
Logo na primeira cena, tr�s crian�as brincam de pega-pega no parque. Alcan�ada pelo advers�rio, a garotinha se enfurece e reage com for�a sobrenatural. O pai a repreende. A menina se defende, dizendo que o garoto “� o cara mau, e temos que pegar os caras maus”. Ele contesta, argumentando que a filha deveria se importar com as pessoas, acima de tudo. E completa: “Embora seja f�cil machucar pessoas, ficar com raiva e at� mat�-las, os caras maus tamb�m s�o pessoas e o certo seria det�-los e prend�-los”.
O fato de a menina usar superpoderes para reagir ao garoto e o pai aparecer voando, de capa vermelha, j� deixa claro que se trata de nova trama de super-her�is. Contudo, o di�logo inicial mostra tamb�m que a s�rie “O legado de J�piter” pretende inserir a fantasia no contexto social bastante urgente e real deste mundo em que as for�as do Estado seguem matando civis em nome da seguran�a p�blica.

LACUNA Lan�ada na sexta-feira (7/5), a produ��o da Netflix aproveita a lacuna de grandes estreias de super-her�is famosos para tentar emplacar novos personagens. A trama adapta a hist�ria em quadrinhos hom�nima criada por Mark Millar. Publicada em 2013, essa HQ oferece boa base para a abordagem proposta pelo seriado.
O escoc�s, de 51 anos, � um dos quadrinistas mais cultuados do mundo, embora criticado por alguns grupos. Dono de seu pr�prio selo, o Millarworld, Mark j� teve outras cria��es transportadas para a tela. � o caso de Kick-Ass, que deu origem ao filme “Kick-Ass – Quebrando tudo”, de 2010, e Kingsman, que virou trilogia cinematogr�fica.

Com doses de sarcasmo e viol�ncia, as hist�rias de Millar trazem os her�icos protagonistas em vers�es mais humanizadas e longe do glamour, explorando o cotidiano corriqueiro deles. Isso ocorre em “O legado de J�piter”, cujo centro das aten��es � Ut�pico, identidade assumida por Sheldon Sampson, papel do ator Josh Duhamel.
Capaz de voar como o Superman, com quem se assemelha tanto no vestu�rio quanto na incr�vel for�a, ele lidera a Uni�o da Justi�a. O esquadr�o de super-her�is e super-hero�nas tem a miss�o de proteger a Terra (mais especificamente, os Estados Unidos), atuando sob r�gido c�digo �tico. � expressamente proibido tirar a vida dos oponentes, por mais perigosos que eles sejam, e interferir na sociedade.
Ao mesmo tempo, Ut�pico � um paiz�o que curte cozinhar, tomar suas cervejas e preocupado com o futuro dos filhos, como j� fica claro na primeira cena. Herdeiros dos superpoderes paternos, Brandon (Andrew Horton) e Chloe (Elena Kampouris) enfrentam problemas ao iniciar a vida adulta.
O rapaz deseja seguir os passos do pai e atua como super-her�i em algumas miss�es. Por�m, sente-se pressionado por ainda n�o estar � altura da miss�o. � inseguro diante da desconfian�a de Ut�pico, que considera o filho impulsivo demais.
Por sua vez, a garota repudia a obriga��o familiar de proteger o mundo da a��o dos vil�es. Prefere investir na carreira de modelo fotogr�fico. Chloe n�o dosa sua rebeldia. Bebe, usa coca�na e tem �speros embates com o pai quando n�o consegue evit�-lo no conv�vio familiar.
Cenas como a de um jantar na resid�ncia dos Sampson – que acaba em clim�o depois de Chloe chegar b�bada e discutir com Sheldon, numa troca de clich�s sobre responsabilidades e deveres – s�o t�o ou mais frequentes do que os momentos de a��o e de combate.
Para variar, quem contemporiza � a m�e dos jovens, Grace Sampson (Leslie Bibb). E tamb�m o tio deles, Walter (Ben Daniels). Ambos t�m poderes extraordin�rios, atuando na Uni�o da Justi�a como Lady Liberdade e Onda Cerebral.
CONFLITO Ao contr�rio do irm�o Sheldon (Ut�pico), irredut�vel em rela��o aos princ�pios originais da Uni�o, Walter entende que o conflito geracional n�o � exclusivo da fam�lia. Na verdade, a primeira temporada destaca justamente o fato de os jovens superpoderosos defenderem outras formas de combate aos inimigos. Essa discuss�o fica ainda mais forte quando outros jovens super-her�is, amigos de Brandon, s�o mortos pelo vil�o Blackstar (Tyler Mane).
Ali�s, o conflito de gera��es vem de d�cadas atr�s. Um aspecto que a produ��o da Netflix incorporou da HQ original � a narrativa em duas linhas temporais. Uma no tempo presente e outra iniciada em 1929: Sheldon e Walter eram filhos de um magnata da ind�stria sider�rgica norte-americana quando a bolsa de Nova York quebrou e a crise econ�mica alastrou por todo o mundo.
Depois disso, o atordoado Sheldon viveu acontecimentos inusitados que o levaram � expedi��o ultramarina em uma ilha misteriosa, onde adquiriu poderes sobrenaturais por meio de um portal interdimensional. Entre eles, o envelhecimento desacelerado, motivo da jovialidade e de sua for�a f�sica no presente, apesar de ter mais de 100 anos.
Walter e Grace, que era jornalista, o acompanharam, adquirindo tamb�m superpoderes, assim como os outros tr�s integrantes da expedi��o. Um deles � George Hutchence (Matt Lanter). Melhor amigo de Sheldon, ele se tornou o primeiro a questionar o c�digo da Uni�o da Justi�a, voltando-se contra o grupo.
Isso tudo � contado em flashbacks ao longo dos oito primeiros epis�dios paralelamente aos conflitos vividos pelos personagens no presente. No tempo atual, a discuss�o sobre o modelo ideal de atua��o dos her�is cita momentos do passado.
LIMITE Em uma conversa, Walter lembra a Sheldon que poderiam ter evitado a Segunda Guerra Mundial, caso n�o fossem fi�is ao princ�pio de n�o intervir na trajet�ria da humanidade. Por isso, o questionamento da vez � sobre at� que ponto vale limitar a atua��o de indiv�duos t�o poderosos ao simples encarceramento de ladr�es de banco, enquanto perigos mortais amea�am o planeta.
Vale lembrar: no amplo e diverso fil�o das hist�rias de super-her�is, j� foram vistos muitos dos aspectos de “O legado de J�piter”. Batman e Superman tamb�m convivem dilemas sobre a forma mais �tica de combater o mal. � extensa a lista de produ��es cujos poderosos protagonistas vivem problemas semelhantes, caso da anima��o “Invincible” e do seriado “The Boys”, sucessos recentes lan�ados pelo Amazon Prime Video, servi�o de streaming concorrente da Netflix.
A ousadia de “O legado de J�piter” de abordar tantos elementos diferentes e ainda achar espa�o para violentas cenas de a��o em menos de oito horas de sua primeira temporada deve-se a Steven S. DeKnight. Criador da s�rie e diretor dos dois primeiros epis�dios, ele tem experi�ncia pr�via no g�nero. DeKnight cumpriu a mesma fun��o em “Demolidor”, outra tentativa da Netflix de emplacar uma s�rie de sucesso de super-her�is, com tr�s temporadas lan�adas entre 2015 e 2018.
O pr�prio Mark Millar admite a grandiloqu�ncia de sua cria��o. Em entrevista divulgada pela plataforma de streaming para marcar o lan�amento, o quadrinista diz que sua ambi��o ao escrever os volumes originais de “O legado de J�piter” era “criar a maior e melhor hist�ria de super-her�i de todos os tempos, um grande e independente ‘O senhor dos an�is’ ou ‘Game of thrones’ com super-her�is.”
Millar destacou que a trama “n�o � sobre pegar ladr�es de banco ou lutar contra um cientista do mal em tr�s atos”, mas “sobre crian�as que nunca pediram poderes querendo seguir seu pr�prio caminho e sobre os pais olhando para o mundo que deveriam salvar e vendo-o mais bagun�ado do que nunca”.
De acordo ele, uma s�rie com a abordagem de “O legado de J�piter” “seria imposs�vel h� 10 anos, mas agora o p�blico est� t�o familiarizado com tropas de super-her�is que j� est� pronto para ver essa enorme subvers�o”.
MISS�O Considerando as rea��es do p�blico ao seriado, os super-her�is ter�o a �rdua miss�o de emplacar a vers�o televisiva de “O legado de J�piter”.
Nas redes sociais, a produ��o recebeu muitos coment�rios negativos. Em sites internacionais que mensuram avalia��o de p�blico e cr�tica, as notas da primeira temporada n�o empolgam: 45/100, no Metacritic, e 69% de aprova��o no Rotten Tomatoes.
“Apesar de algumas lutas verdadeiramente �picas, ‘O legado de J�piter’ � muito sobrecarregada de detalhes e lenta para entregar grandes momentos narrativos”, apontou o Rotten Tomatoes.