
Desde “Madame Sat�” (2002), as travessias de Karim A�nouz pelas narrativas cinematogr�ficas se pautam por hist�rias sobre afirma��o de territ�rios. Em quase 20 anos, ele demarcou ch�o paras identidades sexuais (“Praia do Futuro”), para maternidade (“O c�u de Suely”), para zonas politicamente francas (“Aeroporto Central”), para o respeito pr�prio (“Abismo prateado”) ou para o amor fraterno, tema do aclamado “A vida invis�vel”, que lhe deu o pr�mio principal da mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes, em 2019.
Mas o novo gesto de reconhecimento territorial do cineasta cearense de 55 anos agora passa pela hist�ria, em especial a da Arg�lia, para fazer uma esp�cie de invent�rio afetivo (de cicatrizes e de suspiros) de sua pr�pria vida: o longa-metragem “O marinheiro das montanhas”, selecionado para a faixa de Sess�es Especiais do Festival de Cannes 2021, que ser� realizado em julho.
"Meu cora��o est� nisso, nessa esp�cie de ‘memoir’ de mim mesmo" disse o diretor em entrevista em maio passado, antes do an�ncio da sele��o para o festival franc�s, ao detalhar um filme que descreve como sendo "uma viagem de reconhecimento de dois pa�ses", ao documentar a rela��o de amor entre seus pais: a brasileira Iracema e Majid, um argelino.
MELODRAMA

Mas, da mem�ria do que foi vivido, ficou uma caixa de slides. E, agora, um longa-metragem nasceu dessa caixa. E de uma jornada que, segundo Karim, vem deixando-o "mais educado sobre o que se passa no mundo, l� fora".
"Peguei um barco em Marselha e fui parar na Arg�lia, no vilarejo de onde meu pai vem, que � uma regi�o montanhosa, onde neva. Minha m�e morreu em 2015, mas ela est� comigo nessa jornada como uma esp�cie de companheira imagin�ria”, afirma.
“E fui filmando no trajeto, construindo um filme de forma artesanal. � uma esp�cie de ‘Viajo porque preciso, volto porque te amo’ na Arg�lia", diz o cineasta, referindo-se ao longa feito em codire��o com Marcelo Gomes que deu a eles o trof�u Redentor de melhor dire��o no Festival do Rio 2009, narrando o p�riplo pelo Nordeste de um ge�logo de quem s� se ouve a voz.
"Tenho a sensa��o de que meus filmes s�o muito coloridos porque as fotos que tenho dos meus pais s�o retratos em cor. H� uma aus�ncia ali que � cheia de cores. N�o apare�o nessas fotos porque eu ainda n�o existia. Minha m�e voltou para o Brasil gr�vida, e eu cresci sendo criado pela minha av� e por ela, que foi uma mulher incr�vel, com uma hist�ria parecida com a da Guida de ‘A vida invis�vel’. Guida tamb�m volta gr�vida."

Nas recorda��es de Iracema e Majid, Karim encontrou slides deles no Colorado, antes de o pai partir. O t�tulo do filme, outrora chamado “Argelino por acaso”, virou “O marinheiro das montanhas” por unir os extremos do casal: mar e rocha.
"Minha m�e estudava algas. E meu pai vem das montanhas. Ele voltou para a Arg�lia quando o pa�s dele alcan�ou a independ�ncia. Eles passaram por uma luta �rdua para se libertarem da Fran�a. Milhares de pessoas morreram, mas eles conseguiram autonomia pol�tica. Entre 1962 e 1974, aquela na��o foi uma esp�cie de Cuba da �frica. At� os Black Panthers foram morar l�", diz Karim, que tamb�m retratou a realidade argelina em “Nardjes A.”, exibido no Festival de Berlim de 2020.
Nesse longa, ao cruzar seu olhar com uma jovem ativista inflamada, em meio � Revolu��o dos Sorrisos, na Arg�lia, em 2019, o diretor aplica um de seus filtros autorais: a aten��o ao transbordamento de quem � visto como desviante em rela��o �s regras e � moral de sua sociedade. Nardjes � uma ferida viva a c�u aberto no moralismo da tradi��o de sua p�tria.
"Ela � uma mulher s�bia. S� pelos cabelos enormes que tinha, voc� v� um contraste com aquele mundo conservador, de onde meu pai vem. Depois que sa� de ‘A vida invis�vel', um filme bonito, mas centrado no sufocamento de um ambiente t�xico, eu precisava falar de alegria. E foi a� que essa mulher, a Nardjes, com um projeto ut�pico forte, apareceu para mim", disse o cineasta, no Festival de Berlim.
Com a cabe�a imersa em seu hist�rico familiar, Karim passou em revista as viv�ncias (de absoluto sucesso) contabilizadas na d�cada passada, ao ser convidado para a mostra Cinema Brasileiro: Anos 2010, 10 Olhares. A retrospectiva, que esteve em cartaz na plataforma digital Belas Artes � La Carte, foi arquitetada pelo diretor e curador Eduardo Valente, num bate-bola com 10 profissionais da cr�tica e da teoria cinematogr�fica, para exibir “Praia do Futuro”.

"Minha m�e estudava algas. E meu pai vem das montanhas. Ele voltou para a Arg�lia quando o pa�s dele alcan�ou a independ�ncia. Eles passaram por uma luta �rdua para se libertarem da Fran�a. Milhares de pessoas morreram, mas eles conseguiram autonomia pol�tica. Entre 1962 e 1974, aquela na��o foi uma esp�cie de Cuba da �frica. At� os Black Panthers foram morar l�"
Karim A�nouz, cineasta
A hist�ria de amor entre um guarda-vidas brasileiro (Wagner Moura) e um turista alem�o (Clemens Schick) rendeu ao diretor uma indica��o para o Urso de Ouro. Foi uma de suas consagra��es numa d�cada em que foi jurado em Cannes (em 2012); dividiu a dire��o de um longa em epis�dios (o document�rio “Catedrais da cultura”) com Wim Wenders e Robert Redford; e ainda dirigiu Fernanda Montenegro em “A vida invis�vel”.
"Os anos 2010 foram especiais n�o s� para mim como para o cinema brasileiro como um todo, porque foi quando a gente p�de exercer o nosso trabalho como um of�cio e n�o como uma aventura, pois existiam leis, havia fomento. A gente sabia que poderia filmar, porque existiam pol�ticas p�blicas. Nos anos 2000, a gente nunca sabia se haveria dinheiro. Nos anos 2010, havia uma estrutura que, infelizmente, vem sendo desmontada", diz.
A�nouz tem pela frente um compromisso com a fic��o, num projeto ligado aos irm�os Gullane chamado “Neon River”, que compara a saga do casal fora da lei Bonnie & Clyde, ao narrar a fuga de uma jovem nipo-brasileira e de um rapaz franco-argelino, enamorados e em perigo.
"Vejo hoje que ‘A vida invis�vel’ conquistou muita coisa n�o apenas por suas qualidades, mas pelo resultado de um trabalho de todo um pa�s, feito ao longo da d�cada passada, para poder construir um projeto de cinema. Da� uma d�cada t�o diversa."