A senhorinha que � obrigada a aprender a usar um aplicativo do telefone para pedir comida e fotografa cenas da janela do seu pr�dio; o maestro que se apaixona por um rapaz mais jovem e contrai o v�rus; a mulher que, desempregada, passa a trabalhar como tar�loga para sobreviver, disfar�ando como pode as suas falhas divinat�rias.
Esses s�o alguns dos personagens de “A vida como ela era – Retratos da pandemia”, do escritor mineiro Lino de Albergaria, reuni�o de 34 cr�nicas que retratam a vida durante o isolamento social a partir de um espa�o central: um condom�nio de classe m�dia por onde transita a maioria dos personagens, embora o narrador tamb�m nos d� a perspectiva de outro condom�nio, de moradores mais pobres, alguns direta ou indiretamente ligados ao anterior. Nessas hist�rias, enquanto uns prescindem dos cuidados preventivos, outros descobrem novas ocupa��es e sonham com a vacina contra o v�rus da COVID-19.
TECNOLOGIA
Os tr�s personagens citados acima – dos mais de 30 que aparecem no livro – j� d�o uma dimens�o das novas pr�ticas cotidianas da nossa sociedade e dos velhos problemas que se intensificaram na pandemia. Sen�o vejamos: os usos compuls�rios da tecnologia pelos idosos, desemprego e novos arranjos profissionais, vel�rios sem despedidas, mortes de pessoas dos grupos de risco, amor em tempos de pandemia, negacionismo, viol�ncia dom�stica, festas clandestinas e o apelo ao sobrenatural.
De fora, n�s, leitores, vamos ligando os fios da grande teia de rela��es humanas, cujos v�nculos se d�o por la�os sangu�neos e necessidades comerciais e afetivas, como na cr�nica “A conjun��o”, por exemplo: “Tinha de pedir pelo celular, que mal usava. Pelo zap-zap, como ele falava. Mas n�o devia ser o nome certo. Ela tinha ouvido algo como what's up. Em ingl�s. Devia escrever assim, achou. O rapaz, que antes lhe parecia meio insolente, teve tempo e paci�ncia para lhe dar li��es pelo interfone. Ela mandou o aparelho pelo elevador para ele instalar o aplicativo.”
Em outra cr�nica, “A voz do destino”, o sobrenatural aparece como um recurso em tempos de crise, em que muitos buscam respostas para os seus problemas, apelando muitas vezes para solu��es duvidosas: “Quando a tar�loga lhe abriu a porta, sentiu a onda de confian�a que a mulher passava. Uma casa cheirosa, perfumada. Adorava o aroma de jasmim. (...) Esperava que o tar� lhe dissesse que aquilo n�o ia dar certo e que o destino soprasse, usando a linguagem das cartas, uma solu��o melhor, � altura de sua fam�lia”.
O recurso narrativo � uma surpresa � parte. Um narrador em primeira pessoa introduz as hist�rias e, sutilmente, reaparece na �ltima cr�nica. Trata-se de um narrador consciente, onisciente e testemunha da pandemia: “Como tantas pessoas, criei o h�bito, neste retiro for�ado e intermin�vel, de observar da janela o que o mundo me permite ver.”
capa
Inicialmente publicadas na plataforma do Facebook, somente depois � que as cr�nicas foram reunidas em livro. Essa rede social possibilitou um di�logo direto entre o autor e os leitores, proporcionando a Lino de Albergaria uma imediata recep��o de seus textos. Prova dessa intera��o foi a sele��o da capa, feita pelos leitores virtuais, que puderam escolher entre as cinco op��es propostas.
Numa linguagem enxuta e concisa que mostra a versatilidade do escritor, “A vida como ela era” � um mapa das novas pr�ticas e sentimentos do nosso dia a dia. Esse amplo espectro tem�tico, sem d�vida, � fruto do experiente olhar de Lino de Albergaria, que este ano completa
32 anos de literatura, com mais de 80 livros publicados.
H� certa liberdade de leitura das cr�nicas, podendo ser feita de forma separada (como ocorreu no Facebook inicialmente) ou em conjunto (no livro). Essa �ltima op��o, entretanto, nos fornece um sutil encadeamento das a��es, que mostra a din�mica da pr�pria vida, de como se d�o as rela��es humanas, sociais e culturais a partir de um microcosmos – o condom�nio. O resultado � uma panor�mica de pequenos retratos que, juntos, se comunicam no espa�o e no tempo, e nela nos vemos refletidos.
Carlos Drummond de Andrade, ao dizer que “de not�cias e n�o not�cias se faz a cr�nica”, conferiu ao g�nero uma maleabilidade que lhe permite reconstruir elementos retirados do jornal e da vida, dando-lhe uma dimens�o sens�vel. A cr�nica �, assim, uma colcha de retalhos do cotidiano com seus dramas e sua poesia. Lino de Albergaria dialoga com essa linha e, n�o � toa, homenageia o mestre Nelson Rodrigues.
Para al�m de “A vida como ela �” (coluna que o escritor pernambucano manteve no jornal “�ltima Hora” nos anos 1950), h� tamb�m uma coincid�ncia tem�tica que vale a pena mencionar aqui. Trata-se da epidemia da gripe espanhola no Rio de Janeiro, narrada em seu livro de mem�rias “A menina sem estrela”, da qual o autor pernambucano foi testemunha:
“Ora, a gripe foi, justamente, a morte sem vel�rio. Morria-se em massa. E foi de repente. De um dia para o outro, todo mundo come�ou a morrer. Os primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu que era mesmo a peste, ningu�m chorou mais, nem velou, nem floriu. O vel�rio seria um luxo insuport�vel para os outros defuntos”.
RITOS
Tamb�m nesta pandemia, o alto risco de cont�gio e as imagens de centenas de covas nos cemit�rios, que j� n�o suportavam tantos corpos, nos deram a dimens�o da aus�ncia de ritos e de despedidas aos quais culturalmente est�vamos habituados, como vemos em “A mulher no vel�rio”, em que a empregada � a �nica a velar a patroa: “Olhou para o caix�o fechado. Nem podia ter certeza de que tinha velado a pessoa certa. O que a deixava triste � que n�o viu nenhuma flor. Logo na despedida de quem tinha trabalhado por anos decorando festas e casamentos”.
Bem poder�amos inverter os t�tulos dos livros de Nelson Rodrigues e Lino de Albergaria, uma vez que, com os olhos de hoje, a vida narrada pelo escritor pernambucano � uma vida pret�rita, ao passo que a que nos descreve Lino � a presente. Invers�o � parte, a literatura se imp�e aqui como um rem�dio para minimizar as nossas perdas e danos.
* Professora e escritora, autora de “Amor alien em Paris” (com o pseud�nimo de Hessie Rivers), lan�ado pela Amazon