Minas se esquece de Autran Dourado, que dedicou sua obra � alma mineira
Autor de '�pera dos mortos' n�o recebe a merecida aten��o em seu estado, ao contr�rio de Drummond, Rubi�o, Nava e outros escritores de sua gera��o
Autran Dourado gostava de dizer que sua obra � um extenso painel de Minas Gerais (foto: Acervo Pessoal)
'Vivo para entender Minas Gerais, a sua loucura. O dia em que entend�-la, paro de escrever, quer dizer - nunca'
Autran Dourado, escritor
Por onde anda Autran Dourado? Com certeza, n�o � pelas ruas de Belo Horizonte.
Quem anda pela capital mineira pode se sentar ao lado da est�tua de Carlos Drummond de Andrade; ter um encontro marcado com Fernando Sabino, Otto Lara Resende, H�lio Pellegrino e Paulo Mendes Campos; ou ter uma conversa com Guimar�es Rosa, Henriqueta Lisboa, Pedro Nava, Roberto Drummond, Murilo Rubi�o.
Circular pelos caminhos da Linha Verde � tamb�m a certeza de se deparar com viadutos que ostentam os nomes desses e de outros escritores mineiros. Mas ningu�m ver� qualquer monumento em homenagem ao escritor Autran Dourado.
A aus�ncia do escritor pelas ruas de BH se torna curiosa quando se pensa em uma figura p�blica t�o atuante. O dia era 17 de dezembro de 1990. Autran, que contava com quase 65 anos, j� era um dos escritores mais reconhecidos de sua gera��o, tendo recebido diversos pr�mios nos anos 1970 e 1980, entre os quais o Pr�mio Goethe de Literatura, em 1982.
Mas isso n�o era o suficiente para que ele se acomodasse. Naquele dia de dezembro, o autor enviava uma carta ao ent�o senador Fernando Henrique Cardoso acusando de “um crime contra o idioma brasileiro” o Acordo Ortogr�fico que estava em vias de ser votado pelo Congresso. E declarava: “Literatura � palavra carregada de sentido, � ela que renova e vivifica a l�ngua e d� express�o a um povo. Um povo sem express�o pr�pria n�o existe”.
O escritor em Petr�polis, em 1978, ano de lan�amento do volume de novelas 'Armas e cora��es' (foto: acervo pessoal)
UFMG
Esse � um dos muitos documentos que integram o esp�lio do escritor, que foi incorporado ao Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais em 2017. Trata-se de um rico conjunto de documentos: pesquisas hist�ricas usadas na composi��o dos livros, esquemas das futuras narrativas, diversos artigos publicados em jornais e revistas, cartas trocadas com v�rios escritores de renome do Brasil. S�o arquivos em que se tornam vis�veis as m�ltiplas faces do autor e a sua viva atua��o p�blica.
Mas essa aus�ncia de Autran pelas paisagens belo-horizontinas surpreende principalmente se nos lembrarmos de que ele talvez tenha sido o autor que escreveu de modo mais sistematizado sobre Minas Gerais. S�o quase 30 livros que, com poucas exce��es, narram a hist�ria mineira desde o Ciclo do Ouro at� meados do s�culo passado.
Nesse conjunto, h� livros, como “Os sinos da agonia”, ambientados em cen�rios rurais e escravocratas. Ou t�tulos como “Um artista aprendiz”, que tratam do cen�rio moderno e urbano de Belo Horizonte, com os encontros bo�mios dos aspirantes a intelectuais (incluindo a boemia bem comportada do grupo de amigos de Autran na Leiteria Celeste).
Certo, um leitor interessado poderia encontrar alguma das v�rias entrevistas em que Autran afirmava que as leituras sociol�gicas de seus livros n�o eram as que mais o empolgavam, preferindo as interpreta��es m�ticas ou a an�lise da organiza��o formal das narrativas. Mas, como ele mesmo dizia, essa era uma estrat�gia por meio da qual ele jogava com o leitor, velando e desvelando os caminhos de sua obra. Ele � um autor de muitas faces e, por isso mesmo, uma nunca apaga a outra.
Em carta a Raimundo Carrero, ele revela de modo taxativo essa obsess�o por Minas: “Vivo para entender Minas Gerais, a sua loucura. O dia em que entend�-la, paro de escrever, quer dizer – nunca”. � por isso que ele repete em v�rias cartas, entrevistas e artigos de jornais que toda sua obra � “um grande painel de Minas”.
Olhar para o arquivo de Autran Dourado, portanto, � enxergar em sua obra e em suas personas p�blicas um vasto arquivo de Minas Gerais. � um arquivo que se atualiza no presente e nos ajuda a pensar a identidade cultural sem cair no simplismo de certos discursos nacionalistas encampados pela pol�tica atual.
Tendo atuado como secret�rio de Imprensa da Presid�ncia do governo Juscelino Kubitschek, o autor tinha uma vis�o cr�tica dos processos pol�ticos mineiros que, ao fim, eram assuntos da pol�tica nacional. Seus livros “Gaiola aberta” e “A servi�o del-rei” s�o narrativas constru�das a partir das mem�rias do per�odo em que atuou junto � Presid�ncia. Quanto ao �ltimo, o narrador Jo�o Fonseca Nogueira apresenta o perfil de um presidente aparentemente simpl�rio, mas que, exatamente por isso, � uma figura perigosa e sedenta de poder.
ALEGORIA
Mas, em correspond�ncias com amigos, Autran chama a aten��o: “'A servi�o del-rei' n�o � um romance sobre Juscelino, � uma grande alegoria sobre a pol�tica brasileira.” � por esse teor pol�tico que, em 1974, a Editora Express�o e Cultura precisou juntar uma nota � primeira edi��o de “Os sinos da agonia”, dizendo que a hist�ria se passava no s�culo 18, como forma de driblar a censura. “A editora tinha medo, justificado, de que a minha hist�ria pudesse ser tomada como ap�logo ou met�fora (e � isso mesmo! Basta saber ler) sobre o absolutismo e o autoritarismo”, explicava o autor em carta a Gilberto Mansur.
O romance “Lucas Proc�pio” � emblem�tico quando trata desse tema. Dividido em dois blocos, a primeira parte, intitulada “Pessoa”, narra a peregrina��o de Lucas Proc�pio Hon�rio Cota por Minas Gerais, uma figura ing�nua e quixotesca. Por�m, ao final dessa primeira parte, ele � morto por seu companheiro de viagem, Pedro Chaves.
Assim, no segundo bloco, intitulado “Persona”, o assassino se passa por Lucas Proc�pio, tomando posse de suas propriedades e se tornando uma figura autorit�ria. Em tempos de um Brasil atual, a obra de Autran sinaliza o risco de que m�scaras sociais consideradas inofensivas na sua defesa de idealismos simplistas e ris�veis possam se converter em personagens autorit�rias, violentas e perigosas.
Esse autor sem est�tuas ou bustos que o homenageiem aborda justamente esse tema no in�cio do livro “Um cavalheiro de antigamente”. Nele, logo ap�s a morte de Lucas Proc�pio, � feita uma m�scara mortu�ria do violento homem, sem que ningu�m saiba quem encomendou o servi�o. Nesse momento, o personagem Vitor Maced�nio especula com seu amigo Jo�o Capistrano Hon�rio Cota, filho de Lucas Proc�pio: “Com certeza � pra mandar fazer um busto dele”, disse Vitor. “Seu pai foi um grande homem, chefe do Partido Republicano Mineiro”. N�o � preciso ressaltar o acento ir�nico dessa passagem, que parece questionar quem � lembrado e por quais motivos.
RU�NAS
Mas � tamb�m dos processos de esquecimento que tratam as narrativas do escritor. O romance “�pera dos mortos” narra a hist�ria de Rosalina Hon�rio Cota, neta de Lucas Proc�pio e �ltima representante da decadente fam�lia patriarcal mineira. Ao longo do livro, a descri��o das ru�nas do sobrado onde vivia a fam�lia Hon�rio Cota ou o espanto causado pelas vo�orocas que engoliam a cidade m�tica de Duas Pontes s�o met�foras poderosas desse processo de eros�o do tempo que pode levar ao esquecimento mesmo de figuras ou de fam�lias poderosas.
E Rosalina, mulher solit�ria e amargurada, personifica os rostos invisibilizados. Situada no espa�o entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, ela permanece todo o livro trancafiada no sobrado da fam�lia, observando o mundo de sua janela, sem que a cidade possa ver sua face. Assim como Eur�dice, Rosalina � o rosto que est� sempre l�, mas nunca pode ser visto.
A obra de Autran Dourado trata de temas diversos: a pol�tica, a viol�ncia, a loucura, a morte, a solid�o, o desejo. Mas trata tamb�m do processo de esquecimento a que tudo est� sujeito, inclusive o pr�prio escritor. Haver� em algum momento uma est�tua sua? Seria um gesto de reconhecimento ao autor, respons�vel por uma escrita densa sobre Minas Gerais. Por�m, isso depende de fatores complexos, inclusive pol�ticos. O que sabemos � que hoje s�o seus livros que presentificam sua ef�gie. Brincando com as palavras de Gustave Flaubert, Autran gostava de falar: Rosalina c’est moi. Rosalina � ele: um rosto que pode ser pressentido, mas n�o visto.
O ano de 2020 foi o momento em que se celebraram os 300 anos de Minas Gerais. E foi tamb�m o ano em que a pandemia de COVID-19 se instalou no Brasil e que, por isso, muitos de n�s tivemos nossos sofrimentos pessoais invisibilizados, al�m de sermos cerceados do contato com a dor do outro. Um ano em que todos fomos Rosalina: observ�vamos o mundo de nossas janelas, sem poder dar a ver nossos rostos. Talvez neste momento as obras de Autran Dourado nos ajudem a refletir: quais ser�o as Minas esquecidas nesses 300 anos?.
*Jonatas Guimar�es � professor de literatura e letras no Instituto Federal do Tri�ngulo Mineiro e estuda a obra de Autran Dourado em sua pesquisa de doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais