
Mesmo sem ser realizado em 2020, por causa da pandemia, o festival de Cannes poder� ser novamente o trampolim para um filme brasileiro ter resson�ncia mundial, depois do �xito de Bacurau e A vida invis�vel, ano passado. Embora tenha cancelado a edi��o ��o presencial, prevista para maio, e descartado a possibilidade de exibir filmes por streaming, a t�o aguardada lista de selecionados foi divulgada na �ltima semana, incluindo Casa de Antiguidades, primeiro longa do paulista Jo�o Paulo Miranda, estrelado por Ant�nio Pitanga. Al�m do importante selo de Cannes, o filme promete levar uma mensagem visceral sobre o racismo, sob protagonismo not�vel do ator que acaba de completar 81 anos.
Cannes n�o � novidade para Pitanga, que fez parte do elenco de O pagador de promessas, �nico filme nacional at� hoje a levar a Palma de Ouro, em 1962. Por�m, ele v� um sentido especial nesse novo trabalho. “Esse filme foi um presente que Jo�o Paulo Miranda me deu. Um ator com mais de 60 anos de carreira, negro, nordestino, vivendo um personagem com quem tenho enorme familiaridade, digo que esse filme � o Barravento de novo, mas em vez de Firmino Bispo dos Santos, sou Cristovam, um homem v�tima do preconceito, da explora��o, da invisibilidade, ao sair do Nordeste para tentar a vida numa cidade de Santa Catarina colonizada por austr�acos. � uma trajet�ria de d�cadas, mas poderia ser Cristovam debaixo do joelho do policial branco nos Estados Unidos”, argumenta Ant�nio Pitanga, em refer�ncia a George Floyd, cujo brutal assassinato pela pol�cia de Minneapolis motivou onda mundial de protestos contra o racismo.
Jo�o Paulo Miranda, de 38 anos, que recebeu o Pr�mio Especial do J�ri em Cannes, em 2016, pelo curta A mo�a que dan�ou com o diabo, come�ou a desenvolver o roteiro de Casa de Antiguidades ainda em 2015. As grava��es terminaram em 2019. O cineasta explica a trama como o enfrentamento entre o protagonista, que migra para o Sul em busca de trabalho, e um grupo ultraconservador que mora no local. Embora n�o o considere um filme de �poca, o diretor fala de uma ambi�ncia nos anos 1970.
“� um grupo autorit�rio, militarizado, que lembra a ditadura. E h� esse homem negro, que no roteiro nem � descrito assim, mas como um brasileiro cheio de marcas do tempo e um olhar profundo, que vai para esse Sul, n�o necessariamente de tal idade, mas o Pitanga caiu como uma luva. Sobretudo se pensarmos no momento atual, em que o governo e os conservadores podem pensar que os mais fr�geis, os mais idosos, mais vulner�veis � COVID-19, s�o descart�veis. Trago um homem de 81 anos para enfrentar tudo isso, com muita for�a”, destaca Miranda, que caracteriza sua produ��o como “uma bomba”. “Arrisquei, me expus para construir uma coisa radical e profunda”, afirma.
DEDO NA FERIDA
Apesar da satisfa��o pela presen�a na sele��o oficial de Cannes, que confere importantes credenciais a qualquer filme, mesmo que n�o haja premia��o este ano, Jo�o Paulo diz que “n�o � momento de celebra��o, glamour ou festa”.
Segundo ele, “o cinema vem como arte para afrontar, impactar, incomodar e colocar o dedo na ferida. Remexer os buracos para nos reencontrarmos neste mundo perdido e ca�tico”.
Com os pa�ses europeus ensaiando a reabertura de espa�os culturais, a expectativa � de que Casa de Antiguidades cumpra uma trajet�ria em festivais no continente no segundo semestre. Por�m, a estreia comercial deve ficar para 2021.

“Tamb�m direi: N�o consigo respirar”
A figura central de Casa de Antiguidades enaltece o car�ter contestador da trama. “O Barravento tinha um link com Malcom X, Martin Luther King, os Panteras Negras. O Cristovam, no filme do Jo�o Paulo, � muito real, contundente. � um soco na boca do est�mago. Parece que foi feito junto com a morte de George Floyd. E � isso que provoca o Cristovam, essa vontade que estamos vendo de sair todos juntos nas ruas, de m�os dadas, porque n�o aguentamos mais esse chicote que voa nas nossas costas desde que fomos sequestrados da �frica”, afirma Ant�nio Pitanga.
De acordo com o ator, o filme n�o � s� atual, mas verdadeiro. “Um registro coerentes com a realidade que n�o estamos vivendo s� em 2020. S�o d�cadas, s�culos. Como Cristovam, eu tamb�m direi: N�o consigo respirar”, comenta.
Independentemente da impossibilidade de um trof�u em Cannes – cujo j�ri seria presidido por Spike Lee, dono de uma das filmografias mais importantes do mundo sobre racismo –, Pitanga acredita no alcance poderoso que Casa de Antiguidades deve ter.
“O mundo est� conectado. O mundo n�o pode olhar com olho alienado. O mundo somos n�s, o coletivo, a sociedade, essa coisa louca, desvairada, perdida, mas que no cinema, nas artes em geral, na cultura, tem esse instrumento socializador que � o arauto de qualquer sociedade. Nas artes pl�sticas, na poesia, na m�sica, no teatro, � colocar o dedo na ferida e ser coerente com dias de hoje. N�o se trata de uma obra distante de um genial cineasta. � uma obra que vai nas entranhas da humanidade e traz para o primeiro plano essa viol�ncia. Cannes � essa vitrine, como Berlim, Veneza, uma oportunidade para que esses filmes mostrem a obra, para depois serem vistas por todo mundo. Uma import�ncia enorme, mesmo sem tapete vermelho. O filme j� est� consagrado”, opina Pitanga.
Em defesa do poder da cultura de promover transforma��es e questionar as injusti�as sociais, o ator critica o governo Bolsonaro por sua rela��o conflituosa com o setor cultural. “A for�a da cultura vai al�m-mar. Nenhum governo teve a cultura como projeto, mas esse � pior, pois � fascista e ditador. A cultura incomoda, porque faz pessoas pensarem. Hoje n�o h� nem sequer secret�rio de Cultura, a mem�ria cultural deste pa�s est� prestes a acabar e implodir. Esperam que a pandemia aconte�a, que a imprensa esteja preocupada com as vidas perdidas, para a boiada passar, como eles mesmo falam, para entregar o pa�s”, protesta, lembrando ainda das dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores do setor, sobretudo os que n�o est�o no estrelato.
Nesse sentido, ele destaca o projeto de lei de autoria da esposa, a deputada fede-ral Benedita da Silva (PT-RJ), que prop�e renda emergencial para a classe art�stica, utilizando o Fundo Nacional da Cultura. Batizada de Lei Aldir Blanc, j� est� aprovada pelo Senado e aguarda san��o do presidente Jair Bolsonaro.
ESPERAN�A
Com 81 anos completados em 6 de junho, o ator acredita na resist�ncia. “Com todos os tipos de vento, a cultura se mant�m ereta, porque � o que um pa�s tem de mais rico”, diz, citando exemplos da arte que se sobrep�s ao fascismo de Mussolini, na It�lia, e ao Nazismo de Hitler, na Alemanha.
“A cultura sempre foi perseguida, mas � o pilar socializador mais importante. Minha esperan�a, n�o sou nenhum vidente, mas como ser humano, � de ver caminhar. Temos de ter esperan�a, h� uma juventude muito bonita vindo, uma fonte na qual me banho, que me faz acreditar nisso. Volto a falar de George Floyd: s�o os jovens nas ruas, negros e brancos, de m�os dadas, � o que Martin Luther King sonhava. Ningu�m nasce racista. O mundo caminha para entendermos melhor o outro. Estamos em evolu��o e sairemos melhor”, acredita Ant�nio Pitanga.