
No dia 18 de janeiro de 1990, Bob Dylan fez seu primeiro show no Brasil. Foi na segunda edi��o do Hollywood Rock, em pleno Est�dio do Morumbi, em S�o Paulo. Naquela noite, o cantor abriu sua apresenta��o com Most Likely You Go Your Way (and I'll Go Mine), do �lbum Blonde on Blonde (1966).
No dia 19 de abril de 2012, 22 anos e 3 meses depois, Dylan tocou na casa de espet�culos Pepsi On Stage, em Porto Alegre. A �ltima m�sica do bis foi Blowin' in the Wind, um de seus maiores sucessos, do �lbum The Freewheelin' Bob Dylan (1963).
- O dia em que Bob Marley jogou futebol com Chico Buarque e Moraes Moreira no Rio de Janeiro
- Quando tocar samba dava cadeia no Brasil
Dylan j� veio ao Brasil cinco vezes (1990, 1991, 1998, 2008 e 2012) e, ao longo desse tempo, fez 19 shows em cinco cidades: Rio, S�o Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte e Bras�lia.
Segundo seu site oficial, cantou 317 m�sicas - as mais tocadas foram Highway 61 Revisited (15 vezes), All Along the Watchtower (14) e Ballad of a Thin Man (12).
No palco, Dylan quase n�o interagiu com o p�blico. No m�ximo, esbo�ou um sorriso t�mido aqui ou soltou um "Thank you, guys!" (Obrigado, pessoal!) ali. Fora do palco, foi avesso a rep�rteres ou fot�grafos. N�o concedeu entrevista coletiva ou posou para fotos.
'Bob Dylan brasileiro'

A primeira vez em que Bob Dylan colocou os p�s no Brasil foi em 1990, para participar do Hollywood Rock. Foram dois shows: um em S�o Paulo, no dia 18 de janeiro, e outro no Rio, na Pra�a da Apoteose, no dia 25.
O show em S�o Paulo foi marcado por um encontro inusitado: o de Dylan com Belchior. O encontro foi promovido por Gilberto Gil e est� contado no livro Belchior - Apenas Um Rapaz Latino-Americano (2017), escrito por Jotab� Medeiros.Segundo o autor, Gil apresentou Belchior a Dylan como "o Bob Dylan brasileiro". Em tom de brincadeira, Dylan teria respondido: "� mais prov�vel que eu seja voc� na Am�rica". E, em seguida, perguntou: "Quero ouvir seu �lbum. Trouxe um?".
"Naquela noite, o destino colocou frente a frente duas estrelas de artesanato t�o parecido, mas, ao mesmo tempo, t�o diferente. Essa hist�ria � simb�lica, porque a aproxima��o entre Belchior e Dylan sempre rolou: os cantos quase falados, as letras longas e o refinamento intelectual", explica o jornalista e escritor.
Na noite anterior ao show do Rio, Dylan participou de uma grava��o no antigo est�dio de Chico Batera, o percussionista de Chico Buarque, em Botafogo.
A pedido do cantor, cerca de oito percussionistas tocaram diferentes ritmos brasileiros, como samba, bai�o e maracatu. L� pelas tantas, o est�dio recebeu outra visita ilustre: o guitarrista brit�nico Dave Stewart, do duo Eurythmics.
Como era um dos poucos brasileiros que falavam ingl�s, o percussionista L�o Leobons, que morou 17 anos nos Estados Unidos, se tornou uma esp�cie de "int�rprete" entre os m�sicos e o cantor.
Dylan, para frustra��o geral, n�o cantou nem tocou nada. Ficou o tempo todo no "aqu�rio", ouvindo os tapes. Terminada a grava��o, que durou algo em torno de tr�s horas, L�o recebeu seu cach� e seguiu para casa.
No dia seguinte, ainda sonolento, L�o recebeu um telefonema de um membro do entourage de Dylan convidando, ele e sua fam�lia, para assistir ao show da Apoteose. Em retribui��o, comprou um tamborim de presente e o entregou, pessoalmente, na su�te do Rio Palace, em Copacabana, onde o cantor estava hospedado.
No quarto, ensinou umas levadas b�sicas no instrumento, Dylan gravou suas instru��es e os dois se despediram. "Mais de trinta anos depois, a lembran�a que ficou foi a de sua apar�ncia. Suas m�os eram grandes e suas unhas mais pareciam garras", espanta-se L�o. "No entanto, Dylan � um sujeito doce, muito simp�tico".
Coincid�ncia ou n�o, quando lan�ou Under the Red Sky em setembro de 1990, Dylan convidou um brasileiro para tocar percuss�o: Paulinho da Costa, um dos mais requisitados dos Estados Unidos. Das dez faixas do �lbum, o m�sico carioca tocou em quatro: Born in Time, 2 x 2, God Knows e Handy Dandy.
'Recluso' e 'introspectivo'

O respons�vel pela vinda de Dylan ao pa�s em 1990 e em 1991 foi o empres�rio Luiz Oscar Niemeyer. Respons�vel por trazer pesos-pesados do rock, como Paul McCartney, Rolling Stones, Eric Clapton, Sting e Elton John, Niemeyer define Dylan como "recluso" e "introspectivo".
"Durante o Hollywood Rock, ele fugiu da imprensa, saindo do hotel pela porta dos fundos", recorda Niemeyer. "Usava um engra�ado disfarce de casaco preto com capuz e �culos escuros".
Da segunda vez em que veio ao Brasil, apenas um ano depois da primeira, Dylan tocou em Porto Alegre (14 de agosto), S�o Paulo (16 e 17), Belo Horizonte (19) e Rio de Janeiro (21). Quem o acompanhou de perto em sua segunda vinda ao Brasil foi o cantor e guitarrista ga�cho Duca Leindecker.
Ele e Frank Solari foram contratados para abrir o show do cantor em Porto Alegre. Mas Dylan gostou tanto da apresenta��o da dupla que a convidou para abrir os demais shows da turn�.
"Em S�o Paulo, entrei no camarim, e conversamos um pouco. Um cara reservado, mas muito receptivo. Na �poca, eu n�o tinha a verdadeira no��o de quem era Bob Dylan", admite Duca.
Como uma pedra que rola

Sete anos depois, Dylan voltou a se apresentar no Brasil. Foram mais tr�s shows: em Porto Alegre (7 de abril), Rio (11) e S�o Paulo (13). Nos shows da Apoteose, no Rio, e do Ibirapuera, em S�o Paulo, Dylan dividiu o palco com os Rolling Stones. Juntos, ele e Mick Jagger cantaram Like a Rolling Stone, do �lbum Highway 61 Revisited (1965).
J� o show em Porto Alegre foi no Bar Opini�o. Um dos espectadores daquela noite foi o roqueiro Marcelo Nova, que pegou um voo em S�o Paulo s� para assistir � apresenta��o na capital ga�cha. O sacrif�cio, garante, valeu a pena. Ficou a menos de dois metros da banda.
"Minha conex�o com Bob come�ou quando eu tinha 14 anos e ouvi Like a Rolling Stone pela primeira vez", conta o vocalista do Camisa de V�nus. "� estimulante apreciar a obra de um artista que n�o se repete nunca. Ele n�o se prop�e a ser o maestro do baile da saudade".
No dia seguinte, Nova e a fam�lia convidaram o baixista da banda de Dylan, Tony Garnier, que estava hospedado no mesmo hotel, a juntar-se a eles no caf� da manh�. "Conversamos sobre shows, filmes noir e a melhor maneira de aparar cavanhaques", diverte-se.
Uma d�cada depois, Dylan voltou ao Brasil para sua quarta turn�. Dessa vez, tocou em apenas duas cidades: S�o Paulo (5 e 6 de mar�o) e Rio (8).

"Dylan tem o h�bito de improvisar arranjos e melodias no palco. H� quem critique que muitas m�sicas ficam desfiguradas. Pessoalmente, vejo isso como um ato art�stico tremendo. � um m�sico que faz arte a todo momento", observa Pedro Couto, o editor do site Dylanesco e um dos maiores bibli�filos de Dylan no Brasil, com mais de cem t�tulos em seu acervo.
No show do dia 6, em S�o Paulo, uma f�, a estudante de Geografia, Laura Artioli, ent�o com 21 anos, conseguiu invadir o palco do Via Funchal. Detalhe: duas vezes.
Na primeira, conseguiu tocar no �dolo. Na segunda, foi "convidada" a se retirar da casa de espet�culos pelos af�veis seguran�as. "Paguei R$ 500 para tocar no Bob Dylan", declarou � reportagem do jornal Folha de S. Paulo, em mat�ria publicada no dia 7 de mar�o de 2008.
Talento vers�til

Em 2010, Dylan n�o tocou no Brasil. Em compensa��o, inaugurou uma exposi��o, The Brazil Series, no Museu Nacional de Arte de Copenhague, na Dinamarca. A mostra reuniu 40 pinturas em acr�lico e oito desenhos criados pelo m�sico no est�dio de sua casa, entre dezembro de 2008 e mar�o de 2010.
O convite da exposi��o partiu do curador da galeria, Kaspar Monrad (1952-2018). Sua cole��o anterior, Drawn Blank Series, de aquarelas, foi exposta em pa�ses, como Alemanha, em 2007, e no Reino Unido, em 2008. "Escolhi o Brasil como tema porque estive l� v�rias vezes e gosto da atmosfera", declarou o cantor, em comunicado oficial.
Das mais de 40 telas expostas no museu dinamarqu�s, duas chamaram a aten��o: Favela Villa Broncos (citada no cat�logo como sendo carioca) e The Incident. Segundo o jornalista e escritor ga�cho Eduardo Bueno, a tela The Incident teria sido inspirada na vis�o de um cad�ver na cal�ada da Avenida Ipiranga quase esquina com 7 de Abril.

Na madrugada do dia 18 de janeiro de 1990, o cantor saiu para dar uma volta, em torno da meia-noite, pelas ruas de S�o Paulo, seguido de perto por dois guarda-costas, Rick Harder e Mitch Fennel. Entre outros points da noite paulistana, conheceu a antiga boate Kilt. Na volta ao Hilton, �s 4h da manh�, viu o tal corpo estirado no ch�o.
Eduardo Bueno, o Peninha, pode ser considerado um dos maiores "dylan�logos" brasileiros. N�o por acaso, fez parte da trupe que acompanhou o artista em algumas de suas turn�s, entre 1990 e 1998. O convite partiu de Victor Maymudes (1935-2001), tour manager de Dylan, sob uma condi��o: "N�o fa�a perguntas!".
Ao ser indagado sobre como descreveria Dylan na intimidade, Bueno n�o economiza adjetivos: "Complexo, incomum, diferente, inating�vel, enigm�tico, exclusivo, exclusivista, inconstante, eventualmente amedrontador, �s vezes gentil e, no meu caso, embora isso certamente n�o possa ser generalizado, muito generoso", enumera.
'O gigante da Am�rica Latina'
Em seu programa de r�dio, Theme Time Radio Hour, exibido entre 2006 e 2009, Dylan apresentou um epis�dio tem�tico sobre o Brasil, que ele chama de "o gigante da Am�rica Latina", com direito a Aquarela do Brasil, cantada por Elis Regina.
"Existe uma parte na Am�rica do Sul onde n�o se fala espanhol. Fala-se portugu�s. � um pa�s ador�vel, com 184 milh�es de habitantes. Esse pa�s ocupa quase metade do continente. Acredito que seja maior do que os Estados Unidos. Seu lema � 'Ordem e Progresso'. � onde voc� encontra S�o Paulo e Rio de Janeiro, dois dos lugares com as melhores festas que conhe�o. Estou falando do Brasil!", declarou no r�dio.
Em sua discografia, Dylan s� fez men��o ao Brasil uma �nica vez. Na can��o Union Sundown, do �lbum Infidels (1983), o pa�s � citado nos versos: "All the furniture, it says 'Made in Brazil' / Where a woman, she slaved for sure / Bringin' home thirty cents a day to a family of twelve / You know, that's a lot of money to her...".
Em 2012, Dylan voltou ao Brasil para sua mais longa turn� pelo pa�s. Foram seis shows em nove dias: Rio de Janeiro (15 de abril), Bras�lia (17), Belo Horizonte (19), S�o Paulo (21 e 22) e Porto Alegre (24). Como de h�bito, saiu pelas ruas da cidade onde se apresenta em busca de inspira��o para novas telas ou can��es.
Em suas andan�as pelo Rio, no dia 15 de abril de 2012, esbarrou com o jornalista Jotab� Medeiros, acompanhado da mulher, Nana Tucci, em uma rua de Copacabana.
Quando viu a m�quina fotogr�fica, fez uma careta: "You are f*cking paparazzi!" (Voc� � uma p* de um paparazzi). O rep�rter jurou que n�o! "� para o Facebook!", respondeu. "Por qu�?", quis saber o cantor.
"Voc� � um dos mais importantes artistas do s�culo 20!", relata Jotab� no livro O Bisbilhoteiro das Gal�xias - No Lado B da Cultura Pop (2013). "Trinta e quatro graus na sombra, e Dylan de casaco de couro, gorro de l� e bota de caub�i", descreve Jotab�.

J� em S�o Paulo, seis dias depois, deu de cara com a apresentadora Sarah Oliveira cruzando a esquina da Jos� Maria Lisboa com a 9 de Julho. Da janela do carro, Sarah berrou: "We love you!". E sacou seu iPhone para tirar uma foto tremida.
"Sou muito f� do Dylan. Adoro esse jeito enigm�tico dele. Quase n�o d� entrevista. E, quando d�, voc� pergunta uma coisa e ele responde outra. Isso sem falar que � meio exc�ntrico. Ganha o Nobel de Literatura e n�o vai buscar", ri Sarah, que guarda at� hoje a autoriza��o dada pelo artista para o uso da can��o Mr. Tambourine Man, do �lbum Bringing It All Back Home (1965), na trilha sonora do filme Os Famosos e Os Duendes da Morte (2009), dirigido pelo seu irm�o, Esmir Filho.
Liberar m�sicas para artistas brasileiros, ali�s, n�o chega a ser uma novidade para Dylan. It's All Over Now, I, de Bringing It All Back Home (1965), virou Negro Amor (1977) na vers�o de Caetano Veloso e P�ricles Cavalcanti.
J� Romance in Durango, de Desire (1975), foi traduzido como Romance no Deserto (1987) pelo compositor Fausto Nilo. O cantor Z� Ramalho foi bastante literal ao traduzir Knockin' on the Heaven's Door, do filme Pat Garrett & Billy the Kid (1973), de Sam Peckinpah como Batendo na Porta do C�u (2008).
Dois dos 19 shows que Dylan fez no Brasil - o do Opini�o, em 1998, e o do Pepsi On Stage, em 2012 - foram analisados pelo jornalista e escritor M�rcio Grings no livro Quando o Som Bate no Peito (2021), que re�ne resenhas de 34 concertos de rock, como The Who, Roger Waters, Eric Clapton, Deep Purple e Black Sabbath.
"Foi uma epifania v�-lo t�o de perto", define Grings, em alus�o ao show do Opini�o, seu favorito.
"Nunca vou esquecer de I Want You um tom abaixo do original. Mais lenta, leve e reflexiva. Nunca mais fui o mesmo depois daquela noite", confessa.
Bueno passou por um "renascimento" semelhante. Tanto que diz que, se pudesse, mudaria a data de sua certid�o de nascimento para 9 de mar�o de 1975, quando ouviu, pela primeira vez, Before the Flood (1974).
"T�o logo a agulha tocou no vinil, as muralhas da mediocridade que me cercavam tombaram por terra e toda uma nova e ampla paisagem mental se descortinou � minha volta. Foi ali que minha vida se iniciou de verdade."
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!