
Duas figuras mitol�gicas que pelas diferen�as entre si tornam-se complementares s�o parte da discuss�o proposta por Nuno Ramos na exposi��o “Thoughts of dust”. Em cartaz na Celma Albuquerque Galeria de Arte, a mostra re�ne desenhos recentes produzidos entre o final do ano passado e o in�cio deste, que t�m os mitos de Ant�gona e Cassandra como fonte.
“Venho mantendo temas antigos. Cassandra traz a ideia da voz, de adivinhar o futuro, enquanto a Ant�gona traz a ideia de querer esconder algo do mundo, colocar debaixo da terra”, comenta o artista. O t�tulo da mostra remete aos “pensamentos de poeira” desta �ltima, filha de �dipo e Jocasta, que quer enterrar o irm�o, Polinice, desafiando uma ordem do rei, Creonte, que determinou que o corpo ficasse inse- pulto. A trag�dia � inevit�vel.
“A Ant�gona queria cobrir o corpo e meus desenhos t�m algo disso. Foram feitos de carv�o em p�, p� de grafite, p� do ch�o do ateli�. H� um pouco de tinta, mas � quase insignificante, pois o que busco � um certo arrastar do p�, tentando fazer a fus�o entre forma e conte�do”, explica Ramos.
Tamb�m escritor, dramaturgo e m�sico, Nuno Ramos acredita que o tempo do desenho � outro. “Cada coisa tem suas regras. Venho desenhando h� muitos anos e s�o obras razoavelmente r�pidas, ao contr�rio da pintura. Quando monto um sistema, eles tendem a sair mais rapidamente”, diz.
''A quest�o n�o � bem a pandemia, acho que estamos vivendo uma fus�o pol�tico-viral. � um filme de terror. Se tiv�ssemos uma administra��o boa, n�o digo boa, mas normal... A pandemia parece ter acelerado um projeto de morte, o sequestro do pa�s por um projeto pol�tico de pot�ncia destrutiva in�dita. Na verdade, hoje somos governados por um miliciano desqualificado, cujo maior discurso pol�tico foi o negacionismo''
Nuno Ramos, artista
V�DEO
Em uma “conversa” com o trabalho atual, a exposi��o ainda apresenta uma obra antiga do artista, o v�deo “Luz negra” (2002), realizado com Eduardo Climachauska. Com dura��o de 10 minutos, o trabalho mostra, em um extenso espa�o de terra, grandes caixas de som sendo enterradas. Enquanto s�o cobertas por terra, ouve-se a can��o “Ju�zo final”, de e com Nelson Cavaquinho.“O Nelson � um sambista pessimista, fala de morte e luto, e � atual�ssimo hoje. O que me atraiu nela foi a quest�o do enterro, de botar debaixo da terra. Voc� ouve a m�sica e ela sai abafada pelas camadas de terra, o que remete ao pensamento do p�, da poeira”, explica.
“Thoughts of dust” � a terceira individual de Nuno Ramos na Celma Albuquerque. E a primeira com trabalhos de pequeno porte. Em 2012, o artista realizou uma de suas instala��es mais impactantes. Em “Ai, pareciam eternas! (3 lamas)”, ele quebrou todo o espa�o t�rreo da galeria para receber, em escala real, as tr�s casas de sua vida (da inf�ncia, dos av�s e de um antigo ateli�). Os “im�veis”, produzidos de materiais diversos, eram tomados pela lama.
J� em 2016, ele realizou uma segunda exposi��o na galeria na Savassi. Na �poca, apresentou cinco obras de grandes dimens�es, trabalhos em que utilizou t�cnicas e materiais diversos, como cera de abelha, pigmentos, tecidos, pl�sticos e chapas de metal.

PERFORMANCE
Rec�m-vacinado, Ramos, de 61 anos, tem trabalhado intensamente durante a pandemia. Est� preparando duas performances, uma em S�o Paulo e outra em Porto Alegre, e lan�a, tamb�m neste ano, o livro, “Fooquedeu”, pela Editora Todavia. “� resultado de um di�rio cr�tico que publiquei por dois anos, 2016 e 2017, na revista Piau�. Ia ser lan�ado ano passado, mas foi adiado e acabei atualizando. Traz um pouco de di�rio, pequenos ensaios, devaneios e muitos coment�rios sobre a vida pol�tica.”Para ele, que a partir de junho de 2020 passou a trabalhar “mais do que antes”, o trabalho � uma forma de rea��o. “A quest�o n�o � bem a pandemia, acho que estamos vivendo uma fus�o pol�tico-viral. � um filme de terror. Se tiv�ssemos uma administra��o boa, n�o digo boa, mas normal... A pandemia parece ter acelerado um projeto de morte, o sequestro do pa�s por um projeto pol�tico de pot�ncia destrutiva in�dita. Na verdade, hoje somos governados por um miliciano desqualificado, cujo maior discurso pol�tico foi o negacionismo.”
Na opini�o do artista, estamos todos presos em um loop, “um pesadelo do qual n�o conseguimos acordar.” A fun��o do artista neste momento, segundo ele, � estar em movimento. “N�o � hora de fazer obra-prima, mas sim o que se d� conta pelas pr�prias dificuldades e pelo absurdo do cotidiano. � saber jogar mesmo em condi��es muito adversas.”
Na primeira fase da pandemia, ele ficou sozinho em seu ateli�. Mais recentemente, j� envolvido com performances que t�m uma rela��o com o teatro, passou a se encontrar com outros artistas. Em junho, vai apresentar no Instituto Ling, em Porto Alegre, performance que mistura transmiss�o ao vivo de vozes com interpreta��o. Outra prevista para S�o Paulo ele mant�m em segredo.
“Eu vou a Porto Alegre e n�o se sabe como a cidade estar� no per�odo (com atividades culturais abertas ou fechadas). Achamos que ter� pouco p�blico, mas, se n�o tiver, montamos um filme depois, fazemos um curta, retomamos presencialmente. Acho que temos que fazer o que d�, � como o t�tulo do livro, ‘Fooquedeu’. Se tiver 10 pessoas no p�blico, � melhor que n�o ter; se forem 20, melhor que 10. Temos que dignificar o ato de fazer arte. Performance � vida; teatro � vida.”
Para Ramos, as transmiss�es on-line de produ��es art�sticas de diferentes naturezas s�o uma “realidade diminu�da” do ato art�stico. “Mas essa realidade ainda � muito, j� que vivemos em um momento de dissolu��o, de inesgotabilidade do pior. Nosso �nico modo de reagir � fazendo.”
Ele admite sentir uma urg�ncia em produzir. A pol�tica acaba influenciando, mesmo que n�o diretamente, em suas obras. “N�o quer dizer que vou voltar aos anos 1960 e fazer um espelhamento (da realidade). Mas meu trabalho vem caminhando nesse lado (pol�tico), associado a temas como a viol�ncia. Acho que cada um reage a seu modo.”
Para Ramos, o importante � fazer. “A arte � um lugar de regras pr�prias e temos que exercer isso. Conectar-se com os outros, mesmo que com menos dinheiro, chamar outras linguagens. � a arte que faz o meio de campo para a vida poss�vel.”
THOUGHTS OF DUST
Exposi��o de Nuno Ramos. Em cartaz na Celma Albuquerque Galeria de Arte, Rua Ant�nio de Albuquerque, 885, Savassi, (31) 3227-6494. Visita��o de segunda a sexta, das 10h �s 19h; s�bados, das 10h �s 13h30. At� 5 de junho.