguei um bronze.
Como uma pessoa que viaja muito mundo afora, como voc� se sente em rela��o ao desafio da sustentabilidade do planeta?
� curioso como este v�rus, que amea�a 2% da humanidade por um per�odo curto, conseguiu nos mobilizar e mudar nossos h�bitos t�o rapidamente, enquanto a crise do clima, que amea�a toda a humanidade definitivamente, tipo extin��o, n�o consegue gerar um d�cimo das medidas necess�rias para podermos enfrentar o baque que vem. Isso deve ter rela��o com nosso foco no presente. Uma gripe com risco de hospital na semana que vem, para a maioria, � imensamente mais preocupante do que um problema cujas previs�es catastr�ficas s�o s� para 2100. Caramba, acorda! Em 2100, minha neta vai ser 17 anos mais jovem do que a minha m�e hoje. Est� na porta.
O que um cidad�o respons�vel deve fazer neste momento e o que um cidad�o respons�vel e famoso pode fazer agora?
O cidad�o respons�vel e que possa se dar ao luxo de n�o se expor deve seguir as recomenda��es, seja famoso ou n�o. Tem famosos muito mobilizados na ajuda a comunidades, gente que n�o est� s� no Twitter, mas com a m�o na massa. E tem famoso, como os Malafaias que, como o demo, parecem ter vindo para confundir, iludir, piorar o que j� n�o est� f�cil.
Seu pr�ximo filme � sobre a crise do clima. Voc� j� est� repensando esse projeto?
Como estou em fase de desenvolvimento de roteiro, esta crise n�o afeta tanto o projeto, mas eu e o Br�ulio Mantovani, roteirista, estamos pensando se devemos trazer a hist�ria at� o momento p�s-v�rus. A ideia me parece interessante, mas ainda n�o sei como fazer isso sem perder o foco. Tem que esperar decantar para ver como fica.
O streaming est� aparecendo como t�bua de salva��o para muita gente durante a pandemia. Acredita que toda a cadeia audiovisual ser� repensada? O cinema n�o ser� o mesmo p�s-COVID?
Essa COVID-19 parece vir em ondas, por isso h� uma grande parte da ind�stria que acredita que os cinemas n�o ser�o reabertos at� o final do ano. Se isso acontecer, haver� um bom tempo para consolida��o de novos h�bitos, o que pode afetar fortemente as salas. Fora isso, em geral os festivais de Telluride, Veneza e Toronto s�o as plataformas para lan�amento dos filmes fortes do ano que concorrer�o a Oscars. Este ano, � poss�vel que todos festivais sejam cancelados. Tamb�m sem lan�amentos em salas, n�o haver� quase nada para ser premiado. Algo muito transformador deve acontecer no setor sem seus mercados e eventos principais.
"N�o posso falar pelo mundo, mas eu aprendi algumas coisas e espero voltar com a voltagem mais baixa, viver menos como se estivesse numa prova de 100 metros rasos e mais como se caminhasse num parque. Seria uma pena desperdi�armos a oportunidade para repensar. Talvez a �ltima oportunidade. Outro dia me mandaram uma pergunta: 'E se o v�rus for o anticorpo?'. Pareceu mais que uma boa piada"