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Estado de Minas LITERATURA

Jos� Saramago segundo Mia Couto: mo�ambicano comenta obra do portugu�s

Escritor abre a edi��o 2021 do projeto 'Letra em cena' nesta ter�a (9/03). Ele falou ao 'Estado de Minas' sobre literatura, a pandemia e como foi ter COVID-19


07/03/2021 04:00 - atualizado 07/03/2021 10:02


O que dizer sobre Jos� Saramago (1922-2010)? Certamente h� muito o que ser dito, ainda mais quando o mais importante escritor mo�ambicano da atualidade � quem vai falar sobre o maior autor portugu�s do s�culo 20. Mas Mia Couto se at�m a uma passagem que diz muito mais do homem do que do escritor. E que dialoga diretamente com os tempos de hoje.

Vinte anos atr�s, uma viagem de Saramago a Maputo para divulgar o livro “A caverna” coincidiu com uma inunda��o que matou mil pessoas e destruiu um hospital. O Nobel portugu�s telefonou para Couto e perguntou o que era poss�vel fazer. A hist�ria, que o autor de “O �ltimo voo do flamingo” detalha na entrevista a seguir ao Estado de Minas, culminou com Levantado do Ch�o, nome escolhido em refer�ncia a um dos romances fundamentais de Saramago.

Mia Couto abre na pr�xima ter�a-feira (9/03), a temporada 2021 do projeto “Letra em cena on-line”, promovido pelo Minas T�nis Clube. Ele � o convidado do jornalista Jos� Eduardo Gon�alves para falar sobre Saramago – � do mo�ambicano, inclusive, a caligrafia da capa da nova edi��o brasileira de “Levantado do ch�o”, lan�ada no ano passado pela Companhia das Letras. N�o faltar�o hist�rias e est�rias de um “homem corajoso e solid�rio que nele se misturava com o grande escritor”.

Como o senhor descobriu Jos� Saramago? 
Fui descobrindo Saramago � medida que ele se descobria a si mesmo. Comecei pela poesia (que ainda n�o creio ter sido publicada no Brasil). Depois, li um livro de cr�nicas intitulado “A bagagem do viajante”. A seguir, foi a vez do romance “Levantado do ch�o”, quando Saramago estava ainda vinculado a uma escrita de pendor realista. Mais tarde, descobri os livros em que o escritor j� se afirma no seu estilo mais conhecido, com o trabalho de linguagem e tem�tico que o consagrou.

H� quem relacione “Ensaio sobre a cegueira” e “O �ltimo voo do flamingo” pela utiliza��o de elementos da literatura fant�stica como met�fora pol�tica. O senhor v� pontos em comum nos romances?
� poss�vel que existam pontos comuns. O “Ensaio sobre a cegueira” remete para uma inaptid�o interior, a incapacidade de ver os outros, a dificuldade de contemplar a nossa pr�pria interioridade. O meu romance fala de uma na��o inteira que desapareceu, de um ch�o que se afundou porque passou a ser governado por gente que n�o amava a sua pr�pria terra nem a sua gente. Mas os livros s�o absolutamente distintos, quer do ponto de vista formal, de linguagem e de constru��o narrativa.

Vinte anos atr�s, o senhor e Saramago estrearam na literatura para crian�as. A partir de “O gato e o escuro”, o senhor publicou outros livros para o p�blico infantil. O que um escritor pode aprender ao escrever para os pequenos?   
Nunca me sinto a escrever para os pequenos. Escrevo uma hist�ria que depois algu�m diz que se trata de uma hist�ria infantil. Mas tem que estar ali a mesma verdade, a mesma recusa de simplifica��o, a mesma cren�a de que ser crian�a nada tem a ver com alguma menor capacidade de entendimento.

Qual seu romance preferido de Saramago?
“Ensaio sobre a cegueira”. Pela for�a, conten��o e pelo reconhecimento de uma condi��o humana que se mant�m cada vez mais atual. O confinamento que vivemos faz-me lembrar mais vezes o “Ensaio” do que “A peste”, de Albert Camus.

Como foi a passagem de Saramago por Mo�ambique e o que ela representou?
Saramago veio em 2001 a Maputo para lan�ar o seu livro “A caverna”. Sucedeu num momento em que o jornalista Carlos Cardoso acabava de ser assassinado a tiro por for�as do crime organizado. Logo no aeroporto, Jos� Saramago mudou imediatamente o prop�sito da sua visita. A literatura deu lugar � milit�ncia solid�ria. N�o creio que ele tivesse falado muito do seu livro. Mas falou, e muito, do jornalismo amea�ado, da liberdade de imprensa e apontou corajosamente o dedo para uma poss�vel coniv�ncia entre gente do poder e aquele b�rbaro assassinato. Esse era o homem corajoso e solid�rio que nele se misturava com o grande escritor. A sua visita coincidiu tamb�m com uma grande inunda��o do Rio Limpopo que matou mil pessoas e obrigou ao deslocamento de 2 milh�es de pessoas. Saramago assumiu ele mesmo a reconstru��o de um pequeno hospital que tinha sido arrancado pela f�ria das �guas. Esse hospital foi reconstru�do gra�as a sua contribui��o financeira e levou o nome de um dos seus livros: Levantado do Ch�o. Recordo de ele me ter telefonado logo quando a trag�dia das cheias se tornou conhecida. N�o me confortou, n�o fez uso de uma mensagem feita de palavras. Com o seu tom seco, sentenciou: “Diz-me o que voc�s precisam”. Recordei-me daquela unidade de sa�de porque era a �nica que servia uma grande regi�o de camponeses pobres. No dia seguinte, Saramago tinha transferido um valor monet�rio que n�o apenas serviu para reerguer o centro de sa�de como criou fundos para que ele funcionasse durante os primeiros cinco anos.

Em dezembro de 2020, o senhor recebeu seu mais recente pr�mio, o Jan Michalski. O que pr�mios – Cam�es, Uni�o Latina, Eduardo Louren�o, entre outros que j� lhe foram atribu�dos– significam para o senhor? 
Os pr�mios s�o para mim um feliz acidente. N�o mais do que isso. Admito, contudo, que para o caso de uma na��o como a mo�ambicana eles podem ser mais do que um caso pessoal. E n�o � porque sejam meus, qualquer outro artista mo�ambicano produz o mesmo efeito: h� um pa�s remoto, desconhecido (ou pior, que se conhece apenas como v�tima) que se constr�i com a mesma dignidade humana que qualquer outro.

Qual o papel da literatura para um pa�s reconhecer a si mesmo?
No caso de Mo�ambique, a literatura pode ajudar a reconciliarmo-nos com um passado traum�tico, com guerras recentes que criaram divis�es e �dios e produziram uma vis�o manique�sta da nossa pr�pria sociedade. Esta na��o est� ainda em busca de pontos comuns que costurem identidades hist�ricas diversas. A cria��o de uma na��o consiste, de algum modo, numa constru��o ficcional. O grande risco � que os vencedores s�o os �nicos autores dessa narrativa que se torna empobrecida. Os escritores podem ajudar a revisitar o passado sem ressentimentos nem ganhos partid�rios, a descobrir pelas suas est�rias diferentes o quanto a Hist�ria dos mo�ambicanos � um mosaico de luzes e cores.

O senhor sente o peso de representar a literatura de um pa�s?
Nenhum escritor pode assumir que representa alguma coisa que n�o seja o seu pr�prio sentimento do mundo. Mas, como disse atr�s, � dif�cil escapar � injusti�a do desconhecimento e preconceito que pesam sobre a �frica, em geral, e sobre Mo�ambique, em particular. E n�o quero escapar a assumir-me, entre muitos outros escritores africanos, um embaixador desse patrim�nio vivo e diverso.

De que maneira a pandemia, em que a realidade nos engole, afeta a fic��o?
De v�rias maneiras. A literatura n�o nasce apenas da literatura e dos livros. Nasce da vida cotidiana, dos encontros e desencontros cotidianos (lembro os versos de Vinicius). A literatura nasce da presen�a viva e vivificante do Outro. N�o � apenas o isolamento f�sico que nos limita. � sobretudo a cria��o de uma obsess�o coletiva e permanente, uma narrativa �nica feita de medo, solid�o e desespero. Hoje n�o existe outro assunto. Os notici�rios, as conversas, os sil�ncios: todos falam da doen�a e da morte. Aprisionaram a esperan�a, encarceram o desejo tel�rico de encontrar e abra�ar os outros. � verdade que, por vezes, esse peso pode suscitar uma resposta de resist�ncia criativa que contrarie esta muralha. Isso acontece com certeza porque � isso que nos faz ser humanos: superar pela imagina��o a nossa pr�pria fragilidade. Mas creio que o balan�o geral � sombrio. A vacina com que sonhamos �, mais do que uma inje��o no bra�o, poder abra�ar, viajar pelos outros que somos todos n�s.

O senhor teve COVID-19 no in�cio deste ano. Como lidou com a doen�a, f�sica e mentalmente?
Foram dias de medo. Um medo profundo que me roubava o sono e me corro�a a falsa tranquilidade que transmitia entre a fam�lia. Morriam, � minha volta, colegas e amigos. Morriam num ambiente hospitalar in�spito, solit�rio e sem a possibilidade de reconhecer um rosto, uma voz conhecida. E havia casos de gente que morria sem ter lugar num hospital. Entre esses dois pesadelos eu preferia n�o ter lugar no hospital. Ficava do lado de fora dessa pris�o ass�ptica, onde circulavam fantasmas e onde n�o se sabe se � dia ou se � noite. Era assim que eu sonhava. A eventualidade de uma hospitaliza��o atemorizava-me mais por esse cen�rio do que pela doen�a em si. A presen�a de quem se ama, sobretudo num momento de sofrimento, d�-nos uma respira��o t�o vital como a garrafa de oxig�nio. Felizmente, o meu caso foi ligeiro. O medo foi o meu maior sintoma.

LETRA EM CENA ON-LINE
Mia Couto fala sobre Jos� Saramago. 
Nesta ter�a-feira (9/03), �s 20h, no canal do MTC no YouTube


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