Novo livro de Lionel Shriver mostra os EUA dominados por mexicanos

Hist�rias ambientadas no futuro s�o sobre os medos que as pessoas t�m no presente, n�o t�m nada a ver com o futuro. � o que diz, a certo momento, um dos personagens de “A fam�lia Mandible – 2029-2047” (Intr�nseca), romance de Lionel Shriver. 

A observa��o vale tanto para as narrativas de George Orwell (1903-1950), ainda neste 2021 figurando na lista dos livros mais vendidos, 70 anos ap�s a morte de seu autor, quanto na pr�pria distopia criada pela autora norte-americana. 

Shriver nunca se valeu da condescend�ncia em sua obra. Cr�tica do status quo de seu pa�s, celebrizou-se com “Precisamos falar sobre o Kevin” (2003), que espantou o mundo ao tratar de massacres em escolas, gerando o filme hom�nimo, ao mesmo tempo espetacular e terr�vel (daqueles que mesmerizam o espectador, mas que n�o se deve assistir uma segunda vez). Tratou de obesidade m�rbida em “Grande irm�o” (2013) e do sistema de sa�de nos EUA em “Tempo � dinheiro” (2010). Sua obra � tudo, menos escapista. 

“A fam�lia Mandible”, 13º. romance de Shriver, acabou de ser lan�ado no Brasil. Chega com um atraso de cinco anos, j� que saiu no mercado de l�ngua inglesa em 2016. � relevante destacar esta marca temporal, porque, naquele momento, os EUA estavam vivendo a ascens�o trumpista. 

Donald Trump s� foi nomeado oficialmente o candidato republicano � Presid�ncia dos EUA em 19 de julho daquele ano. “A fam�lia Mandible” foi lan�ado meses antes. Mesmo que desde 2015, quando se tornou pr�-candidato, j� falasse de um muro dividindo os EUA e o M�xico, sua constru��o s� teve in�cio em 2019. 

Pois na hist�ria criada por Shriver, um muro dividiu os EUA do M�xico. S� que foi criado pelos mexicanos, agora a popula��o �tnica dominante, que n�o queria uma invas�o norte-americana em seu territ�rio. No mundo imaginado pela escritora, os EUA est�o em ru�na. Um s�culo ap�s a Grande Depress�o, a antiga superpot�ncia est� em frangalhos. 

Com a economia colapsada, � a China, com os demais pa�ses asi�ticos a reboque, quem manda no mundo. O d�lar n�o vale nada (est� sendo substitu�do pelo bancor, uma moeda internacional), o e-commerce acabou (a Amazon inclusive pediu fal�ncia), assim como a imprensa (“The New York Times” e todos os tradicionais jornais n�o existem mais). Em 2029,  um repolho custa US$ 20 (R$ 110) e, nos meses seguintes, com a infla��o galopante, deve dobrar de pre�o.

� este o cen�rio em que vivem milh�es de americanos. Entre eles est�o quatro gera��es dos Mandible, fam�lia cujos descendentes s� aguardam o patriarca, o nonagen�rio Douglas Mandible, bater as botas para que os descendentes possam colocar as m�os nas propriedades, investimentos e em toda a sorte de riquezas que o idoso sempre delegou, com alguma parcim�nia, aos mais novos.

S� que ningu�m contava com que o novo presidente dos EUA, o mexicano Dante Alvarado (uma mudan�a na Constitui��o permitiu que imigrantes se tornassem eleg�veis ao cargo), colocasse o pa�s em um estado de guerra fiscal. Todas as reservas de ouro (incluindo as alian�as de casamento) s�o confiscadas pelo governo. Ningu�m pode deixar o pa�s com mais de US$ 100. E pior: todos os t�tulos do Tesouro s�o anulados. Resumindo: do dia para a noite, os Mandible se veem sem nada.

Lionel Shriver desenha este cen�rio na parte inicial da narrativa (o livro � dividido em duas partes; uma em 2029 e outra em 2047), com longas tergiversa��es sobre quest�es econ�micas S�o um pouco ma�antes no come�o, mas logo d�o lugar a uma trama familiar que vai se emaranhando conforme a ru�na financeira avan�a.

At� a quebradeira geral, Douglas, um antigo editor de prest�gio (livros em papel n�o valem absolutamente nada agora) vive numa casa de repouso de luxo com Luella, sua segunda mulher, insuportavelmente senil. 

Seu filho Carter, um jornalista sessent�o, se ressente do tratamento descuidado que o pai sempre lhe deu, contrariamente ao que recebeu sua irm� Enola, uma escritora que se radicou em Paris depois de escrever um romance de sucesso que descrevia os podres dos Mandible.

Carter e sua mulher, a passiva Jayne, tiveram tr�s filhos: Florence, a abnegada, que sempre negou o peso de ser uma Mandible e se tornou funcion�ria de uma institui��o para sem-teto no Brooklyn (� m�e solteira de Willing e namorada do descendente de mexicanos Esteban); Avery, a f�til, uma terapeuta casada com o professor de economia Lowell, pais de tr�s adolescentes que t�m uma vida para l� de confort�vel em Washington; e Jarred, o ca�ula, que leva uma vida � margem e s� se faz presente na parte final da narrativa. � o adolescente Willing, que come�a como um coadjuvante de peso, que vai ganhando o protagonismo da hist�ria.

Com a fam�lia em ru�nas, essas pessoas se veem obrigadas a viver juntas. E a conviv�ncia � somente por sobreviv�ncia, porque a pobreza s� tende a crescer e n�o h� perspectiva para ningu�m. Sem �gua, comida, espa�o, trabalho e dinheiro suficientes, as tens�es aumentam, os valores se distorcem. Roubo, prostitui��o, mentira, tudo � v�lido e poss�vel.

O retrato � deveras aterrador – e o atraso com que o romance chega ao Brasil n�o interfere em sua leitura, pois muito se relaciona tamb�m com a crise mundial acarretada pela pandemia do novo coronav�rus. Lionel Shriver prende o leitor por meio de uma escrita fluida, di�logos inteligentes e bastante ironia. N�o h� como n�o dar um meio sorriso ao ler que em uma liga��o telef�nica se deve pressionar “um para espanhol e dois para ingl�s”. 

.De Lionel Shriver

.Intr�nseca (448 p�gs.)

.R$ 64,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)