
Algumas coisas s�o t�o �bvias que acabam passando despercebidas.
E isso pode acontecer at� em uma imagem onipresente como a Mona Lisa.
O retrato emblem�tico de Leonardo Da Vinci, feito em 1503, estrelado por Lisa del Giocondo, uma mulher de 24 anos, m�e de cinco filhos e esposa de um rico comerciante de seda florentino, � a obra de arte mais famosa do mundo.
No entanto, quantos de n�s j� notamos conscientemente o objeto na pintura que aparece mais perto do observador do que qualquer outro: a cadeira em que a mulher misteriosa est� sentada?Ainda que seja a �nica coisa que a modelo de Leonardo agarra com a m�o (literalmente todos os dedos de sua m�o a tocam ou apontam para ela), a cadeira parece ser o aspecto mais esquecido da pintura.
Escondida, mas � vista de todos, ela tamb�m pode ser a seta que aponta o caminho para os significados mais profundos da obra.
Al�m do sorriso

Durante s�culos, nossa aten��o se concentrou em outra parte do pequeno painel de �leo sobre choupo (77 x 53 cent�metros) que Da Vinci nunca terminou por completo e sobre o qual, acredita-se, ele continuou a trabalhar obsessivamente at� sua morte em 1519.
A preocupa��o com o sorriso inescrut�vel de Mona Lisa � quase t�o antiga quanto a pintura, remontando pelo menos � rea��o do lend�rio escritor e historiador renascentista Giorgio Vasari, que nasceu alguns anos depois de Da Vinci come�ar a trabalhar no quadro.
"A boca, com a sua abertura e as suas pontas unidas pelo vermelho dos l�bios �s tonalidades da carne do rosto", observou Vasari na sua c�lebre obra Vidas dos mais destacados pintores, escultores e arquitetos.
"Pareciam, na verdade, n�o serem cores, mas a pr�pria pele (...) do fundo da garganta, se voc� olhasse com aten��o, dava para ver a batida do pulso", escreveu.
E concluiu: "Nesta obra de Leonardo havia um sorriso t�o agrad�vel que era algo mais divino do que humano de se contemplar, e foi considerado algo maravilhoso, no sentido de que era algo vivo".
O fascinante mist�rio do sorriso de Mona Lisa e como Leonardo magicamente o aproveitou para criar "algo mais divino do que humano" e ainda "nada mais e nada menos do que vivo" acabaria sendo muito intenso para muitos.
Alfred Dumesnil, cr�tico de arte franc�s do s�culo 19, confessou achar o paradoxo da pintura completamente paralisante.
Em 1854, ele afirmou que o "sorriso � cheio de atrativos, mas � a atra��o trai�oeira de uma alma doente que retrata a loucura".
"Este olhar, t�o suave mas ganancioso como o mar, devora."

Se for para acreditar na lenda, a "atra��o trai�oeira" do sorriso insol�vel da Mona Lisa tamb�m consumiu a alma de um aspirante a artista franc�s chamado Luc Maspero.
De acordo com o mito popular, Maspero, que supostamente terminou seus dias se jogando da janela de seu quarto de hotel em Paris, foi levado a uma distra��o destrutiva pelos sussurros mudos dos l�bios extasiados de Mona Lisa.
"Durante anos lutei desesperadamente com seu sorriso", ele teria escrito no bilhete que deixou para tr�s. "Prefiro morrer."
M�os e p�lpebras
No entanto, nem todo mundo se contentou em localizar o centro da m�stica magnetizante da Mona Lisa em seu sorriso enigm�tico.
O escritor vitoriano Walter Pater acredita que � a "delicadeza" com que suas m�os e p�lpebras foram pintadas que nos paralisa e nos hipnotiza para que acreditemos no poder sobrenatural da obra.
"Todos n�s conhecemos o rosto e as m�os da figura", observou ele em um artigo sobre Da Vinci em 1869, "naquele c�rculo de pedras fant�sticas, como em uma luz fraca sob o mar."
Pater passa a meditar sobre a Mona Lisa de maneira singularmente intensa. Em 1936, o poeta irland�s William Butler Yeats usou em um poema uma frase da descri��o de Pater, dividindo-a em versos livres.
A passagem que Yeats n�o pode deixar de responder come�a assim: "� mais antigo do que as rochas em que se senta; como o vampiro, morreu muitas vezes e aprendeu os segredos da tumba; mergulhou em mares profundos e guarda seus �ltimos dias ao seu redor; ela traficou atrav�s de redes estranhas com mercadores orientais e, como Leda, ela era a m�e de Helena de Tr�ia, e, como Santa Ana, a m�e de Maria; e tudo isso era para ela como um sonar de liras e flautas."

O retrato "vive", conclui Pater, "na delicadeza com que moldou os tra�os mut�veis %u200B%u200Be tingiu as p�lpebras e as m�os".
A descri��o de Pater ainda surpreende. Ao contr�rio de Dumesnil e do infeliz Maspero antes dele, Pater v� al�m da armadilha sedutora do sorriso do retrato.
A pintura est� fixada em uma vitalidade maior que se infiltra nas profundezas da superf�cie.
Ao argumentar que a pintura representa uma figura suspensa em um vaiv�m incessante entre o aqui e agora e algum reino de outro mundo, Pater aponta para a ess�ncia m�stica do apelo perene da pintura: seu senso surreal de fluxo eterno.
Como Vasari, Pater testemunha uma presen�a pulsante e transpirante — "caracter�sticas mut�veis" — que transcende a materialidade inerte do retrato.
A �gua
A chave para a for�a da linguagem de Pater � a insist�ncia em imagens aqu�ticas que refor�am a fluidez do ser elusivo da modelo ("luz fraca no fundo do mar", "submerso em mares profundos" e "traficado... com mercadores orientais"), como se a Mona Lisa fosse uma fonte viva e inesgot�vel de �gua, uma ondula��o sem fim nos redemoinhos intermin�veis %u200B%u200Bdo tempo.
Talvez seja. H� raz�es para pensar que tal leitura, que v� a modelo como fonte de eterno ressurgimento que muda de forma, � exatamente o que Leonardo pretendia.
Flanqueado em ambos os lados por corpos d'�gua fluentes e que o artista habilmente posiciona de forma a sugerir que s�o aspectos da personalidade da modelo, o tema de Da Vinci tem uma qualidade estranhamente subaqu�tica que � acentuada pelo vestido verde-alga.
A Mona Lisa usa uma segunda pele de anf�bio que se torna mais e mais escura com o tempo.
A cadeira
Virando ligeiramente o olhar para a esquerda, � poss�vel ver que Mona Lisa n�o est� sentada em um banquinho qualquer, mas no que � popularmente conhecido como cadeira pozzetto.
Significando "pequeno po�o", o pozzetto introduz um simbolismo sutil na narrativa que � t�o revelador quanto inesperado.

De repente, as �guas que vemos serpenteando em um movimento labir�ntico atr�s da Mona Lisa (sejam elas de uma paisagem real, como o vale do rio italiano Arno, como alguns historiadores acreditam, ou inteiramente imagin�rias, como outros argumentam) n�o s�o mais est�o distantes e desconectados da modelo, mas um recurso essencial que sustenta sua exist�ncia. Eles literalmente fluem para ela.
Ao colocar a Mona Lisa dentro de um "pequeno po�o", Da Vinci a transforma em uma dimens�o sempre flutuante do universo f�sico que ela ocupa.
Martin Kemp, historiador da arte e importante especialista em Da Vinci, tamb�m detectou uma conex�o fundamental entre a representa��o da Mona Lisa e a geologia do mundo em que ela habita.
"O artista n�o estava literalmente retratando o Arno pr�-hist�rico ou o futuro", afirma Kemp em um estudo sobre o artista, "mas estava moldando a paisagem da Mona Lisa com base no que havia aprendido sobre a mudan�a no 'corpo da Terra' para acompanhar as transforma��es impl�citas no corpo da mulher como mundo menor ou microcosmo".
A Mona Lisa n�o est� sentada diante de uma paisagem. Ela � a paisagem.
O significado do po�o
Como acontece com todos os s�mbolos visuais usados %u200B%u200Bpor Leonardo, a cadeira pozzetto � multivalente e serve mais do que simplesmente uma liga��o entre Mona Lisa e o conhecido fasc�nio do artista pelas for�as hidrol�gicas que moldam a Terra.
A sugest�o sutil de um "pequeno buraco" na pintura como o canal atrav�s do qual a Mona Lisa emerge � consci�ncia reposiciona completamente a pintura no discurso cultural.

Este n�o � mais apenas um retrato secular, mas algo espiritualmente mais complexo.
As representa��es de mulheres "junto ao po�o" s�o um marco na hist�ria da arte ocidental.
As hist�rias do Antigo Testamento de Eliezer encontrando Rebecca em um po�o e Jacob com Rachel no po�o se tornaram especialmente populares nos s�culos 17, 18 e 19.
Al�m disso, as representa��es ap�crifas da Anuncia��o no Novo Testamento (o momento em que o arcanjo Gabriel informa � Virgem Maria que ela dar� � luz a Cristo) ao lado de uma fonte eram comuns entre os ilustradores de manuscritos medievais e podem at� ter inspirado o retrato mais antigo de Maria.
Como um emblema infinitamente el�stico, como sugere Walter Pater, a Mona Lisa � certamente capaz de absorver e refletir todas essas resson�ncias e muito mais. N�o h� ningu�m al�m dela.

'�gua Viva'
Mas talvez o paralelo mais pertinente entre a Mona Lisa de Da Vinci e os precursores pict�ricos seja aquele que pode ser tra�ado com as muitas representa��es de um epis�dio b�blico em que Jesus se encontra em um po�o, tendo uma conversa enigm�tica com uma mulher samaritana.
No Evangelho de S�o Jo�o, Jesus faz uma distin��o entre a �gua que pode ser tirada da nascente natural e a "�gua viva" que ele pode fornecer.
Enquanto a �gua de um po�o s� pode sustentar um corpo perec�vel, a "�gua viva" � capaz de saciar o esp�rito eterno.
As representa��es not�veis %u200B%u200Bda cena pelo pintor italiano medieval Duccio di Buoninsegna e pelo mestre renascentista alem�o Lucas Cranach, o Velho, tendem a colocar Jesus diretamente na parede do po�o, sugerindo seu dom�nio sobre os elementos fugazes deste mundo.
No entanto, ao colocar seu modelo metaforicamente no po�o, Da Vinci confunde a tradi��o e sugere, em vez disso, uma fus�o dos reinos material e espiritual, um borr�o do aqui e do al�m, em um plano compartilhado de cria��o eterna.
Na emocionante narrativa de Da Vinci, a pr�pria Mona Lisa � uma onda milagrosa de "�gua viva", serenamente contente por estar ciente de seu pr�prio infinito intenso.
Leia o texto original no site da BBC Culture.
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