
Ela sabia que eles a tratariam como uma rainha, pagariam sua Coca-Cola gelada, a colocariam sentada na melhor poltrona do est�dio e deixariam o �nico ventilador General Eletric da companhia bem a seu lado para refresc�-la enquanto os m�sicos se preparavam.
Tudo do bom e do melhor para Ma Rainey, at� a luz vermelha do est�dio se apagar e a grava��o ser finalizada. A�, ent�o, os empres�rios brancos lhe pagariam US$ 200 e a fariam assinar uma cess�o de direitos autorais de toda a alma que ela havia acabado de deixar naquelas can��es. Dariam US$ 25 a cada um dos m�sicos negros que passaram a tarde ao seu lado na sess�o, chamariam um t�xi e sorririam para ela pela �ltima vez.
Por isso, Ma Rainey cobrava caro cada minuto do tempo compreendido entre sua chegada ao est�dio e o t�rmino das grava��es. "Essa mulher � insuport�vel", voc� pode pensar nos primeiros minutos ao v�-la sendo interpretada por Viola Davis no filme Ma Rainey's black bottom, que na Netflix do Brasil chegou comoA voz suprema do blues.
Mas n�o. Se os bem-vestidos executivos queriam mesmo sua voz, uma das maiores vendedoras de discos no mercado dos race records (registros de ra�a) – forma como os norte-americanos n�o negros passaram a chamar o mercado alimentado por artistas negros de blues nos anos 1920 e consumido por fam�lias negras que j� estavam no Norte ou que haviam acabado de chegar do Sul, esperando em v�o encontrar uma terra com pessoas que n�o os enforcassem nas �rvores ou os apedrejassem nas ruas –, eles teriam de satisfazer seus desejos. O reinado de Rainey duraria pouco, at� a grava��o terminar e ela voltar a ser a mulher negra, gorda e bissexual que at� a hist�ria do pr�prio blues decidiu apagar de seus arquivos.

PODEROSOS
Mas os negros norte-americanos seguem em seu revisionismo hist�rico, colocando Ma Rainey como a voz da vez, gra�as a esse espl�ndido projeto bancado por um conjunto de mulheres e homens negros poderosos, que nem o p�s-segregacionismo cultural dos Estados Unidos p�de impedir de estar onde est�o.Com um bom dinheiro de Denzel Washington, um dos produtores ao lado de Todd Black e Dany Wolf, e mais Viola como Ma, Chadwick Boseman como o trompetista fict�cio Levee e uma gig de atores t�o espetacular quanto as jam sessions invis�veis dos anos 1930, com Glynn Turman como o pianista Toledo, Colman Domingo como o trombonista Cutler e Michael Potts como o baixista Slow Drag, o texto do dramaturgo das quest�es raciais August Wilson foi parar nas m�os do diretor George C. Wolfe e se tornou uma preciosidade alentadora num ambiente t�o desesperadoramente comercial quanto a Netflix.
S�o dois os eixos dram�ticos cruzados em um est�dio de grava��o de Chicago dos anos 1920. De um lado, Ma Rainey, que chega como um colosso para colocar a voz em um novo �lbum, trazendo sua sobreviv�ncia na pele suada, nos dentes platinados e nos olhos cansados e de maquiagem desfeita.
Do outro, seu trompetista Levee (Boseman, em atua��o memor�vel), filho de pai assassinado por brancos e sonhador por ser como Ma: um rei, ao menos, enquanto estiver sobre um palco. Mas Levee, diferentemente de Ma, deixa seu �dio o engolir. Ele nem sequer toca bem (e reparem, trompetistas, como sua digita��o nas v�lvulas do instrumento, preparada por Branford Marsalis, parece propositalmente malfeita).
VINGAN�A
Seu justi�amento � para ontem e a m�sica � tudo o que lhe resta. Ma n�o. Ela at� se diverte por tr�s de sua estrat�gia de vingan�a saborosa, tratando brancos como panos de ch�o e retardando ao m�ximo a entrega de suas grava��es. Ma exige que a locu��o da primeira m�sica seja feita por um garoto negro e gago que ela leva do Sul.Ele erra por dezenas de vezes e, a cada erro, � um disco de goma-laca jogado no lixo. Ma ent�o pergunta onde est� sua Coca-Cola. O executivo da gravadora diz que se esqueceu de comprar. Ela para a grava��o e diz que s� segue em frente depois de tomar a sua bendita Coca-Cola. Eles que se virem.
Muito menos revista do que Bessie Smith (que bebeu em sua fonte e, dizem em Chicago, a namorou), Ma Rainey � a ponta da tenda submersa onde centenas de outras mulheres se apresentaram antes mesmo dos anos 1920, mas que jamais tiveram o mesmo espa�o, mesmo quando poderiam ter sido resgatadas com a chegada dos anos 1970, quando os garotos brancos ingleses do rock come�aram a roubar o blues dos negros norte-americanos que a hist�ria havia enterrado como indigentes (o caso mais flagrante � do Led Zeppelin) ou mesmo a regrav�-los reverencialmente, como o rec�m-negacionista Eric Clapton, o Who, os Faces e os Rolling Stones.
Ningu�m quis saber das mulheres, e olha que registros delas n�o faltavam. Rosetta Tharpe, nascida em 1915, era, al�m de cantora, uma guitarrista formid�vel, que influenciou apenas BB King e Elvis Presley. Mamie Smith, nascida em 1883, gravou Crazy blues em 1920 e passou a ser chamada de Imperatriz do Blues. Gra�as ao seu sucesso no meio dos race records, as gravadoras passaram a procurar nomes como os de Bertha Hill, Bessie e a pr�pria Ma Rainey. A gera��o seguinte teria Alberta Hunter, Koko Taylor, Etta James, Marva Wright.
Por mais tentador que seja, n�o d� para falar aqui de Billie Holiday, Nina Simone e Ella Fitzgerald. Sa�das do mesmo barro do gospel e do blues, essas mulheres migraram rapidamente para o jazz, e l� a hist�ria � outra. Al�m da segmenta��o racial, o advento do jazz criou mais uma barreira segregacionista entre os pr�prios negros.
Cantoras de blues, para muitos deles, n�o tinham dons para encarar o jazz. Algo equivalente no Brasil a uma cantora de samba chegando a um dos apartamentos em que rolava bossa nova na Zona Sul do Rio. Nem entraria. Assim, a hist�ria s� reservaria a elas os restos do assado, subestimando o prato que poderiam criar com eles.
N�o d� para ficar procurando o que � fic��o e o que � realidade no filme de George Wolfe. Nada e tudo o que est� ali de fato aconteceu. E o que n�o aconteceu poderia ter acontecido. E quem pode dizer o que realmente n�o aconteceu? Por n�o se tratar de uma biografia de Ma Rainey, vamos a um pouco dela: seu nome era Gertrude Malissa Nix Pridgett Rainey, nascida em 26 de abril de 1886 em Columbus, Ge�rgia.
QUEBRANDO TUDO
Ainda adolescente, descobriu que o palco seria sua casa e seguiu viajando com espet�culos de vaudeville at� 1904, quando se casou com o tamb�m artista William "Pa" Rainey. Juntos, Ma e Pa passaram a ser conhecidos como os Assassinos do Blues, algo que, entre os m�sicos, n�o tinha conota��o policialesca. Assassinos no sentido de "quebrarem tudo em cena." At� Bessie Smith, e isso n�o est� registrado, teria cantado em seu grupo itinerante por esses anos.Ma se separa de William em 1916 e segue com uma companhia de espet�culos pr�pria chamada Madame Gertrude Ma Rainey e Her Georgia Smart Set. � contratada pela gravadora Paramount em 1923 (� esse o momento de sua vida em que a sess�o de grava��o do filme se passa) e chega a fazer cerca de 100 registros, cedendo seus direitos das vendagens dos �lbuns � gravadora.
S�o dessa �poca Moonshine blues, See see rider, Trust no man e, claro, Ma Rainey's black bottom. Ma volta para a cidade de Columbus depois de deixar os palcos, em 1935, para se envolver com a igreja protestante local e administrar dois estabelecimentos de entretenimento. Quatro anos depois de seu retorno, ela morre v�tima de um ataque card�aco. E, 80 anos depois, � encontrada viva dentro de Viola Davis.