
Depois de cinco d�cadas marcadas pela liberdade de a��o difusa e acesso cada vez maior devido � quebra das fronteiras, percebe-se a for�a de uma nova cena. Artistas de 25 a 40 anos que atravessam esta era da incerteza, isolamento e urg�ncias militantes chegam com nova vis�o n�o s� do jazz, mas do pr�prio jazzista.
Quais s�o e como seriam esses jazzistas? As listas das maiores revistas especializadas do mundo, como as inglesas Jazzwise e The Wire, as norte-americanas Downbeat e JazzTimes, a alem� JazzThing e a polonesa JazzPress, al�m das publica��es especializadas nos jornais The New York Times e Washington Post, fizeram h� pouco as costumeiras listas de melhores de 2020 e apostas de 2021.
A reportagem procurou pelos nomes que se repetem em algumas delas com frequ�ncia, buscando entender se j� existem caracter�sticas geracionais peculiares no som e no pensamento de instrumentistas que est�o sob holofotes.

POL�NIA
Jakub Wie�ek, ou Kuba Wie�ek, � um saxofonista polon�s de Vars�via de conhecimentos aprimorados em Amsterd� e Copenhague. Ele tem 27 anos. Seu recente �lbum Multitasking lhe garantiu um pr�mio de disco do ano da revista polonesa Polityka e o levou para a lista das apostas da Jazzwise.
Sua m�sica bruta r�tmica, despojada de solos longos e coerentes, pode indicar um processo geracional. Se n�o foi, o �lbum de Wie�ek poderia ter sido criado inteiramente no computador de seu quarto.
“Jazz � algo mais do que apenas as notas que tocamos. Para mim, sempre foi sobre estar aqui e agora, sobre estar aberto � possibilidade de que, a cada segundo, tudo possa mudar. Sempre se tratou de correr riscos, buscar o desconhecido e aceitar erros para depois criar arte a partir desses erros”, diz ele.
Novos idiomas s�o definidos pelos meios tecnol�gicos em que o jazz � cada vez mais frequentemente produzido em tempos de pandemia, ou seja, por aplicativos e programas de grava��o, observa Kyba Wie�ek. “Jazz � sobre o som e a maneira como voc� o produz e o funde com coisas de diferentes g�neros.”
O polon�s d� pistas sobre uma das mais pol�micas reavalia��es do g�nero: “N�o acho que ser virtuoso importe tanto quanto importava h� oito anos, pelo menos. Acontecem tantas coisas no mundo que estamos agora apreciando mais o minimalismo”.
Wie�ek parece falar por muitos. Nas m�os do ingl�s crescido em Barbados Shabaka Hutchings, por exemplo, um dos nomes mais festejados pela cr�tica de Londres e dos Estados Unidos, o sax atua em pe�as de linhas curtas, misteriosas, tensas, �s vezes eletr�nicas, urbanas e m�ntricas, dialogando com sua ancestralidade africana.

NOTAS
N�o parece importar ao polon�s e ao ingl�s serem os melhores nem sequer dominar seus instrumentos, cultura perpetuada sobretudo no jazz dos sopros desde o bebop de Charlie Parker. N�o importa ser o melhor. Um posicionamento jazz�stico aceit�vel nos �ltimos tempos � criado pelo artista que sabe onde colocar as poucas notas extra�das de um sax.
“Virtuosismo � coisa de quem cultua o passado”, diz o cr�tico Jo�o Marcos Coelho, estudioso do jazz e da m�sica cl�ssica. “Isso n�o significa que esses trabalhos sejam piores. H� m�sicos muitos bons que entenderam que n�o precisam mais ser virtuoses”, observa.
Thelonious Monk, Charlie Parker, Sonny Rollins e Horace Silver ainda influenciam um artista jovem com a mesma carga determinante de sua pr�pria linguagem ou estariam todos mais no status de respeitados que de seguidos?
Guitarrista e cantora de Santiago do Chile com a carreira baseada em Nova York, Camila Meza, definida pelo cr�tico do The New York Times Nate Chinen como “uma combina��o atraente de leveza e profundidade”, diz que sim, as refer�ncias para sua gera��o seguem sendo decisivas.
“Mais do que reverenciar os grandes, n�s os experimentamos e os mesclamos, o que nos leva a uma cria��o interessante e cheia de movimento”, afirma. A performance cl�ssica � fruto de seu discurso. Camila, de 35 anos, ama Pat Metheny, Herbie Hancock, Chick Corea, John Scofield e Milton Nascimento, o que se percebe em seu �lbum Ambar.
ESCOLAS
Kuba Wie�ek tem outra percep��o sobre o peso das escolas. “Gostava tanto de fazer minha pr�pria m�sica enquanto era for�ado a tocar bebop em Amsterd� que realmente passei a n�o gostar dos standards. S� me apaixonei por eles quando me mudei para Copenhague e descobri o amor que havia l� pela tradi��o do jazz”, afirma.
Na vibrante cena na Pol�nia, as coisas s�o diferentes, diz o saxofonista. “Temos respeito por eles (os mestres), mas muitos jovens n�o os seguem de forma alguma. Os alunos s�o mais influenciados por m�sicos de jazz modernos do que por Charlie Parker e Sonny Rollins.”
O isolamento social prolongado por causa da COVID-19 e o distanciamento que pode deixar sequelas, mesmo em um mundo vacinado, seriam capazes de transformar a linguagem do jazz?
M�sica origin�ria do encontro de povos nascida n�o por acaso em New Orleans – franceses, espanh�is, ingleses, italianos, alem�es, eslavos e afro-americanos namoraram e tiveram filhos –, o que seria do jazz do n�o encontro? N�o vale falar a palavra live.
“Gravei um �lbum com o grande trompetista Dave Douglas de forma distanciada em 2020, cada um de sua casa. Primeiro o baixo e, depois, somamos os outros instrumentos, mas parece que estivemos no mesmo est�dio. Foi um descobrimento”, diz Camila Meza.
“Jazz � m�sica resiliente. Sempre encontramos uma maneira de faz�-la como m�sica espont�nea junto a outros seres humanos. Queiramos ou n�o, esta � uma necessidade”, afirma a guitarrista e cantora. (Ag�ncia Estado)
M�sica diferente para uma �poca diferente
O pianista cubano Alfredo Rodriguez � unanimidade entre os cr�ticos de jazz dos Estados Unidos. “Em uma simples melodia, suas linhas n�tidas de bebop lembram as primeiras apresenta��es de Bill Evans no �lbum Jazz workshop, de George Russell, de meados dos anos 50”, escreveu Don Heckman para a International Review of Music, do Oregon, nos EUA.
A performance explosiva de Rodriguez, de 35 anos, impressiona. “Prefiro dizer que sou apenas um m�sico”, declara, afirmando que entende o jazz como um r�tulo redutor de suas ra�zes afro-cubanas absorvidas da m�sica que lhe chegava de Camar�es, Benin e Nig�ria, tr�s fortes correntes que ressoam historicamente em Havana.
De fato, seu mais recente �lbum, Duologue, gravado com o cantor Pedrito Martinez, tem forte presen�a africana at� na vers�o de Thriller, de Michael Jackson. “Vivemos uma �poca diferente dos anos 1950, 1960, 1970 e 2000. Vamos mudando, como a vida que nos rodeia. Por tudo o que estamos vivendo, a m�sica tamb�m vai soar diferente”, afirma Rodriguez.
ESPECIALIZA��O
A l�gica da especializa��o, comum no jazz, estaria mais aberta a admitir talentos polivalentes, sem entender um deles como mera fun��o secund�ria?
A guitarrista e cantora chilena Camila Meza diz que George Benson norteou sua ideia de cantar e tocar guitarra com excel�ncia sem sucatear nenhuma das �reas. Sua xar� nos Estados Unidos, a saxofonista e cantora Camille Thurman, de 34, aposta n�o s� da cr�tica, mas tamb�m de Wynton Marsalis, que a contratou para a sua orquestra guardi� dos fundamentos, a Jazz at Lincoln Center Orchestra, respondeu assim ao ser questionada sobre sua decis�o de cantar, mesmo depois de ter se firmado como saxofonista: “Voc� s� precisa fazer os dois da melhor maneira que puder”.
Miles Davis, Dizzy Gillespie e Louis Armstrong precisaram de apenas um trompete para mudar o mundo do jazz. Por�m, isso parece cada vez mais caracter�stica dos tempos em que a devo��o �s escolhas de um jazzista era algo de dimens�o religiosa.
Saxofonistas, trompetistas e pianistas entendiam que vinham ao mundo com uma miss�o e deveriam saber de seus lugares para se restringir a eles. Agora, a gera��o de jazzistas da hiperinforma��o parece se recusar a ser reduzida a apenas uma fun��o.