
� ineg�vel que a pandemia do novo coronav�rus trouxe danos imensos ao setor cultural. Escutamos ao longo de toda a quarentena relatos de artistas sofrendo com a aus�ncia dos palcos e a dist�ncia dos f�s. A dificuldade de acesso � renda foi tr�gica na carreira de diversos cineastas, atores, dramaturgos, m�sicos e cantores.
Por outro lado, atividades art�sticas que n�o dependem tanto do p�blico conseguiram tirar proveito da situa��o. Artistas pl�sticos e poetas descrevem como o processo de isolamento social foi proveitoso para a produ��o art�stica e o reabastecimento cultural.
Por outro lado, atividades art�sticas que n�o dependem tanto do p�blico conseguiram tirar proveito da situa��o. Artistas pl�sticos e poetas descrevem como o processo de isolamento social foi proveitoso para a produ��o art�stica e o reabastecimento cultural.
“O fato da gente ter sido obrigado a fazer esse retiro, vamos dizer assim, n�o foi t�o perturbador. Eu produzi muito. Para n�s que temos esse trabalho mais recolhido num certo gabinete individual, a gente n�o sofreu tanto com a reclus�o assim”, afirma M�rio Azevedo, de 63 anos, artista pl�stico belo-horizontino e ex-professor do Departamento de Artes Pl�sticas da UFMG. Segundo ele, a produ��o art�stica durante a pandemia de COVID-19 trouxe certo conforto para superar o momento. “Foi mais f�cil pra gente porque a cria��o tamb�m nos d� uma alegria. Foi uma energia produtiva que me poupou de muito sofrimento”, acrescenta.
Em mais de 40 anos de carreira, foram raras as oportunidades que M�rio teve de mergulhar t�o profundamente na arte. Recolhido em seu s�tio, localizado em S�o Br�s do Sua�u� (MG), durante a pandemia, o artista produziu mais de 100 trabalhos, sendo a maioria deles desenhos em aquarela. “Teve obras que fiz em uma hora e teve outros que demoraram cerca de 15 dias. Isso tamb�m � um prazer, ter tempo de maturar o trabalho”, esclarece. Segundo ele, a solid�o envolvida no processo foi fundamental para a produ��o. “O trabalho de artes pl�sticas � muito solit�rio, a gente precisa da solid�o para criar. Foi esse momento que ganhou muito valor pra mim. Al�m de segurar minha cabe�a, foi de fato produtivo”, aponta.
Al�m de intensificar a produ��o art�stica, M�rio teve a oportunidade de revisitar e organizar antigos trabalhos art�sticos. O processo culminou na elabora��o do seu novo website (marioazevedo.com) e inspirou novas produ��es. “O pr�prio fato de organizar o trabalho do passado me deu um pontap� para algumas coisas serem retomadas. Eu revi um tanto de obra e comecei a perceber que alguns elementos estavam sempre presentes por baixo das imagens”, descreve. Sua liga��o com as paisagens e o interesse por trabalhos no papel (em vez da tela) foram algumas das descobertas que influenciaram novas obras.
Depois de mais seis meses de pandemia, o processo continua em andamento e M�rio Azevedo pretende elaborar uma s�rie com os trabalhos produzidos durante esse per�odo at� o fim do ano. “A gente teve que lidar com uma consci�ncia muito intensa do trabalho. Isso eu gostei, achei que foi um presente de certa forma. A gente teve for�a, pelo menos, para atravessar a fase mais negra da quarentena e chegar at� aqui. E isso gra�as � arte”, conclui.

PROCESSO CRIATIVO
J�nia Penna, artista pl�stica e professora Escola Guignard, tamb�m experimentou um maior contato com o processo criativo durante a quarentena, em Belo Horizonte. Logo em mar�o, ela organizou uma rotina de trabalho para aproveitar o momento e o ambiente dom�stico foi invadido por v�rios trabalhos em andamento. As paredes do seu apartamento foram ocupadas por desenhos em desenvolvimento, registros de pensamentos e refer�ncias de imagens. “� um processo doloroso, ent�o, essa imers�o foi muito positiva para me manter em p�. Ficar envolvida com trabalho, me ajudou a enfrentar esse per�odo tenebroso”, destaca. A partir disso, J�nia foi dando novos rumos a suas produ��es e encerrando outras.
Como integrante do N�cleo de Estudos e Ensino em Desenho Contempor�neo (Nedec), a artista participava de uma din�mica de produ��o semanal baseada em uma palavra lan�ada no Instagram (@nedec_desenho), al�m de encontros virtuais com os colegas. A ang�stia de estar vivendo no contexto de uma pandemia influenciou uma s�rie de desenhos dialogando com a m�dia de mil mortos por dia no Brasil. Nas obras, feitas com pastel preto e branco em papel japon�s, J�nia inseriu n�meros de 1 a 1.000 por meio de uma a��o gestual veloz. Na medida em que as mortes iam aumentando, mais n�meros iam sendo sobrepostos gerando massas gr�ficas escuras e indefinidas.
A artista tamb�m aproveitou o momento para iniciar a transforma��o da sua escultura Compartimento, elaborada em 2006, que reflete a redu��o do espa�o habitacional nos grandes centros urbanos. Na galeria Manoel Macedo, J�nia utilizou uma motosserra para remontar o trabalho, que tinha uma vida �til limitada em fun��o da madeira utilizada. “Precisei de muito tempo e consegui ter for�a porque � um trabalho muito pesado e envolve muita gente na montagem. Talvez, a grande conclus�o dessa pandemia seja essa energia”, revela.
A a��o foi registrada em v�deo no qual a modifica��o constante da cidade decorrente dos interesses da especula��o imobili�ria � sugerida atrav�s do processo de cortar a escultura at� ficar em ru�nas. “Com certeza, eu quero mostrar essa produ��o, que ainda n�o est� pronta. Esse filme vai demorar um ano para ser conclu�do ou mais. Vai envolver outros processos, como a captura de novas imagens. Estou sem pressa”, explica.
Entretanto, a pandemia de COVID-19 n�o foi proveitosa somente para a produ��o art�stica. “A quarentena pra mim n�o foi de cria��o, mas de abastecimento cultural que faz parte do processo do artista e, principalmente, do escritor”, aponta o poeta e jornalista mineiro Carlos �vila, autor dos livros Aqui & agora (1981), Sinal de menos (1989), Bissexto sentido (1999), �rea de risco (2012) e Anexo de ecos (2017).
Segundo Carlos �vila, o isolamento social foi proveitoso para se dedicar a v�rios romances, poesias e ensaios que estavam em sua prateleira h� muito tempo e que, finalmente, teve a oportunidade de se dedicar. “Os livros foram o grande ant�doto dessa pandemia pra mim. Acho que ficaria louco se n�o pudesse ler, essa � a verdade”, explica o autor, de 65 anos.
�s avessas, de Huysmans, Bouvard e P�cuchet, de Flaubert, O tempo, de Stephen Spender, e O n�ufrago, de Thomas Bernhard, foram algumas leituras que marcaram sua quarentena. O escritor tamb�m aproveitou o tempo livre para reler alguns poemas de Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima. “Pra mim, esse per�odo foi muito produtivo e me abasteceu artisticamente. Para o escritor, a leitura � um alimentador do processo. Isso que eu gostei. Estou me sentido bem com as leituras que fiz”, alega.
Carlos utiliza a frase do autor argentino Jorge Luis Borges ("Que outros se gabem das p�ginas que escreveram; eu me orgulho das que li") para explicar a import�ncia do seu h�bito constante de leitura neste momento t�o devastador. Segundo ele, o processo de poesia � lento e as leituras fazem parte do �cio criativo. “O escritor tem que ler muito, se informar e estudar. Estou me sentindo muito bem por ter acumulado esse combust�vel e recarregado as baterias. Acho que daqui pra frente, como as coisas j� est�o melhorando, pode ser que eu volte a escrever. J� estou come�ando a sentir alguma melhora no sentido de pensar mais na cria��o”, aponta.

NA ACADEMIA
O processo de reclus�o social tamb�m contribuiu para o desenvolvimento de pesquisas acad�micas com temas art�sticos. “O trabalho criativo atravessa o que eu fa�o, mas nesse per�odo da pandemia, especificamente pra mim, teve uma import�ncia fundamental, sobretudo, no processo de finaliza��o do meu doutorado que fiz sobre poesia e design”, explica o poeta e designer gr�fico J�lio Abreu, autor dos livros Jogo das horas (2015) e o fotolivro Dentro da faixa (2017).
Segundo ele, o fato de ficar em casa possibilitou um mergulho muito maior do que em outros tempos. “Acho que acelerou esse processo de finaliza��o. Sem ela, essa conclus�o teria sido muito dif�cil. Apesar da pandemia, eu agrade�o um pouco a minha quarentena. Foi muito favor�vel no meu caso essa reclus�o”, explica o poeta, de 47 anos.
A tese A sintaxe visual na poesia de Augusto de Campos: uma leitura estrutura, produzida no Departamento de P�s-Gradua��o em Estudos de Linguagem do Cefet-MG, foi apresentada por J�lio de Abreu no m�s de agosto. Segundo ele, a intensifica��o do processo criativo na quarentena atravessa seu doutorado. “Era uma tese sobre poesia e design, ent�o, acaba tendo uma escrita mais t�cnica e te�rica, mas tamb�m tem uma criatividade que acaba atravessando isso. Acho que n�o teria conclu�do sem a quarentena”, justifica. O poeta afirma que a demanda impulsionou sua dedica��o na quarentena, mas, se n�o fosse a pesquisa, o mergulho seria em outra atividade art�stica.
O sil�ncio presente na cidade e a calma dentro de casa foram pontos que contribu�ram com a conclus�o da tese e influenciou J�lio a escrever um poema, denominado Desse carnaval. “Eu falava: n�o tem uma semana no ano que a gente para tudo e faz um carnaval? A gente devia constituir tamb�m uma data n�o para ir pra rua, mas pra ficar em casa, no sil�ncio da gente”, explica. J�lio de Abreu, agora, encontra-se no prelo do livro de poemas visuais M�sica e deve utilizar as recomenda��es de isolamento social ao seu favor.
*Estagi�rio sob supervis�o da editora Teresa Caram
