
"A Companhia das Letras est� fazendo um novo Quarto de despejo, nada igual ao primeiro. Quero que sejam feitas c�pias fi�is, que n�o mudem nada"
Vera Eunice, filha de Carolina de Jesus
Mulher negra, favelada, namoradeira, de personalidade forte, que n�o aceitava levar desaforo para casa. Assim era a escritora mineira Carolina de Jesus, que morreu em 1977, aos 62 anos. Carolina ficou conhecida mundialmente depois de um de seus di�rios ser publicado em Quarto de despejo (1960), marco da literatura brasileira. Editado pelo jornalista Aud�lio Dantas (1929-2018), o livro revelou o imenso talento de sua autora. Mas escondeu do p�blico a verdadeira Carolina.
“Aud�lio Dantas queria construir uma personagem, ent�o meteu a tesoura no manuscrito dela e publicou os trechos que acreditava que iriam compor essa figura. Foi selecionando o lado dos coitadinhos. Mas ela n�o era essa figura chorona”, afirma Eduardo de Assis Duarte, professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sobre a edi��o final dos di�rios publicada em Quarto de despejo.
FEITOR

"Aud�lio Dantas queria construir uma personagem, ent�o meteu a tesoura no manuscrito dela e publicou os trechos que acreditava que iriam compor essa figura"
Eduardo de Assis Duarte, professor de literatura da UFMG
Vera Eunice, filha de Carolina, conta que as tentativas de Aud�lio em transformar sua m�e em personagem foram motivo de brigas entre os dois. “Ela n�o era de abaixar a cabe�a. Esse foi um dos problemas com o Aud�lio, porque ele queria mandar nela”, diz. Vera afirma que Carolina era vaidosa, gostava de acess�rios e de usar maquiagem. “E ele (Aud�lio) n�o queria deixar. Ela queria se arrumar e ele n�o deixava. Ela falava para ele: 'Voc� n�o � o meu feitor'.”
Com o prop�sito de mostrar o outro lado de Carolina de Jesus, divulgar a obra da escritora e fazer vir a p�blico manuscritos in�ditos de sua m�e, Vera Eunice fechou parceria com a editora Companhia das Letras. O amplo projeto prop�e a reedi��o tanto de Quarto de despejo quanto de outros livros, alguns desconhecidos do p�blico. Ao todo, ser�o lan�ados 27 volumes, entre romances, poesias, pe�as de teatro e contos. A escritora mineira Concei��o Evaristo � respons�vel pela equipe encarregada da edi��o e reedi��o desse material.
“A Companhia das Letras est� fazendo um novo Quarto de despejo, nada igual ao primeiro. Quero que sejam feitas c�pias fi�is, que n�o mudem nada, que as pessoas n�o coloquem as opini�es delas no que a minha m�e escreveu”, diz Vera.
De acordo com ela, o principal objetivo do projeto � mostrar que Carolina de Jesus n�o foi autora de apenas um livro, o best-seller Quarto de despejo. “Ela escrevia v�rias literaturas. Estou muito feliz, porque alguns cr�ticos falam que minha m�e era escritora de uma obra s�. Vamos provar que ela era uma literata.”
SURPRESA
Vera Eunice garante que o p�blico vai se surpreender com os lan�amentos. “S�o quatro di�rios, al�m de romances, pe�as, poemas, prov�rbios e outras coisas. Os di�rios s�o lindos, os romances maravilhosos e as pe�as um espet�culo.”
A pandemia e o isolamento social v�m prejudicando o trabalhos da equipe. “N�o temos nada certo ainda, mas a Companhia pensa em publicar o primeiro livro no in�cio do ano que vem”, informa. Trata-se da reedi��o de Casa de alvenaria, lan�ado em 1961.
Assim como Quarto de despejo, ele foi editado por Aud�lio Dantas e teve muitos trechos cortados. “Quando minha m�e estava na favela, em um barraco, o sonho dela era morar numa casa de alvenaria. Quando conseguimos nos mudar para uma, n�o foi conto de fadas”, conta Vera.
A filha lembra que Carolina era muito discriminada pelos novos vizinhos. “Fomos morar em um bairro elitizado e n�o fomos bem aceitos l�. Minha m�e era favelada, escritora, namoradeira. Gostava de colocar o som bem alto e trazia mendigos para morar em nossa casa porque tinha d� deles.”
IN�DITO
Entre os lan�amentos est� Doutor Silvio, romance in�dito editado pela mineira Aline Arruda, doutora em literatura brasileira e professora da UFMG. “Queria traduzir um livro de Carolina e provar que ela tinha um projeto liter�rio. Me incomodava o fato de ela ser associada apenas a Quarto de despejo, porque ela tinha, sim, consci�ncia de escritora”, diz Aline.
De acordo com a professora, Doutor S�lvio � um romance melodram�tico inspirado em antigos folhetins, paix�o de Carolina. Ele conta a hist�ria de um estudante de medicina branco, filho de fazendeiro, que passa a morar na capital para estudar. O rapaz engravida uma garota negra, filha da dona da pens�o onde mora, e � obrigado a se casar com ela.
“Nesse bom enredo dram�tico, a mo�a � apaixonada pelo estudante, mas ele n�o � por ela. Os dois se mudam para perto da fam�lia dele e h� a disputa de classes, as quest�es de g�nero e pol�ticas. Um discurso inteiro de um dos personagens � sobre a reforma agr�ria. Essa � uma quest�o forte nos textos da Carolina”, adianta Aline Arruda.
Na opini�o da professora, s�o injustos os coment�rios de especialistas minimizando a obra de Carolina. “At� pouco tempo, havia cr�ticos liter�rios falando que ela n�o � escritora porque escreve um relato pessoal, o que seria algo menor. Mas n�o � assim. Carolina escreveu v�rios textos, era uma escritora preocupada e muito zelosa”, garante.
SURRA
Filha de analfabetos, Carolina de Jesus nasceu em 14 de mar�o de 1914, em Sacramento, no Tri�ngulo Mineiro. Mudou-se para S�o Paulo em 1947, depois de ser presa por carregar um livro.
“Ela apanhou muito em Sacramento, porque lia muito e eles falavam que era bruxa. Na cadeia, bateram nela, quebraram seu bra�o e a deixaram sem comer”, relembra Vera Eunice. Hoje, alguns manuscritos da autora est�o guardados no museu dedicado a ela, em sua cidade natal.
O professor Eduardo de Assis, pesquisador da literatura criada pelos negros brasileiros, diz que Carolina � um “fen�meno liter�rio”, que inspirou in�meros autores. Segundo ele, Quarto de despejo � um documento hist�rico que retrata a exclus�o social causada pela moderniza��o do pa�s.
“Esse di�rio � um documento da mis�ria, da fome, das necessidades pelas quais a maioria da popula��o passa. � como se S�o Paulo fosse uma casa, onde o pal�cio � a sala, as pra�as s�o os jardins e a favela � o quarto de despejo, onde fica aquilo que as visitas n�o querem ver”, explica.
De acordo com Assis, Quarto despejo inovou ao retratar o processo de moderniza��o excludente, aqui analisado item por item por suas pr�prias v�timas. “Quem est� falando n�o � um homem branco, dentro de um quarto de hotel, que estava ali apenas para estudar. � algu�m que passa fome, que � a v�tima”, ressalta Eduardo.
M�SICA
O professor informa que a UFMG guarda sete manuscritos digitalizados de Carolina, al�m de letras de m�sica escritas por ela. “Era uma pessoa que vivia na mis�ria e tinha uma vida horr�vel, mas tamb�m tinha momentos de tranquilidade para fazer humor. Inclusive, Carolina comp�s marchinha de carnaval sobre uma mulher que bota o marido para fora da casa”, revela. Esses escritos est�o guardados na biblioteca da UFMG e podem ser acessados mediante o agendamento da visita.
Vera Eunice, que faz palestras sobre a trajet�ria de sua m�e, conta que sempre se surpreende com a paix�o revelada por adolescentes pela obra de Carolina.
“Certa vez, um menino chegou abra�adinho com um livro, nunca mais me esqueci dele. O garoto disse: ‘Eu me acho infeliz, tenho uma vida confort�vel, mas sou infeliz. Mas depois que li o livro da sua m�e, percebi que n�o sou. Agora, vou lutar e vou ser uma Carolina de Jesus’”, conta Vera Eunice, orgulhosa.
* Estagi�ria sob supervis�o da editora-assistente �ngela Faria