
Em “Fatal”, o antol�gico show que protagonizou entre 1971 e 1972, o repert�rio trazia desde a tradi��o do samba, representado por “Antonico” (Ismael Silva), � can��o pop ”Sua estupidez” (Roberto e Erasmo Carlos), passando pela psicod�lica “Vapor barato” (Macal� e Walli Salom�o). Em “�ndia”, outro espet�culo inesquec�vel, Gal, sentada, com as coxas � mostra, cantava “Trem das onze” (Adoniran Barbosa), se acompanhando ao viol�o. Mas ela fez mais: em “O sorriso do gato de Alice” exibia os seios na perform�tica “Brasil”, de Cazuza.
‘A M�e de todas as vozes’, como a classificou Nando Reis numa m�sica que comp�s para ela, volta a ousar, de outra forma, ao lan�ar “Nenhuma dor”, �lbum com o qual celebra 75 anos de vida e 55 de carreira, em faixas que trazem a recria��o de can��es consagradas de sua obra.
A menos conhecida � a que d� t�tulo ao trabalho, garimpada do repert�rio de “Domingo”, o LP que dividiu com Caetano Veloso, na estreia de ambos em disco, em 1997. Trecho da letra de Torquato Neto diz: “� preciso, � doce namorada/ Seguirmos firmes na estrada/Que leva a nenhuma dor”.
Segundo a cantora baiana, “Nenhuma dor” — gravado durante a quarentena imposta pela pandemia da COVID-19 — nasceu como um projeto digital, que lhe foi sugerido pelo produtor Marcus Preto, com quem trabalha desde “Estratosf�rica”. Inicialmente — a partir de novembro �ltimo —, foram lan�ados pares de singles na internet. Diante da �tima resposta do p�blico, decidiu-se por reuni-los nos formatos f�sicos de CD e vinil, com capa criada pelo artista pl�stico Omar Salom�o.
Gal conta que a ideia do “Nenhuma dor” surgiu durante uma conversa com Marcus Preto, depois da percep��o de ambos do afeto que um p�blico mais jovem vinha demonstrando pelo legado de artistas da gera��o que tem Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Maria Beth�nia e ela pr�pria como nomes estelares.
Os dois chegaram a essa conclus�o ao tomar conhecimento do expressivo consumo, no per�odo da pandemia, da m�sica de cat�logo no mundo. Eles acreditam que essas can��es fazem parte da mem�ria afetiva de muita gente e est�o na trilha sonora de melhores e mais esperan�ados tempos, para dar estrutura diante das incertezas deste momento.
Os primeiros convidados para participar do projeto foram artistas com quem Gal j� vinha trabalhando no palco e nos �lbuns “Estratosf�rica” (2015) e “A pele do futuro” (2018): Criolo, Silva, Rubel, Tim Bernardes e Zeca Veloso. Em seguida, foram chamados Seu Jorge, Rodrigo Amarante e Z� Ibarra, al�m do uruguaio Jorge Drexler e do portugu�s Antonio Zambujo.
Todos tomaram parte da produ��o da pr�pria faixa e alguns tocaram instrumentos de base, que depois ganharam arranjos de cordas, criados por Felipe Pacheco Ventura, respons�vel tamb�m pelas faixas inteiras de Criolo e Zambujo.
Caetano Veloso, autor mais gravado por Gal ao longo da carreira, marca presen�a nesse disco com “Avarandado”, “Baby”, “Cora��o vagabundo”, “Domingo”, “Meu bem, meu mal”, “Nenhuma dor” (parceria com Torquato Neto) e “Paula e Bebeto” (que fez com Milton Nascimento), al�m de “Negro amor”, vers�o de “It’s all over now, Baby Blue” (Bob Dylan), escrita com P�ricles Cavalcanti. H� ainda no repert�rio “Pois �” (Tom Jobim), “S� louco” (Dorival Caymmi) e “Juventude transviada” (Luiz Melodia).
Z� Ibarra conta que ouve Gal Costa desde a inf�ncia. “A primeira vez foi numa visita � casa de familiares, na Ilha de Itaparica (BA), debaixo de um cajueiro, quando meu pai colocou no aparelho de som o disco em que ela cantava can��es de Dorival Caymmi. Agora, 20 anos depois, estamos eu e ela, a grande protagonista da minha vida musical, gravando um fonograma juntos.” O vocalista acrescenta: “Espero que, fazendo duo com Gal em ‘Meu bem, meu mal’, de alguma forma esteja fazendo um bem para ela, assim como ela fez e continua fazendo por mim”.
J� Rubel, citando verso da can��o de que participa, diz: “Meu cora��o n�o se cansa de agradecer o privil�gio que � poder cantar ‘Cora��o vagabundo’, uma das minhas m�sicas preferidas, de um dos meus discos preferidos, ao lado da maior cantora do Brasil”. Ele complementa: “Tentei ser o mais fiel � est�tica minimalista de ‘Domingo’, do viol�o jo�o-gilbertiano de Caetano. Busquei respeitar e reverenciar o que j� � perfeito e belo. Essa � a nossa segunda parceria. Espero que seja a segunda de muitas”.
Na busca por demonstrar o contentamento pelo convite para tomar parte do projeto, cantando ‘Negro amor’ com a musa do movimento tropicalista, o uruguaio Jorge Drexler escreveu um texto elogioso em forma de poema: “Boca de carmim profundo/ Noite profunda, o cabelo/ � uma voz puro desejo/ Todo desejo do mundo/ Naquele primeiro segundo/ Que ouvi seu canto floral feito seda e cristal/ Meu cora��o juvenil pensou/ J� entendo o Brasil/ Brasil � a voz de Gal”.
''Este � um momento em que as pessoas est�o tendo prazer em ouvir m�sicas de cat�logo, m�sicas da minha gera��o. � a mem�ria de um tempo que era bom. Quero despertar s� coisas boas nas pessoas, e � muito gratificante saber que esse disco pode levar um conforto, um pouco de alegria para quem gosta e se conecta com o meu trabalho''
Gal Costa, cantora
Celebrar 75 anos de vida e 55 de carreira com esse projeto foi uma forma de trazer alento e alegria �s pessoas em tempos t�o dif�ceis?
Sem d�vida. Tamb�m foi um momento de respiro e de al�vio ir para o est�dio gravar. Este � um momento em que as pessoas est�o tendo prazer em ouvir m�sicas de cat�logo, m�sicas da minha gera��o. � a mem�ria de um tempo que era bom. Quero despertar s� coisas boas nas pessoas, e � muito gratificante saber que esse disco pode levar um conforto, um pouco de alegria para quem gosta e se conecta com o meu trabalho.
Por que quis gravar um �lbum em que recria can��es do seu repert�rio, em duo com cantores das novas gera��es?
Esse era um projeto que se chamava “Gal 75”, em que a gente tinha a inten��o de fazer virar um disco. O Marcus Preto teve essa ideia antes da pandemia, mas ela foi concretizada durante a quarentena. O ponto central desse trabalho � que s�o todos cantores homens que foram influenciados pelo meu trabalho. Eu tenho uma grande influ�ncia de um homem, que � o Jo�o Gilberto. Ent�o, Marcus Preto teve a ideia de juntar esses artistas.
Pelo visto, voc� tem se ocupado na intermin�vel quarentena como poucos. De onde vem tanto f�lego?
Eu adoro a vida, ela � muito preciosa para mim. N�o me sinto velha, tenho uma alma jovem e tenho energia para cantar at� quando der. A minha energia vem da m�sica, da vontade de ousar sempre, de arriscar, fazer coisas novas, isso me alimenta muito.
A escolha das can��es e dos participantes do �lbum foi sua?
Foi uma escolha feita a quatro m�os. Os convidados me foram trazidos pelo Marcus Preto e eu os recebi com muito amor. Eu j� conhecia o trabalho de todos eles, com alguns j� tinha trabalhado antes e achei �timo, porque gostava de todos eles. Ficaram v�rias can��es de fora. A ideia inicial era regravar sucessos meus que n�o estavam nos dois shows recentes (Estratosf�rica e A Pele do Futuro). Separamos algumas faixas, mas alguns convidados sugeriram tamb�m outras can��es.
Os jovens t�m mostrado apre�o por m�sicas de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e outros da mesma gera��o que a sua. Na sua vis�o, por que isso ocorre?
Eu acho que essa pandemia despertou nas pessoas um prazer em ouvir m�sicas de cat�logo, m�sicas de minha gera��o, que s�o a mem�ria de um tempo bom.
Que lembran�a guarda da musa da Tropic�lia, da Gal Fatal que era celebrada no palco e nas Dunas da Gal?
Eu sou todas as Gals. N�o d� para desvincular uma da outra. A �nica diferen�a entre elas � que hoje, mesmo continuando jovem espiritualmente, eu sou mais experiente. A maturidade traz mais confian�a, mais serenidade e seguran�a. O meu esp�rito n�o acompanha minha idade cronol�gica, porque minha alma � jovem. Tenho uma carreira rica, cheia de nuances e mudan�as. Isso me motiva sempre.
Que avalia��o faz do Brasil de hoje, sem vacina para os brasileiros e com desprezo � cultura por parte das autoridades governamentais?
Primeiro de tudo, me incomoda muito a incompet�ncia desse governo. � um governo que tem propostas erradas, contra a ci�ncia, contra a cultura, que fecha os olhos pro desmatamento e n�o percebe como tudo isso afeta a vida de todo mundo. Temos um presidente, na minha vis�o, com um perfil ditador. Ele ataca e quer banalizar a arte. � de uma ignor�ncia, uma falta de consci�ncia. Ele tem sido mal�fico para a cultura do Brasil, e eu fico chocada com a falta de informa��o que ele espalha. A arte � a identidade de um povo, ela d� energia e sustenta��o para as pessoas seguirem em frente em suas jornadas. Mas tenho a esperan�a de que dias melhores vir�o.

“Nenhuma dor”
• Gal Costa
• Biscoito Fino
• Nos formatos CD (R$ 42,40) e vinil, dispon�veis tamb�m nas plataformas digitais