
“Desculpe decepcionar voc�. Talvez eu n�o tenha voca��o para a fidelidade. Sou mesmo a anti-hero�na da hist�ria, aquela que n�o d� li��o de moral no final. E que at� � capaz de alguns deslizes para ser feliz.” O di�logo, transcrito de uma cena da novela Mulheres apaixonadas, em que Helena (Christiane Torloni) confessa a T�o (Tony Ramos) que viveu um romance com ele e Cesar (Jos� Mayer) ao mesmo tempo, sintetiza as Helenas, personagens emblem�ticas de Manoel Carlos, o autor. S�o as mocinhas n�o perfeitas e sem manique�smo, expondo suas vidas em longas cenas que v�o fundo nos dramas humanos, passadas na ruas nobres do Leblon, no Rio de Janeiro.
Esse universo de Maneco, como o autor � chamado, est� de volta � TV em dose dupla. Primeiro, no Canal Viva, com Mulheres apaixonadas (2003), exibida desde segunda-feira (24). Depois, na TV Globo, com a reprise de La�os de fam�lia (2000) no Vale a pena ver de novo, que reestreia em 7 de setembro, no canal aberto, e no dia 14, no aplicativo Globoplay.
Mitologia Valmir Moratelli, autor do livro O que as telenovelas exibem enquanto o mundo se transforma e professor de roteiro, explica como s�o as Helenas de Manoel Carlos. Elas nasceram na d�cada de 1980, na novela Baila comigo, quando coube a Lilian Lemmertz dar vida � primeira dessas protagonistas, inspiradas no romance Helena, de Machado de Assis, e em Helena de Troia, da mitologia grega.
“� uma constru��o que se aproxima da realidade. Elas atravessam um pouco para a vilania, mas voltam. Trazem a dicotomia entre o bem e o mal. Outros autores n�o fazem isso”, diz. “Maneco carrega at� o fim da hist�ria a quest�o de que todo mundo pode errar na vida e nem por isso vai ser um eterno mau-car�ter.”
Entre as atrizes que interpretaram as Helenas est�o Mait� Proen�a (Felicidade), Regina Duarte (Hist�ria de amor, Por amor, P�ginas da vida), Ta�s Ara�jo (Viver a vida) e J�lia Lemmertz (Em fam�lia).
“� libertador ser Helena. � muito chato voc� fazer uma mocinha que s� existe no papel. Quem se identifica com uma pessoa que n�o carrega todas as d�vidas da alma feminina? Se ela for restrita a dogmas de moral, n�o liberta as pessoas. Os grandes personagens s�o aqueles que provocam al�vio. S�o hero�nas imperfeitas”, afirma Christiane Torloni, a Helena de Mulheres apaixonadas.
Torloni foi filha da primeira Helena, em Baila comigo. “Lilian (Lemmertz) era uma grande atriz, entrava em cena para o tudo ou nada. Ent�o, voc� entender que chegou a um tamanho (como int�rprete) em que pode assumir esse papel, que j� tem essa carga para a dramaturgia dele, � maravilhoso.”
bilhetes A atriz revela a maneira generosa com a qual Maneco cuida das int�rpretes de suas Helenas. “Ele manda livros, com cartas e bilhetes escritos com caneta pena, com uma caligrafia linda. � um processo de voc� ser a musa, de fato. Ele escreve rubricas no texto, ajuda o diretor a dirigir, o ator a atuar. Ele vai mostrando o que a alma da personagem est� dizendo”, conta Christiane.
A Helena de La�os de fam�lia coube a Vera Fischer. Na trama, ela disputava o amor de Edu (o ent�o estreante Reynaldo Gianecchini) com a filha Camila (Carolina Dieckmann). A cena em que Camila raspa os cabelos (de verdade) em fun��o da leucemia entrou para a hist�ria das telenovelas brasileiras e aumentou o n�mero de doa��es de medula naquele ano.
“Fico muito feliz que essa cena, importante para minha vida e carreira, tenha sido, de fato, t�o relevante para tanta gente”, diz Carolina. A atriz revela a cumplicidade que teve com Maneco, que a acalmou no momento em que a personagem era odiada pelo p�blico por roubar o parceiro da m�e – a reden��o veio com a doen�a.
“Falei: ‘Maneco, o que pode acontecer agora? Ser� que n�o estou sabendo fazer, ser� que a implic�ncia das pessoas � comigo e n�o com a personagem?’. Ele me respondeu muito tranquilamente que tinha certeza de que, na hora em que ela ficasse doente, as pessoas se colocariam no lugar dela e a situa��o mudaria. Ele � um g�nio, tem muita experi�ncia”, conta Carolina. Ela tamb�m est� em Mulheres apaixonadas como Edwiges, personagem que coloca em discuss�o a quest�o da virgindade.
''� libertador ser Helena. � muito chato voc� fazer uma mocinha que s� existe no papel''
Christiane Torloni, atriz

VIRGINDADE
Temas pol�micos, como a virgindade, aparecem nas tramas de Manoel Carlos em bem-sucedido merchandising social, com direito a debate que envolve a��es educativas. Em La�os de fam�lia e Mulheres apaixonadas, ele aborda alcoolismo, prostitui��o, homossexualidade, viol�ncia contra a mulher. Em uma cena, h� tiroteio em uma rua do Leblon, que culmina com a morte de Fernanda (Vanessa Gerbelli), v�tima de bala perdida, cena baseada em um acontecimento real.Ricardo Waddington, diretor de n�cleo das duas novelas, conta como isso se dava. “Cenas como o corte de cabelo de Camila em La�os de fam�lia, a bala perdida que atinge e mata Fernanda em Mulheres apaixonadas e tantas outras exigiam que a dire��o fosse realista para retratar, de forma sens�vel e real, o drama das personagens. A boa e grande repercuss�o dessas hist�rias significa que conseguimos sensibilizar as pessoas com o resultado da parceria bem-sucedida entre autor, elenco e dire��o”, diz o diretor de Produ��o dos Est�dios Globo.
“Apesar de as tramas acontecerem nesse microcosmo muito espec�fico, elas tratam de temas universais, como amor, ci�me, desejo – um arcabou�o de hist�rias que est� na literatura universal h� muito tempo, que causam empatia. Maneco � um autor cl�ssico, do melodrama”, analisa o pesquisador e roteirista Lucas Martins N�ia, apresentador do podcast Isso S� Acontece em Novela.
O �ltimo trabalho de Maneco foi Em fam�lia (2014), sem a mesma repercuss�o das novelas anteriores e com m�dia de audi�ncia de 29 pontos, segundo dados do Ibope – n�mero considerado aqu�m do esperado para o hor�rio. A trama foi encurtada e o autor enfrentou problemas de sa�de enquanto escrevia.
Na �poca, redes sociais como o Twitter j� eram term�metro para a opini�o e aceita��o dos telespectadores, mas nada comparado a hoje, em que assuntos pol�micos ganham debates acalorados, cancelamentos e polariza��es. Como problem�ticas s�o combust�veis de La�os de fam�lia e Mulheres apaixonadas, � prov�vel que elas voltem � tona.

MACHISMO
Para Walmir Moratelli, as tramas de Manoel Carlos trazem alguns personagens datados, como homens extremamente machistas, ale�m de n�o representarem o Brasil real. “Ele escreve mostrando uma elite. A gera��o atual, muito alinhada com as redes sociais, n�o compreende certas narrativas como poss�veis de ser vistas sem discuss�o. Ser� interessante notar como o p�blico vai se comportar diante de quest�es que, naquela �poca, n�o eram debatidas como agora.”“Atualmente, essas narrativas mais antigas est�o com um olhar mais cr�tico, o que � importante. Por�m, h� uma parcela da sociedade que est� mais conversadora, e temas como alcoolismo e homossexualidade foram tratados de forma progressista nessas tramas”, diz Lucas Martins N�ia.
Aos 87 anos, Manoel Carlos est� recluso e, por ora, aposentado dos folhetins di�rios. N�o d� mais entrevistas. Se estivesse na ativa, provavelmente incluiria na trama algum di�logo que sobre a pandemia. Quem sabe alguma prele��o sobre o tema por parte do doutor Moretti, personagem t�o presente quanto as Helenas, ou uma crise no Nick Bar, onde o T�o de Mulheres apaixonadas tocava sax, por restri��es no funcionamento.
“Maneco � um g�nio da cr�nica do cotidiano. Acredito que as duas novelas tenham ainda muito f�lego para render bons papos, pessoalmente ou nas redes”, conclui o diretor Ricardo Waddington. (Estad�o Conte�do)

M�sica tamb�m � personagem
Ao longo da carreira, Manoel Carlos esteve envolvido na cria��o de programas musicais para a televis�o. Nos anos 1960, integrou, ao lado de Ant�nio Augusto Amaral de Carvalho, Nilton Travesso e Raul Duarte, a chamada Equipe A da TV Record, respons�vel por produzir atra��es com Elis Regina, Elizeth Cardoso e Wilson Simonal.
Isso se reflete nas trilhas sonoras das novelas que assinou. Sempre h�, entre can��es contempor�neas, antigas grava��es que ajudam a criar o ritmo das cenas. A partir de Por amor (1997), ficou clara a prefer�ncia por bossa nova como tema de abertura. Virou mais uma marca do autor.
“Maneco ama m�sica e sempre esteve presente nas escolhas das trilhas de suas novelas. Eu participava tamb�m, al�m da equipe de dire��o musical da Globo”, confirma Ricardo Waddington.
Em La�os de fam�lia, a abertura trazia uma grava��o de 1964 de Corcovado (Quiet nights of quiet stars), com Astrud Gilberto, Jo�o Gilberto e Stan Getz. J� Samba de ver�o, composta por Marcos e Paulo Sergio Valle, por�m em grava��o de Caetano Veloso, embalava os encontros rom�nticos de Helena e Edu.
“Gosto demais da grava��o, ela � fim de tarde, aquele sol vermelho, as pessoas bonitas. Apesar do sucesso que a can��o sempre fez aqui e no exterior, o fato de ter entrado na novela a trouxe para outras gera��es”, diz Marcos Valle.
Em Mulheres apaixonadas, a can��o da vez foi Pela luz dos olhos teus, de Vinicius de Moraes, em grava��o de Tom Jobim e Mi�cha lan�ada em 1977. “A bossa d� a leveza �s tramas dele, traz o balan�o do mar, o c�u azul, as caminhadas na orla. Pontua os di�logos, j� que as novelas do Maneco s�o mais de di�logo do que de a��o”, diz Moratelli. (Estad�o Conte�do)
MULHERES APAIXONADAS
Exibida na faixa das 23h, no Canal Viva
LA�OS DE FAM�LIA
A partir de 7 de setembro, na faixa das 16h, na TV Globo. Em 14 de setembro, no aplicativo Globoplay