
O Brasil, num contraponto � B�lgica, por insist�ncia, numa realidade de sufocamento � arte, tem aguerrida legi�o de documentaristas de plant�o. Vence, pela resist�ncia, a lida dif�cil das pessoas que tendem “a rejeitar a realidade”, como destaca no livro o documentarista Eduardo Escorel.
Morto h� quase sete anos, Eduardo Coutinho descrevia a express�o do document�rio como circunscrita a um “g�nero maldito”. No recente 53º Festival de Bras�lia do Cinema Brasileiro, venceu o “maldito”: dos seis longas apresentados na mostra competitiva, cinco foram document�rios. Um ind�cio do vigor dos diretores exaltados no referencial livro de Piero Sbragia.
Que conjuntura explica o crescente interesse por document�rios?
Imagino que o interesse aumenta na medida em que passamos a viver uma realidade que mais parece um filme dist�pico de fic��o. A conjuntura social e pol�tica hoje no Brasil � uma mistura de Mad Max com Terra em transe. Lidar com essa realidade dist�pica exige de todos n�s um apre�o maior por entender o real e, basicamente, esmiu�ar as diferentes narrativas constru�das que nos s�o apresentadas diariamente nas redes sociais, nas nossas bolhas e no jornalismo... Isso acontece tamb�m nos Estados Unidos, na Hungria e em todos os pa�ses em que a extrema-direita chegou ao poder e apresenta um projeto de reescrever a hist�ria e trocar fatos por mentiras, no melhor estilo 1984, de George Orwell.
H� diferen�as marcantes entre mulheres e homens quando decidem dirigir document�rios?
N�o vejo, necessariamente, grandes diferen�as entre os g�neros atr�s das c�meras. Ambos s�o capazes de produzir bons filmes e filmes horrorosos tamb�m. Mas, particularmente, em document�rios percebo que a mulher consegue ter mais sensibilidade nas narrativas audiovisuais. O diretor homem me parece mais preso �s conven��es tradicionais narra��o em off, de cabe�as (entrevistados) falando. Quando penso em revolu��o no formato penso em Susanna Lira, Eliza Capai, Lucia Murat, Carol Benjamin. As mulheres s�o menos quadradas do que os homens para contar boas hist�rias.
O que pode ser dito da filmografia do Vladimir Carvalho, um dos mais importantes diretores da capital do pa�s?
Vladimir Carvalho fez o roteiro e foi assistente de dire��o de Linduarte Noronha em Aruanda, o document�rio respons�vel pela primeira grande revolu��o do g�nero no Brasil. Basicamente por flertar com elementos de fic��o e oferecer uma nova abordagem ao document�rio, na contram�o do que europeus e norte-americanos faziam na �poca (virada da d�cada de 1950 para 1960) com aquela ideia do Cinema Verdade e da pouca interven��o nas filmagens. Vladimir foi um g�nio atr�s das c�meras e tamb�m um importante pensador do cinema, algu�m com generosidade para fazer cinema e tamb�m ensinar cinema. N�o bastasse o pioneirismo de Vladimir em Aruanda, o cineasta tamb�m esteve envolvido na segunda grande revolu��o do document�rio no Brasil: Vladimir Carvalho produziu Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho. Precisa mais? Sem Vladimir, o document�rio contempor�neo brasileiro n�o seria refer�ncia hoje.
H� unidade ou vi�s tem�tico assemelhado na safra de longas nacionais de hoje?
N�o enxergo, necessariamente, um vi�s tem�tico nos document�rios contempor�neos realizados no Brasil. Mas percebo claramente um vi�s mais democr�tico e com diversidade, na proposi��o de temas ou at� mesmo entre quem realiza os filmes. O document�rio parece furar um pouco aquela patota do macho-branco-de elite que produz filmes no Brasil. Na fic��o, ainda � assim; mas nos document�rios, n�o. Vejo muitas mulheres na dire��o, negros e negras na dire��o, cineastas LGBTQI+, cineastas perif�ricos.
Evidente que as condi��es de trabalho n�o s�o as mesmas, muito menos a grana por tr�s dos filmes. Mas justamente o fato de o document�rio precisar de menos dinheiro para ser produzido do que a fic��o torna o g�nero mais acess�vel aos realizadores e realizadoras. Isso sem falar de jovens cineastas que realizam filmes t�o impactantes quanto cineastas experientes. Di�genes Muniz levou o � Tudo Verdade 2020 com seu primeiro filme, Libelu – abaixo a ditadura, e com apenas 34 anos.
Evidente que as condi��es de trabalho n�o s�o as mesmas, muito menos a grana por tr�s dos filmes. Mas justamente o fato de o document�rio precisar de menos dinheiro para ser produzido do que a fic��o torna o g�nero mais acess�vel aos realizadores e realizadoras. Isso sem falar de jovens cineastas que realizam filmes t�o impactantes quanto cineastas experientes. Di�genes Muniz levou o � Tudo Verdade 2020 com seu primeiro filme, Libelu – abaixo a ditadura, e com apenas 34 anos.
Que linguagem tem sido demarcada nos document�rios produzidos pela realidade da pandemia do coronav�rus?
A est�tica de videochamada, com a tela dividida em diversos pequenos quadradinhos, tomou de assalto document�rios, lives, entrevistas jornal�sticas, mesas redondas. Ao mesmo tempo que no in�cio da pandemia mostrou-se uma op��o �gil de entrevista, sinto que, depois de quase um ano de uso exaustivo, essa possibilidade me parece esgotada. Ainda assim, temos document�rios interessantes surgindo. Me cuidem-se!, o filme processo de Bebeto Abrantes e Cavi Borges, nasceu na pandemia, foi gravado pelos pr�prios personagens e os diretores, depois de montarem um primeiro corte. Agora, eles far�o sess�es virtuais para um debate coletivo sobre a montagem da obra. Ser� que essa vai ser uma tend�ncia daqui pra frente? Ser� que cada vez mais os documentaristas far�o filmes processos como esse? O document�rio �, definitivamente, a prova de que n�o se faz um filme sozinho. Document�rio � coletivo, e � processo.
Como a pandemia afetou o cinema documental?
A COVID-19 descortinou dois tipos de document�rios: filmes que buscam dialogar com a mem�ria e o passado para tentar compreender o presente e filmes que s�o produzidos a partir de um processo coletivo, como Me cuidem-se!, e Coronation, de Ai WeiWei. � interessante perceber como a pandemia afetou diretamente Hollywood e os blockbusters, mas n�o afetou tanto os document�rios. Primeiro, porque j� era dif�cil para uma obra documental encontrar espa�os no cinema e segundo porque o consumo em streaming tem proporcionado novas possibilidades at� para cineastas consagrados.
Seria o caso de quem?
Com Sert�nia, por exemplo, Geraldo Sarno teve em 2020, em plena pandemia, a maior audi�ncia da carreira. Por baixo, pelo menos 30 mil pessoas viram sua obra em diversos festivais on-line. Aos 82 anos e inserido entre os pilares do cinema brasileiro, Geraldo tem sido descoberto pelos jovens, pelos estudantes e por toda uma nova gera��o de brasileiras e brasileiros. Se n�o fosse a pandemia, Sert�nia teria todo esse alcance? Dificilmente.
Se nos filmes de fic��o a pandemia afetou diretamente o processo de filmagem, nos document�rios � poss�vel alternativas. Eduardo Escorel, por exemplo, est� montando o pr�ximo filme, constru�do a partir de material de arquivo, remotamente com outra montadora. O processo � mais lento, mais demorado, por�m, � poss�vel. Por isso, acredito que o document�rio vai ser respons�vel por uma nova retomada no cinema brasileiro, nesse Brasil pand�mico, desgovernado e sem editais. Os document�rios v�o resistir a tudo isso!
Se nos filmes de fic��o a pandemia afetou diretamente o processo de filmagem, nos document�rios � poss�vel alternativas. Eduardo Escorel, por exemplo, est� montando o pr�ximo filme, constru�do a partir de material de arquivo, remotamente com outra montadora. O processo � mais lento, mais demorado, por�m, � poss�vel. Por isso, acredito que o document�rio vai ser respons�vel por uma nova retomada no cinema brasileiro, nesse Brasil pand�mico, desgovernado e sem editais. Os document�rios v�o resistir a tudo isso!

NOVAS FRONTEIRAS DO DOCUMENT�RIO: ENTRE A FACTUALIDADE E A FICCIONALIDADE
. De Piero Sbragia
. Cole��o Mais que Mil Palavras
. Chiado Books
. 484 p�ginas
. R$ 46 (https://linktr.ee/Fronteiras)