
Politicamente inquieta desde a sua funda��o, com o filme charge “O Kaiser” (1917), a anima��o brasileira destacou-se mundo afora com ataques ao imperialismo (“Meow”), � viol�ncia contra a mulher (“Carne”) e � homofobia (“V�nus - Fil�, a fadinha l�sbica”), mas nunca havia falado da ditadura militar de maneira t�o frontal, contundente e comovente como o faz em “Meu tio Jos�”.
Egressa da Bahia, a reconstitui��o das lutas de Jos� Sebasti�o de Moura – membro do grupo de esquerda Dissid�ncia da Guanabara, cujo nome � sempre citado entre os respons�veis pelo sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969 – vai concorrer na se��o Contrechamp do
Festival de Annecy
, na Fran�a.
Desta segunda-feira (14/06) at� s�bado (19/06), a Europa vai abrir as portas de seu maior festival de filmes animados – ali�s, o maior do mundo, a ser realizado parcialmente on-line, parcialmente presencial – para os relatos que o cineasta Ducca Rios, sobrinho de Jos�, colheu dos anos de chumbo.
O Brasil est� representado nessa mesma mostra ainda pela produ��o paulista “Bob Cuspe – N�s n�o gostamos de gente'', de Cesar Cabral. O teor combativo do filme de Ducca atraiu o astro Wagner Moura para emprestar a voz a Jos�, morto no in�cio dos anos 1980, em um crime com evid�ncias fortes de motiva��o pol�tica, at� hoje n�o solucionado.

SIL�NCIO
"O meu tio Jos� era uma pessoa muito calada", lembra Ducca, p�s-graduado em computa��o gr�fica pela Unifacs da Bahia e mestre em pol�ticas sociais pela Universidade Cat�lica do Salvador. "Pelo que diziam os adultos da casa, na �poca, ele ficou assim, calado, ap�s tudo o que sofreu, sobretudo no tempo em que viveu de forma clandestina e longe da fam�lia, o que deve ter tido um efeito avassalador na sua confian�a nos outros”, diz.
“No entanto, ao chegar em nossa casa, aos poucos ele foi se aproximando de n�s – de mim e do meu irm�o Pedro – e criamos uma rela��o muito bacana. Meu tio era como um her�i para mim, mas n�o ainda porque ele havia lutado contra os ditadores. Eu primeiro o admirei como mergulhador e pescador. E, � l�gico, por causa do seu talento no desenho e na pintura. Jos� era um artista, como seu pai, Homero, meu av�... e como eu tamb�m."
Animado em 2D, contando ainda com as vozes de Lorena Comparato, Tonico Pereira, Jackson Costa, Evelin Butchegger e Bertrand Duarte, “Meu tio Jos�” � uma s�mula das saudades de Ducca. No filme, o menino que ele foi se chama Adonias e ganha a voz de Cau� Levi.
O conflito principal se d� a partir de uma reda��o que Adonias tem de escrever na escola, no mesmo dia em que seu tio sofre o atentado, em 1983, sendo depois levado ao hospital em estado grave. Da� em diante, Adonias tem de lidar com a tristeza de sua fam�lia, com as desaven�as na escola e com a ang�stia de ter de cumprir a tarefa pedida pela professora.

CONV�VIO
"Tivemos dois bel�ssimos anos de alegre conv�vio entre todos. O Jos� me ensinou a nadar no mar. Com ele, meu irm�o Pedro come�ou a mostrar seus talentos no futebol e tamb�m aprendemos a fazer pipas”, diz Ducca.
Ele conta ainda que, “em paralelo, havia um clima de esperan�a. Meus pais estavam felizes com os sinais de reabertura do pa�s para a democracia, e minha av� estava simplesmente encantada com o retorno de seu amado filho – que, ap�s o sequestro de Elbrick, ficou quase uma d�cada em ex�lio. Quando ele morreu, tudo o que era felicidade se transformou em sofrimento, e assim aprendi o que � uma ditadura militar".
Libelos contra o totalitarismo e reflex�es biogr�ficas sobre opress�es de governo v�o rechear Annecy de cabo a rabo neste 2021, incluindo o dinamarqu�s “Fuga (Flee)”, de Jonas Poher Rasmussen, que abriu o � Tudo Verdade, em abril passado, narrando a di�spora de um homossexual afeg�o.
Um dos t�tulos mais esperados do evento franc�s � “My sunny Maad”, da tcheca Michaela Pavl�tov� (que arrebatou f�s no Brasil via Anima Mundi, com curtas como “Reci, reci, reci” e “Tram”), sobre a filosofia dos talib�s e suas sequelas em pr�ticas governamentais.
Tamb�m � esperado um explosivo teor de cr�tica do animador germano-espanhol Santiago Lopez Jover em sua com�dia “Snotty boy”, sobre liberdade de express�o numa Europa conservadora.
LIRISMO
Mas a abordagem de Ducca – pontuada por um lirismo singular e uma dire��o de arte depurada – traz uma carga tr�gica de brasilidade que a fic��o raras vezes dedicou ao que se passou no pa�s de 1964 a 1985.
"Temos uma produ��o constante sobre essa tem�tica, com filmes como ‘Pra frente, Brasil’, ‘Manh� cinzenta’ e ‘O ano em que meus pais sa�ram de f�rias’ – que � at� uma refer�ncia para a nossa anima��o – e s�ries como ‘Anos rebeldes’ e ‘Magn�fica 70’”, cita o diretor.
“Wagner Moura, que est� em nosso filme no papel do Jos� Sebasti�o, estreou como diretor com ‘Marighella’. Mas, apesar de tudo, parece que ainda � pouco, pois parte das pessoas – ainda que pequena em rela��o ao n�mero total de brasileiros – aparenta n�o saber muito sobre a enorme crueldade que fez parte do regime que afligiu o Brasil durante tantos anos. Se realmente soubessem, n�o estariam se manifestando a favor de AI-5 e de outras ideias esdr�xulas", diz Ducca.
Estreante em longas, ele j� dirigiu s�ries de anima��o para canais como Disney Jr. e ZooMoo. Rodou seu longa com R$ 1,5 milh�o. "Como foi um filme de baix�ssimo or�amento, trabalhamos por tr�s anos em sua produ��o e escolhemos uma t�cnica que pudesse nos dar a economia."
Esse valor � o equivalente ao que se gasta em Hollywood para animar cerca de 10 segundos de um longa como “Soul”, da Pixar. Mas quem v� as solu��es gr�ficas de Ducca na tela n�o se prende em valores de produ��o (embora estejam l�, bem empregados) e, sim, em inven��o e poesia.
“‘Meu tio Jos�’ � um dos casos de capta��o de recursos locais, j� que foi aprovado em chamada p�blica de arranjos regionais, num edital realizado em parceria entre a Secretaria de Cultura da Bahia e o Fundo Setorial do Audiovisual. O curioso � que foi um edital direcionado a longas de fic��o, onde concorreram filmes em live-action e o ‘Meu tio Jos�’ era a �nica anima��o”, conta Maria Luiza Barros, produtora executiva do filme, que ser� lan�ado aqui at� o fim do ano pela distribuidora Tucum�n.
"Destaco a vis�o da comiss�o de sele��o, que, entre v�rios filmes em live-action, teve a ousadia e vis�o de selecionar uma anima��o, o que a sele��o do filme por Annecy demonstra ter sido uma decis�o relevante. Simbolicamente, ela traz um retorno de imagem importante para a produ��o baiana."
Contando com vers�es de sucessos de Chico Buarque em sua trilha sonora (como “Roda viva”, “Constru��o”, “Deus lhe pague”, “O que ser�” e “Apesar de voc�”), “Meu tio Jos�” mostrar� uma Bahia urbana, do in�cio dos anos 1980, a Annecy.
"A anima��o, de forma geral, cresceu muito no Brasil ao longo dos �ltimos 15 anos, na esteira da bem-sucedida pol�tica constru�da no per�odo em que t�nhamos um Minist�rio da Cultura comandado por Gilberto Gil e, em seguida, Juca Ferreira", diz Ducca.
"A Bahia tamb�m apresenta resultados muito positivos em n�mero de est�dios, de filmes e de s�ries realizados na linguagem da anima��o, o que � resultado de uma a��o muito importante do governo baiano. A anima��o na Bahia existe desde a d�cada de 1970, com pioneiros como Jorge Nascimento e Chico Liberato. Chico produziu o quarto longa-metragem em anima��o realizado no Brasil, ‘Boi Aru�’. Existem tamb�m outros exemplos de sucesso, como o filme em stop motion ‘�run �iy�’, que rodou o mundo em festivais, e uma produ��o intensa de s�ries oriundas de diversos est�dios baianos e de artistas como Ca� Cruz Alves, que tem uma est�tica bastante despojada e muito interessante."
No Festival de Annecy, “Meu tio Jos�” ser� exibido nesta segunda (14/06), ter�a (15/06) e quarta (16/06).
(Ag�ncia Estado)
